Introdução
Analisar o trabalho de enfermagem é colocar no centro do debate as atividades que as mulheres sempre estiveram à frente: o cuidado na sociedade. No entanto, entender quais são os desafios que técnicos e técnicas de enfermagem enfrentam nos cotidianos de trabalho é uma questão complexa de ser discutida, considerando que suas atividades envolvem diretamente o cuidado humano com a utilização de seus corpos para cuidar do outro. Além disso, falar desses usos implica tomar como ponto modal os aspectos históricos e culturais desta profissão, marcada pela majoritária presença de mulheres.
A expressividade numérica de mulheres na enfermagem não garantiu a efetivação da igualdade de género no mundo do trabalho. Podemos constatar isso no Brasil a partir das variações da categoria profissional, que se apresentam marcadas pela divisão social e sexual do trabalho, pois há uma bipolarização entre as portadoras de diplomas de nível superior e as de nível médio efetivando, assim, as hierarquias vivenciadas nesta profissão. Tal fato já foi constatado em estudos empíricos sobre a construção do ethos na enfermagem, sendo relevante considerar a dimensão de género e, portanto, as hierarquias entre as próprias mulheres no campo profissional.1-2
Para a compreensão da complexidade do “saber-fazer” desse cuidado, a dimensão histórica da profissão de enfermagem é importante, pois, por meio dela, identificamos que, desde os primórdios da formação profissional brasileira para o cuidado em saúde, estavam explícitas a divisão social e a técnica do trabalho, muito influenciadas pelo modelo de assisténcia da britânica Florence Nightingale, que trazia a polarização na formação e, dessa maneira, o status profissional dentro da própria carreira. Se, de um lado, havia as ladies nurses, ou seja, mulheres que podiam pagar pela formação profissional, coordenavam as atividades e estavam envoltas pelo aspecto intelectual do trabalho; por outro, as nurses eram aquelas que realizavam o curso de enfermagem de modo gratuito, recebiam auxílio-moradia e eram as responsáveis pelas atividades manuais. Salientamos ainda que os atributos exigidos para a inserção e permanéncia na profissão, nesse período, estiveram envolvidos com a religião, a moral e a abnegação em nome do cuidado em saúde.3
Na profissão de enfermagem, sendo as mulheres a maioria, exercem um tipo de trabalho extremamente importante e necessário para a sociedade, embora carreguem os resquícios das desigualdades de género no mundo do trabalho à medida que o cuidado é naturalizado a partir de um dever moral das mulheres. Nessa perspectiva, as representações sobre ser mulher, do ponto de vista histórico, as fizeram estar à deriva do trabalho pago, logo, reconhecido. E, assim, na enfermagem, considerada uma profissão majoritariamente feminina, pois são essas mulheres que fizeram o trabalho de cuidado na esfera produtiva, o que não significa ter tido a adequada remuneração para tal. No entanto, foram inúmeras as reivindicações delas para se formarem para a atividade de cuidado profissional atrelado à ciéncia.4
Para a compreensão das condições de trabalho na atualidade, associado ao contexto histórico da profissão, partimos dos estudos sociológicos do trabalho de cuidado ou care para fazer emergir a complexidade que a atividade impõe para a categoria profissional de técnico e técnica de enfermagem. Entendemos por care todas as atividades referentes ao “Cuidar do outro, preocupar-se, estar atento às suas necessidades, todos esses diferentes significados, relacionados tanto à atitude quanto à ação […]”.5:1
O trabalho de cuidado está relacionado ao desprendimento da atenção, do atendimento às necessidades de outras pessoas, da preocupação e ações para o conforto físico e/ou mental para o alívio do sofrimento. Nestes casos, as relações de interdependéncia estão postas e imbricadas nos aspectos materiais e psicológicos do cuidado.6
