Introdução
A nutrição parentérica (NP) é frequentemente prescrita quando a alimentação entérica é insuficiente ou intolerada a um nível razoável para manter ou melhorar o estado nutricional. Esta desempenha um papel vital em doentes críticos, sendo muitas vezes necessária a sua preparação personalizada por inadequação das bolsas comercializadas pela indústria farmacêutica às necessidades de doentes com carências específicas, o que acontece frequentemente em doentes pediátricos.
A manipulação de NP, de forma manual ou automatizada, requer condições asséticas e pessoal treinado. A Farmacopeia Americana (USP), no seu capítulo 7971, assim como as orientações Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme (PIC/S)2 ou Eudralex3, são documentos científicos validados que descrevem normas e procedimentos para minimizar o risco de contaminação destas preparações, incluindo instruções baseadas em evidência para projeto de instalações, procedimentos de limpeza, garantia de qualidade e treino dos profissionais envolvidos, assim como métodos de avaliação da técnica assética praticada1,4.
A preparação de misturas nutritivas para NP é uma combinação complexa de atividades de alto risco que reflete a qualidade da prescrição, da avaliação farmacêutica, da técnica e precisão na produção das mesmas5. Otimizar a confiabilidade do processo é de importância primordial para a redução de risco de erro, seja o procedimento manual ou automatizado.
A mudança do método de enchimento manual para automatizado é resultado não só dos atuais avanços tecnológicos, mas também da necessidade de resposta ao aumento das exigências nos cuidados de saúde, de forma a dar origem a misturas nutritivas mais seguras, eficientes e precisas.
As guidelines americanas6 sobre automatização na preparação de misturas nutritivas têm como propósito delinear as ideias-chave para integrar a automatização de forma segura e custo/efetiva nas instituições de saúde. Os benefícios são alcançados na sua plenitude se a tecnologia for usada de forma apropriada; se negligenciados ou contornados os procedimentos de controlo de qualidade, a segurança do doente pode ser colocada em risco.
O farmacêutico deve avaliar a necessidade/benefício do sistema automatizado na sua instituição, adaptando os procedimentos de forma a integrar esta realidade nas orientações de manipulação, segurança e controlo de qualidade já existentes.
Automatização em nutrição parentérica no CHUSJ: controlo de qualidade gravimétrico antes e após a sua implementação
1. Introdução
Nos SF do CHUSJ implementou-se o sistema automatizado para enchimento de bolsas de nutrição em 2016, até então preparadas através de sistema manual e sistema semiautomatizado.
A preparação através do método manual (Figura 1) anteriormente usado para bolsas de NP com volume superior a 500 ml, consiste na medição manual, através de seringas de capacidade apropriada ao volume a medir, dos componentes da fórmula. O procedimento é realizado da seguinte forma:
Acerto dos volumes de macronutrientes (água, glucose e solução de aminoácidos) da composição e adição dos volumes de micronutrientes aos mesmos.
Esta adição é realizada tendo em conta uma ordem pré-estabelecida, sendo que a solução de fosfato será o primeiro eletrólito, seguindo-se as soluções de iões monovalentes, oligoelementos, iões bivalentes e, por último, o gluconato de cálcio.
Após acerto dos volumes de macronutrientes e aditivação, nos mesmos, dos volumes de micronutrientes, o enchimento da bolsa é realizado por gravimetria, utilizando um sistema de vácuo.
Enchimento realizado por ordem semelhante à ordem de aditivação já descrita.
Nunca adicionado o fosfato e cálcio de forma sequencial.
Por último, adição das soluções coradas (vitaminas) e opacas (soluções lipídicas), de forma a que a sua coloração/opacidade não oculte a visualização de possíveis precipitados.
Finalizado o enchimento, é homogeneizada a solução por dupla inversão da bolsa, observando-se a possível formação de precipitados.
Para bolsas com volume inferior a 500 ml, usava-se, até implementação do método automatizado, o método semiautomatizado de enchimento (Figura 2), que consistia na medição manual dos micronutrientes e medição semi-automatizada dos volumes de macronutrientes (água, glucose e solução de aminoácidos). Esta medição semi-automatizada era realizada com o equipamento MediMix®, sendo que o farmacêutico digitava manualmente o volume a medir para cada componente, desclampando a via correspondente. Este equipamento acopla um sistema de vias que conectam as matérias-primas em questão, e uma seringa que efetua as medições de volumes digitados. Intitula-se de semiautomático por conjugar uma medição manual com outra automatizada, sendo que esta última depende da digitação manual/abertura de vias por parte do profissional.
Neste método de preparação/enchimento de bolsas de NP, efetua-se enchimento da bolsa com macronutrientes através do equipamento MediMix® e, posteriormente, a medição manual de cada micronutriente, seguindo a mesma ordem de adição do método anterior.
A cada adição, agita-se suavemente a solução, de forma a evitar a possibilidade de precipitação local.
Por último, descreve-se resumidamente o funcionamento através de método automatizado (Figura 3), no caso específico aplicado ao equipamento Exactamix 2400 Baxa®.
Consiste num sistema fechado de bombeamento automatizado que combina várias matérias-primas estéreis numa solução final única para administração intravenosa ao doente, usando uma fórmula fornecida eletronicamente.
Usa um sistema com 24 portas, medindo volumes específicos para cada componente da fórmula: desde 0,2 ml até a um máximo de 5.000 ml/bolsa.