É importante pontuar que o trabalho do cuidado envolve as dimensões emocionais e as aprendizagens a fim de lidar com os sentimentos nas relações com as pessoas. Também são aprendidos os saberes para poder cuidar das pessoas, como realizar uma medicação ou um procedimento de saúde. O cuidado com os corpos coloca os profissionais em contato com a sexualidade do outro e outra, pois a relação de cuidado prevé a interação entre quem cuida e quem o recebe. E, por fim, há desprendimentos do corpo para a prestação do cuidado, como os esforços para segurar, mudar, auxiliar e carregar as pessoas cuidadas.7
A partir do ponto de vista histórico da profissão, interessa-nos analisar o uso do corpo no trabalho de cuidado de modo a saber as influéncias na saúde das trabalhadoras que o exercem ao longo de suas trajetórias profissionais. Assim, a perspectiva das relações de género tem contribuído para o entendimento das relações entre o trabalho e sua influéncia na subjetividade e no corpo de trabalhadoras: “o trabalho de enfermagem é um trabalho sobre e com o corpo. Para tornar-se uma ferramenta eficaz, o corpo das enfermeiras deve, em primeiro lugar, anular-se. O cansaço, a vulnerabilidade, a irritação, o sofrimento devem desaparecer para que a presença da enfermeira seja calmante”.6:9
A partir disso, a pesquisa de Molinier mostra que, na formação profissional, a docilidade e a serenidade são requeridas para o saber ser enfermeira e, dessa forma, há uma “disciplinarização dos corpos”,1:9 em que construir o ethos enfermeira é passar pela necessidade de formar e/ou adaptar o corpo para o trabalho de cuidado. É por meio da compaixão, ou seja, o sofrer com o outro (emoção aqui entendida como aquela construída historicamente, coletivamente e socialmente) que as enfermeiras estabelecem relações com as pessoas cuidadas e fazem das suas atividades um saber fazer discreto. Por saber fazer discreto, entende-se as ações de enfermagem como aquelas que são discretas e, por vezes, antecipadas para o adequado cuidado. Como exemplo, ressaltamos os casos em que se deve estar próxima à campainha da cama hospitalar ou estar atenta para pegar um copo de água.1
Nas atividades de cuidado, pontuamos o uso do corpo, como sendo importante a compressão da ampliação do conceito de trabalho corporal como aquele que não se separa a mente e o corpo, pois é por meio dos contatos entre as pessoas que também são produzidas as relações sociais. O trabalho corporal remunerado que desenvolvem as profissionais da saúde, como a enfermagem, além de utilizarem o próprio corpo no trabalho, cuidam de outros doentes e debilitados, ou não.8
Portanto, a análise dos usos do corpo no cuidado é essencial para entendermos de que modo as trabalhadoras os utilizam, e até mesmo adoecem em decorréncia dos esforços corporais e das atividades realizadas ao longo do tempo. As atividades cotidianas dos técnicos e técnicas de enfermagem tém como centralidade o cuidado em diferentes situações, tendo que lidar com a condição corporal do outro, além de vivenciarem mortes, sofrimentos, o processo de adoecimento e, evidentemente, as curas. Logo, essas trabalhadoras usam diretamente os seus corpos durante toda a trajetória profissional, oferecendo ao outro o cuidado.
Diante do exposto, o objetivo deste artigo é analisar o trabalho de cuidado e a saúde de técnicas e técnicos de enfermagem a partir das análises históricas e sociológicas dos estudos do care.
Metodologia
Tipo do estudo. A escolha pela abordagem qualitativa da pesquisa foi em decorréncia da finalidade de compreender as relações entre os indivíduos na sociedade e a realidade sob a perspectiva das pessoas, ou seja, as experiéncias, os significados e o processo social e histórico de um determinado grupo social, não dissociando os indivíduos e sociedade.9
Os trabalhadores e trabalhadoras entrevistados. Entrevistamos sete mulheres (duas solteiras, quatro casadas e uma viúva) e dois homens (ambos casados). Todos trabalhavam há mais de um ano no hospital e tinham o curso técnico (nível médio) em enfermagem.
Ao entrarmos em contato com a diretora de enfermagem, ela nos ofereceu uma lista de profissionais presentes na escala de plantão. Assim, convidamos à participação aquelas que estavam nos dias em que as pesquisadoras foram ao hospital estudado. A recepção das pesquisadoras pelos entrevistados e entrevistadas foi cordial, além de ressaltarem a importância da pesquisa para o trabalho que realizam.
Observação de campo e entrevistas. A escolha metodológica foi a observação das atividades de técnicas e técnicos de enfermagem e o uso de entrevistas individuais com um roteiro semiestruturado, com duração entre 50 e 55 minutos.
As entrevistas foram realizadas com a finalidade de compreender as vivéncias e as experiéncias das trabalhadoras e trabalhadores para a apreensão das singularidades de cada trajetória profissional e das aprendizagens no cotidiano das atividades, além das condições e da organização do trabalho de cuidado.10 Elas foram realizadas no local de trabalho, em salas reservadas dos ambulatórios ou no hall do hospital quando os depoentes estavam nas enfermarias.
A escolha dos participantes foi feita a partir da disponibilidade deles e do desejo em ceder o depoimento. Priorizamos a participação de homens e mulheres, os novatos e os mais antigos, contratados e concursados, alocados em enferMarías e em ambulatórios.
A partir da inserção de duas pesquisadoras no campo, foram realizadas observações do espaço físico, os acessos de pacientes à unidade, os ambulatórios, as unidades de internação e os locais de descanso e de alimentação. Todas as observações do campo, assim como as percepções das entrevistas, foram registradas em diário de campo, conforme recomenda Minayo.11
Com relação à delimitação da amostra na pesquisa qualitativa, consideramos que a “ideal é a que reflete, em quantidade e intensidade, as múltiplas dimensões de determinado fenômeno e busca a qualidade das ações e das interações em todo o decorrer do processo”.12:10 Quando percebemos que, nos depoimentos, já havia recursos para alcançar os objetivos da pesquisa, encerramos as entrevistas.
As entrevistas foram gravadas e transcritas em documento Word por uma empresa contratada e revista pela pesquisadora principal. Todas as pessoas que cederam os depoimentos receberam as entrevistas impressas pessoalmente pela pesquisadora principal. Foi ressaltado que, se em alguma parte do conteúdo elas não tivessem de acordo com a publicização, teriam o direito de solicitar que as pesquisadoras retirassem, mas isso não ocorreu.
História Oral e Análise de Conteúdo Temática. A história oral temática como aporte metodológico possibilita a captura das vivéncias sobre determinado tema em um período histórico delimitado13 e, com isso, pudemos conhecer as trajetórias profissionais das trabalhadoras e trabalhadores de nível médio e técnico em enfermagem, o que contribuiu para expandir os conhecimentos sobre as atividades realizadas e as suas influéncias no corpo diante do trabalho de cuidado ao rememorarem suas vivéncias nas atividades que desempenham.
Como método de tratamento dos dados das entrevistas, utilizamos a análise de conteúdo temática.14 Após a leitura flutuante e aprofundada delas, elencamos os seguintes temas para a análise: “O corpo e as emoções”; “Os adoecimentos no trabalho de cuidado” e “Condições de trabalho e período noturno”.
Procedimentos Éticos. Para a realização do estudo, foi solicitada autorização da gerente de enfermagem do hospital e, após a autorização da direção do hospital, o projeto foi encaminhado ao Comité de Ética em Pesquisa - CEP da unidade da primeira autora (Parecer 769.315; data: 11/09/2014) e, em seguida, para o do hospital estudado (Parecer 803.744; data:08/09/2014). Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ambos aprovaram a pesquisa e todos os nomes foram alterados para garantia do sigilo.
Resultados
Destacamos que os resultados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa ampla sobre as representações do trabalho de cuidado e as perspectivas de técnicas e técnicos de enfermagem. No entanto, discutiremos os aspectos dos usos do corpo nas atividades de cuidado.