Uma bomba peristáltica procede ao enchimento das bolsas de nutrição parentérica por medição volumétrica. Estas medições vão depender do flow factor determinado/parametrizado para cada produto, sendo que este está relacionado com a sua densidade, tipo/volume e fonte (se partimos de frasco, saco ou seringa). Este fator vai determinar o ajuste da velocidade de bombeamento para cada produto e, consequentemente, a exatidão do volume bombeado a partir da porta pré-definida para esse mesmo produto.
A ordem de medição/adição é pré-estabelecida no software do equipamento, pelo farmacêutico responsável pelo processo, sendo ainda parametrizadas as incompatibilidades entre componentes, de forma a que estes nunca possam ser adicionados de forma sequencial (exemplo: fosfato e cálcio).
É realizado, integrado neste sistema, um controlo gravimétrico dos volumes bombeados por pesagem do produto final. Verificam-se pesagens intermédias do produto individual, sempre que o volume do mesmo seja superior a 100 ml.
Para todos os métodos, as soluções lipídicas são adicionadas num último passo, facilitando a inspeção visual da fase aquosa e reduzindo o risco de rutura da emulsão por catiões bivalentes.
Em teoria, os equipamentos de enchimento automatizado são dotados de uma maior precisão que os métodos tradicionais de medição/enchimento. No entanto, este desempenho deve sofrer um processo de validação farmacêutica, que deve conceber medidas de garantia de qualidade para o equipamento, bem como ações corretivas. Idealmente, deverá ser também realizado por uma entidade externa, podendo esta avaliação compreender, por exemplo, a medição da glucose6 ou outros componentes, tal como realizado por Chelsey Collins e Irene Krämer8, através da análise físico-química das concentrações dos componentes das misturas nutritivas.
Os SF devem desenvolver um plano de monitorização e vigilância que garanta a segurança e eficácia de utilização do equipamento. Os resultados do desempenho do equipamento deverão estar documentados.
O controlo gravimétrico é um ensaio de verificação de qualidade usado na elaboração de misturas nutritivas. As orientações internacionais determinam que o erro máximo aceitável para este ensaio de verificação deve ser de 5% e recomendam este controlo ao produto final, assegurando-se assim a precisão e segurança destas soluções endovenosas. No entanto, é recomendável que esta margem seja reduzida para os 3%, especialmente em NP pediátrica9.
2. Métodos
De forma a avaliar o impacto da implementação do sistema automatizado (Exactamix 2400® Baxa) na qualidade da elaboração de bolsas de NP, realizou-se um estudo de avaliação dos resultados do controlo de qualidade gravimétrico antes e após a sua implementação. Pretendeu-se ainda estudar a possibilidade de redução do limite aceitável de erro de 5% para 3%, tal como recomendado para bolsas com volume menor que 100 ml9.
Para tal, procedeu-se à avaliação estatística, através do programa informático Excell® 2017, dos resultados do controlo de qualidade gravimétrico das bolsas de nutrição parentérica resultantes do enchimento das mesmas através dos diferentes métodos: método manual, método semiautomatizado (equipamento mediMix®) e método automatizado (equipamento Exactamix 2400® Baxa).
Foram consideradas 3 amostras de 580 bolsas de NP para cada método de enchimento especificado, referentes a Setembro/Outubro de 2016 (método manual e semi-automatizado) e Agosto/Setembro 2018 (método automatizado).
3. Resultados
Apresentam-se os resultados obtidos na tabela 1, sendo que o método de enchimento automatizado relacionou-se com a menor média para o desvio ao peso teórico, assim como menor desvio padrão, o que nos indica uma menor percentagem de erro e uma menor dispersão dos resultados para este método. Assim, a implementação do sistema automatizado traduziu-se em melhorias a nível de precisão de resultados para o controlo gravimétrico das bolsas de NP, diminuindo a zero o número de bolsas que excedeu o intervalo aceitável, aumentando assim a segurança das misturas produzidas e, consequentemente, para o doente.
O número de bolsas que excedeu a margem de 3%, recomendável para NP pediátrica, foi de zero.
4. Conclusões
A preparação de misturas nutritivas de forma manual implica múltiplas manipulações, com movimentos similares consecutivos e ocorrência de possíveis lesões músculo-esqueléticas, sendo o controlo de qualidade limitado ao controlo visual dos volumes transferidos7.
As novas tecnologias, nomeadamente a automatização em NP, surge com enorme potencial de melhoria na precisão da mistura nutritiva final7,10, tal como referido nas orientações americanas6, sendo que também enunciam os princípios básicos que refletem a necessidade de mudança de um sistema para outro, assim como requisitos e procedimentos a seguir na análise da sua necessidade/justificação, sua implementação, controlo/monitorização e otimização de processo.
Da análise da nossa experiência, a implementação do sistema automatizado traduziu-se em melhorias a nível de precisão de resultados para o controlo gravimétrico das misturas produzidas, aumentando a segurança das mesmas e permitindo uma melhoria na qualidade dos cuidados prestados ao doente.
Dado o número de bolsas que excedeu a margem de 3%, recomendável para NP pediátrica, ter sido zero no período de estudo, foi possível reduzir a especificação do nosso ensaio de verificação para os 3%.
A automatização dos processos realizados nos SF tem como objetivo final a melhoria nos cuidados ao doente. A implementação deste sistema permitiu alcançar esse objetivo, com melhoria na qualidade do circuito e uso mais eficiente dos recursos disponíveis. Ainda assim, é importante realçar que a implementação de um sistema automatizado assegura a composição da preparação final, dado insuficiente para a garantia de qualidade final do produto, onde devem ainda ser considerados aspetos como estabilidade físico-química e esterilidade das preparações, assim como o controlo das condições de trabalho.