A unidade hospitalar em que estão alocados os sujeitos está localizada em uma cidade de grande porte, com mais de um milhão de habitantes, da região Sudeste do Brasil, e atende pessoas com doenças infectocontagiosas de várias regiões do país. À época do trabalho de campo, em 2015, havia cerca de 80 técnicos e técnicas de enfermagem atuando na unidade. O hospital teve sua origem no ano de 1912, com a finalidade de cuidar e tratar de doenças que afetavam a saúde pública brasileira no início do século passado: malária, doença de Chagas, tuberculose, sífilis, dentre outras.15
Atualmente o hospital atende também pessoas com diagnóstico de HIV/Aids e covid-19. Ressaltamos que, no hospital estudado, os profissionais entrevistados cuidavam apenas de pessoas adultas ou idosas. Além disso, a idade variou de 39 a 64 anos, sendo que as mais velhas relataram ter problemas osteomusculares e, por isso, estavam alocadas na Central de Materiais para Esterilização. As mulheres casadas e com filhos relataram ter maior dificuldade em lidar com as dinâmicas de conciliação entre o trabalho reprodutivo e produtivo. Com relação à idade, as mais velhas são as que relataram ter problemas de saúde associados com o exercício do trabalho de enfermagem, como será discutido adiante.
O hospital estudado é parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como finalidade garantir a assisténcia à saúde pública e gratuita para todas as pessoas presentes no território nacional desde os cuidados básicos e/ou primários até os mais especializados, que são realizados em unidades avançadas de saúde, como os hospitais. É notório o aumento da utilização dos serviços de saúde públicos nas trés últimas décadas, após a implementação do SUS, conforme aponta a pesquisa.16
O corpo e as emoções no trabalho de cuidado
O uso do corpo no trabalho é uma das centralidades do cuidado, relativas às atividades desprendidas ao outro, como dar banhos, fazer medicações orais ou por acesso venoso, trocar fraldas nas pessoas dependentes de atenção e de ações físicas, verificar sinais vitais (medição de pressão arterial, frequéncia cardíaca e respiratória, temperatura), entregar roupas hospitalares (camisola e pijama), arrumar camas, etc. Além disso, é preciso verificar o grau de dependéncia e a gravidade de cada pessoa atendida, como menciona Sálvia:
“Tudo isso, estar atento a qualquer intercorréncia, que às vezes vocé faz uma programação, mas precisa fazer um procedimento que precisa acompanhar, aí, às vezes, vocé vai, tinha que fazer uma coisa naquela hora, mas tem que puncionar uma veia. De repente, a pessoa está agravando e precisa de um cuidado maior, precisa vocé ter uma atenção maior” (Sálvia).
O corpo dos profissionais também é utilizado como forma de expressividade criativa visando prestar o cuidado às pessoas.17 Estas ações são para acalentar o sofrimento do outro, quando o corpo expressa as emoções como dançar, cantar ou rir. Também é usado na tentativa de gerenciar os sentimentos que podem aparecer em um ambiente quando a doença e a ideia de morte apresentam-se próximas:
“Muitos [pacientes] chegavam deprimidos. Aí depois, com o tempo, eu brincava muito, eu ria. Eu cantava, eu dançava para eles. Aí eles se distraiam, aí daqui a pouco eles [estavam] numa boa” (Tulipa).
“Aí botei a mão entre a cabeça dela, olhei para o rosto dela, estava em cima, e visualizei o rosto da minha mãe. E aí comecei a orar por ela, as mãos estavam muito quentes, minhas mãos. E eu senti um aroma diferente no setor, eu nunca tinha sentido aquele aroma, aquele perfume. Daqui a pouquinho veio o médico fazer o exame, fez o exame e disse: ela está viva, ela não está em morte cerebral” (Jacinto).
Desde o primeiro dia de entrevistas no hospital, as emoções das profissionais foram sendo percebidas pelas pesquisadoras, que registraram as observações em diário de campo, conforme a escreve a primeira autora:
“[…] Percebi que as emoções vieram à tona, quando [a técnica de enfermagem] foi perguntada sobre a morte de pacientes, as ligações com eles e as famílias. Além dos vínculos que vão se formando entre quem cuida e quem é cuidado” (Diário de Campo, 18 de maio de 2015).
Os adoecimentos no trabalho de cuidado
Como dissemos anteriormente, priorizamos a inserção de trabalhadoras novatas e aquelas com mais tempo de trabalho no hospital pesquisado. As trabalhadoras mais antigas, como Rosa, Violeta e Prímula, estavam alocadas na Central de Materiais de Esterilização (CME), pois, ao longo de suas trajetórias, as atividades de cuidado com pessoas causaram problemas musculoesqueléticos e dores:
“Eu não sei, eu acho que eu já fiz tudo que eu não vejo nada difícil. Difícil agora é subir a escada para ir lá para cima almoçar, porque o joelho já começa a doer, mas eu não tenho nada assim que me assusta, que eu acho difícil” (Prímula).
“E, como eu fiz uma hérnia de disco, eu não posso mais pegar peso… aí não tinha mais como eu ficar virando [o paciente]” (Rosa).
“Eu, por exemplo, eu tenho, de vez em quando, problema no joelho, né, de vez em quando. Então, a chefia. Tem que fazer curso, tudo, né? Pegar paciente. Aí achou melhor eu ficar aqui. E coluna, né?” (Violeta).
As percepções sobre as influéncias do trabalho no corpo são percebidas pelas trabalhadoras mais antigas, pois, ao ser indagada sobre como desenvolveu problemas na coluna e nos joelhos, Violeta afirma que talvez tenha sido pelo trabalho ao longo dos anos. Também encontramos o caso de uma trabalhadora que se acidentou com material perfurocortante, realizou os exames necessários e o resultado foi negativo para as doenças infectocontagiosas.
O trabalho reprodutivo, como lavar, passar, cuidar, alimentar filhos e/ou outros membros da família, foi relatado por grande parte das entrevistadas. Segundo Camélia, a conciliação entre o trabalho no hospital e o cuidado familiar é muito cansativa:
“Olha, tem dia, por essa vida que eu estou falando que não sobra tempo para vocé, ou quando vocé sai […] vocé acaba acumulando os seus serviços, não é? Porque vocé acumula roupa, vocé acumula casa, vocé acumula filho e dois homens dentro de casa é a mesma coisa que nada, porque só sabem sujar, não é?” (Camélia).
De acordo como o depoimento de Camélia, se, por um lado, as condições de trabalho de mulheres, tanto na esfera produtiva, quanto reprodutiva,17 são intensas; por outro, elas mantém suas jornadas, mas percebem que o corpo já não é mais o mesmo de quando eram mais jovens, como afirma Sálvia:
“Afinal das contas, eu quero aposentar. Eu quero é… Por que não? O pessoal fala: vocé está muito nova ainda. Eu falei: mas a gente muda. […] muitos plantões, mas o corpo já não, não é? Não responde mais da mesma forma, não é? Eu fico pensando, ficam aumentando para a gente se aposentar, imagina que com sessenta e poucos anos: oh, tem uma parada [cardiorrespiratoria]. Puxar o carrinho, pega isso, pega aquilo. Não tem a mesma agilidade. […] o pique. Não tem. Vocé vai ter o conhecimento, mas o seu corpo não vai acompanhar. É estranho isso, não é?” (Sálvia).
Condições de trabalho e período noturno
Outra dimensão posta pela pesquisa é a vivéncia do trabalho durante o período da noite que causa, por vezes, situações de desconforto e tensão. Ao ser perguntada se ela havia tido algum problema de saúde recentemente, Tulipa responde:
“Tive… Problema de coração, tive problema de pulmão, tive uma trombose. Fiquei afastada um tempo, mas depois fiquei bem. […] Eu não dormia, porque eu não conseguia dormir à noite. Como eu trabalhava à noite, isso não faz bem para a saúde. Eu sou hipertensa, conclusão… Meu médico disse que isso ajudou tudo. […] É não conseguia dormir. Não é porque… Não é porque… Eu ficava preocupada com os pacientes. Achava que ia morrer, eu dormindo. Eu não conseguia ficar, eu ficava acordada, acesa. Tanto é que hoje em dia eu durmo pouco. Eu durmo dez horas da noite e acordo duas horas da manhã” (Tulipa).
Chamamos a atenção para o depoimento dessa trabalhadora para duas questões. A primeira diz respeito ao reconhecimento de que a forma de organizar o trabalho de cuidado (no caso das profissionais de enfermagem, ele ocorre durante as 24 horas do dia, sobretudo, na área hospitalar) trouxe repercussões na saúde, especialmente pelo fato de ter trabalhado durante muito tempo no período noturno.
Discussão
De acordo com os depoimentos das trabalhadoras, fica evidente que elas utilizam a atenção para acompanhar a evolução das pessoas cuidadas. Em outras palavras, estão atentas a todo o momento para agir em caso de necessidade ou piora da pessoa atendida.
Tal dimensão do trabalho que é apresentada pela trabalhadora que fica atenta aos sinais de saúde e de vitalidade é confirmada pela teoria do care ao ratificar as solicitudes para atender às necessidades humanas, às aprendizagens de saber fazer o cuidado, à preocupação e às atenções desprendidas pela profissional cuidadora.18 Ademais, uma das finalidades do trabalho de cuidado é fazé-lo de maneira que a pessoa não sofra e se faça algo para minimizar o sofrimento.1 Assim, os desdobramentos das técnicas e técnicos de enfermagem são inúmeros para evitar intercorréncias que possam prejudicar ou agravar a saúde das pessoas.
Outro ponto a destacar é o uso de estratégias, como o riso e/ou o choro, que são formas subjetivas e criativas das trabalhadoras lidarem com as emoções. Esta experiéncia está relacionada aos desafios que o trabalho impõe: “é uma experiéncia que se vive no corpo, no sentido da corporalidade, do corpo pulsional, do corpo como capacidade de ser afetado”.2:447 Esta noção permite entender que as relações entre o trabalho, o corpo e as emoções estão associadas, ou seja, não há separação entre elas. Isso se torna evidente quando, de acordo com os depoimentos das trabalhadoras, o corpo é utilizado para acalentar, mas também para alegrar as pessoas deprimidas com sorrisos ou danças. Assim, podemos concluir que o corpo no trabalho de cuidado é essencial para que esta atividade seja concretizada, considerando as dimensões que este trabalho engloba nas relações que o constitui. Este estar com o outro no sofrimento, isto é, ser sensível ao sofrimento humano, é um dos saberes da enfermagem para que os profissionais sintam que estão fazendo bem o cuidado.2 É também necessário considerarmos que: “a subjetividade começa pelo corpo: no trabalhar, se põem toda uma série de saberes motores, de memorização da experiéncia da matéria e das ferramentas ou de objetos técnico”.19:166
O uso do corpo no trabalho ainda é subestimado, assim como a fadiga e o cansaço, pois é uma atividade muito difícil e carrega cargas físicas e demandas fortes.2 A enfermagem possui uma sobrecarga de trabalho com desprendimento de atenção constante, redução de profissionais, exercício da atividade no período noturno, além de estar exposta aos diversos riscos ocupacionais como os químicos, físicos, biológicos, psicológicos e ergonômicos.19 Ademais, somam-se os acidentes de trabalho, relatados por uma trabalhadora que se machucou com material perfurocortante.
Um dos questionamentos de uma depoente (Sálvia) é que, embora o corpo não tenha mais tanta agilidade para determinados procedimentos técnicos, como o atendimento de uma parada cardiorrespiratória, o seu saber sobre o cuidado diante da situação de vida ou morte ainda permanece latente. Portanto, é preciso considerar a questão do uso do corpo no trabalho e associá-lo ao processo de envelhecimento, já que não possui a mesma dinâmica de uma pessoa jovem. Contudo, é importante destacar que as técnicas mais antigas trazem em seus corpos, além do envelhecimento visível, a experiéncia no trabalho em enfermagem, que pode ser fundamental em determinadas situações que aparecem no trabalho de cuidado na área da saúde, como pontua a entrevistada que seu saber ainda “permanece latente”. Além do processo de envelhecimento, consideramos que a organização e as condições de trabalho influenciam a saúde de profissionais do cuidado.
Concordamos que o fato de o salário dos profissionais de enfermagem ser relativamente baixo no hospital estudado, sobretudo para quem não é concursada/o, faz com que muitas trabalhadoras tenham mais de um emprego, simultaneamente. É o caso de Lírio, que, em determinado momento da sua trajetória profissional, chegou a ter trés empregos ao mesmo tempo. Jasmine também possuía dois empregos no período da pesquisa, em que trabalhava à noite para complementar a renda familiar. Dessa maneira, concordamos que os múltiplos empregos influenciam a carga de trabalho, sobrecarregando-a.19 E se somarmos os desgastes emocionais e no corpo durante os percursos profissionais, acentuam-se os adoecimentos no e pelo trabalho.
No Brasil, no més de agosto de 2022, foi instituído o piso salarial para a enfermagem, que coloca o salário-base para a enfermeira no valor de 4.750,00 reais; 70% desse valor é referente ao técnico e técnicos de enfermagem.20 Não é possível, nesse momento histórico, afirmar se a implementação do piso salarial irá contribuir para a diminuição do número de empregos na categoria profissional da enfermagem e quiçá para a melhoria das condições de trabalho.
Ainda com relação à carga e à jornada de trabalho, é preciso considerar as relações de género, pois as trabalhadoras relataram as atividades desempenhadas por elas na esfera reprodutiva. A forma de organização social do trabalho de mulheres é central para o entendimento das múltiplas atividades que elas fazem. O trabalho de cuidado relacionado à maternidade e à família na sociedade capitalista é destinado, sobretudo, às mulheres. Embora tenham galgado a inserção no trabalho produtivo, ainda são elas que realizam o trabalho de reprodução social.21,22
Somado a isso, consideramos que a necessidade da realização de atividades domésticas pode comprometer a recuperação do sono das trabalhadoras e, assim, as relações de género estão postas,23 pois as desigualdades entre homens e mulheres na conciliação entre o trabalho produtivo e reprodutivo ainda se faz presente.17
Outro ponto de destaque a ser considerado é sobre a atenção e a preocupação desprendidas de modo integral no cuidado com o paciente, como verbaliza Tulipa. Ou seja, ela não conseguia dormir com receio da pessoa necessitar do seu auxílio e ela não conseguir prestar o cuidado. Com isso, fica evidente que, assim como a literatura pontua, o trabalho de cuidado é aquele que está relacionado à manutenção da vida, com as exigéncias de atenção e dos atendimentos às necessidades das pessoas,6 exigindo atenção constante.
Ainda sobre os efeitos do trabalho de cuidado no corpo, em uma pesquisa com cuidadoras de idosos nas cidades de Madrid e Paris, foram encontrados relatos de dores nas costas, braços e pernas, uso da força para carregar e manipular pessoas, cansaço, fadiga e acidentes de trabalho. Estes problemas de saúde foram analisados sob a perspectiva dos esforços físicos realizados, dos movimentos repetitivos, da intensificação dos ritmos de trabalho e da pressão do tempo.24 Em outro estudo com 329 enfermeiros (94% mulheres), foi verificada a relação entre o desenvolvimento de doenças musculoesqueléticas, as demandas posturais, e o tempo de trabalho de enfermagem, além da realização de atividades domésticas.25 Ambos os estudos corroboram os achados aqui apresentados.
Em outro estudo com trabalhadores e trabalhadoras de enfermagem em Unidades de Terapia Intensiva, encontramos a sobrecarga de trabalho permeada pelo adoecimento e acidentes laborais, além da intensificação do trabalho devido às jornadas extensas, face à necessidade de manutenção da renda familiar.26
Evidenciamos, nesta pesquisa, que os saberes construídos pelas trabalhadoras e trabalhadores entrevistados passam por desafios cotidianos vinculados diretamente ao uso do corpo no trabalho, como adoecimentos, acidentes de trabalho, pelas percepções do envelhecimento no e pelo trabalho, além do corpo que não dorme enquanto há pessoas que precisam do cuidado a ser recebido.
Conclusão
Trazer à tona o debate sobre o trabalho e as influéncias no corpo e nas emoções de técnicas e técnicos de enfermagem permite compreender a profissão de nível médio-técnico, em que o corpo é utilizado para os seus saberes e fazeres ao longo da história da profissão. Portanto, se a história brasileira da enfermagem aponta a divisão social do trabalho, esta ainda se faz presente no cotidiano de vida dessas profissionais, pois fica evidenciado que o corpo, nas relações de cuidado, está envolto pelas emoções, pelo envelhecimento, pelas condições de trabalho e pela subjetividade que permeiam o saber-fazer do cuidar em saúde.