1. Introdução
O processo de redemocratização do Brasil, findo o regime autoritário, pode consubstanciar-se a partir da edição da atual Carta Constitucional que, de maneira indelével, fez emergir uma nova postura legislativa, fundada em princípios norteadores do conjunto de nosso ordenamento jurídico, notadamente no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais assegurados, sem nenhuma forma de distinção, dirigindo-se a atingir as mais amplas parcelas da população. Nesse contexto, já fez assegurar certos princípios reguladores e mesmo disposições específicas direcionadas à parcela de brasileiros definidos como idosos. Desde a Constituição Federal, uma série de disposições infraconstitucionais discorreram sobre esses direitos e garantias da população idosa do país, de maneira que se pode chegar à Lei 10.741, de 1º.10.2003, que passa a ser conhecida como o Estatuto do Idoso, que se propõe a propiciar os meios necessários ao enfrentamento dessa emergente circunstância e demanda social, ou seja, o significativo aumento de idosos em nossa sociedade.
De pronto, todas as referências ao processo de envelhecer significaram uma mudança paradigmática, desde uma ressignificação do próprio conceito definidor do velho e de velhice, até a ampliação das condições caracterizadoras dessa faixa etária, indo além da mera classificação temporal, para poder abranger, a seu turno, os novos papéis sociais nos quais tal processo de envelhecer vem se estruturando. Isso diz respeito tanto aos níveis individuais, como de forma mais abrangente, aos aspectos, quase inteiramente novos, em nosso contexto, no qual se trata de operar a satisfatória inserção social dos idosos, nos diversos meios onde se encontram localizados, ou onde queiram vivenciar novas possibilidades existenciais.
Nesse sentido, uma vez já passados quinze anos da edição do Estatuto, este artigo propõe uma reflexão sobre os avanços legislativos que tais disposições normativas representam, bem como um exame acerca dos reflexos sociais desse novo paradigma, de forma a contribuir para um duplo enfoque em relação ao problema suscitado: de um lado, divulgar o Estatuto, cada vez mais; e, de outro, em função disto, inserir-se nas ações necessárias a fazerem valer, socialmente, tais dispositivos, de maneira a que se perfaçam em realidades sociais concretas, para que se efetivem esses direitos e garantias, deixando de se referir apenas a direitos só formalmente assegurados.
Logo, se o significativo aumento da expectativa de vida, causado pela revolução médico-sanitária verificada, sobremaneira, na segunda metade do século XX, bem como a ampliação das possibilidades de acesso a condições mais adequadas de saúde pública puderam aumentar, quantitativa e qualitativamente, o tempo de duração da vida humana, elevando o contingente de idosos; agora, em consequência, devem-se propiciar os meios para que tais expectativas, ao se concretizarem, possam significar, de igual maneira, uma vida mais longa e verdadeiramente digna assegurada a essa parcela da população. Por conta disso, o Estatuto do Idoso estabelece, de forma explícita e igualmente transversal, em seus dispositivos, que o processo de envelhecer deve ser conduzido pelo mesmo princípio fundante de nosso ordenamento jurídico, ou seja, o da dignidade da pessoa humana; de modo que se possa chegar ao processo de envelhecer com dignidade como um direito fundamental da vida humana, perpassado por ações concretas, tendentes à sua efetivação, envolvendo tanto o Estado, quanto a família, as comunidades e, portanto, a sociedade como um todo.
2. Novo paradigma da tutela jurídica do idoso: a garantia legal de uma vida digna
De imediato, ao se tratar das questões suscitadas pela reflexão acerca da situação do idoso, enfrenta-se o problema de se chegar a uma clara definição em que se possa enquadrar, de forma mais precisa, a condição de pessoa idosa, pois existem diferentes critérios a serem utilizados, desde a mera quantificação cronológica, passando por condições biológicas, físicas e psicológicas. Além disso, devem-se considerar as abrangentes considerações de ordem social, perpassadas pelos problemas de desigualdades diversas, não somente no íntimo da sociedade brasileira, mas, de resto, em se tratando, em nível internacional, das mesmas condições que impactam os diversos parâmetros de desenvolvimento social e econômico dos países e suas respectivas percepções culturais relativamente ao idoso.
Entretanto, vale ressaltar que, mormente a partir da segunda metade do século XX, em função dos avanços tecnológicos na área da saúde, que provocaram uma revolução sanitária, em nível internacional e, igualmente, em nosso país, focados numa melhora no enfrentamento da saúde pública, a expectativa de vida tem aumentado consideravelmente, através de mecanismos que possibilitam a cura e a prevenção de diversas doenças, bem como o acesso a esses meios, o que trouxe como consequência direta o aumento do número de idosos nessas sociedades. Assim, esses dados numéricos, divulgados através de estudos demográficos, propiciaram uma maior visibilidade dessa parcela da população, até porque o contato cotidiano com as pessoas mais velhas e em inúmeras situações tem permitido que a velhice ultrapasse os limites das vidas particulares de cada um e de cada família, para se inserir em um contexto mais amplo, impactando a própria sociedade e daí surgirem as respostas legislativas, por parte do Estado, a essa nova demanda social(Barros, 2007).
Por conta disso, pode-se afirmar que:
O processo de viver-envelhecer saudável determina um processo dinâmico, transformador, que contribui para a integridade e totalidade deste ser. Homem e sociedade são, ao mesmo tempo, distintos e interdependentes entre si. A alteração da estrutura de um está na interdependência de outro. Portanto, o processo do viver-envelhecer não se restringe ao âmbito individual, mas também se lança sobre o âmbito social. As transformações do corpo, seu significado e repercussão, seja pessoal ou coletivamente, dependem da forma como o indivíduo interage com o seu meio. (Portella e Bettiele, 2013, p. 23).
Problematizar esses critérios definidores da situação do idoso mostra-se relevante, haja vista que se acrescentaram ao envelhecimento, além das condições de um processo biológico, de diminuição das capacidades físicas, outros conceitos, mais alinhados a novas fragilidades e, concomitantemente, a novas possibilidades psicológicas e comportamentais. Dessa forma, é que estar saudável deixa de estar relacionado à mera conceituação cronológica para se inserir em um contexto mais amplo, entendido como a capacidade do organismo de responder às necessidades da vida cotidiana, bem como à capacidade e motivação física e psicológica para continuar na busca por objetivos e novas conquistas, sejam pessoais e familiares. Entretanto, todas essas considerações, em termos de legislação, fazem necessário o estabelecimento de um determinado critério definidor que, no caso do ordenamento jurídico brasileiro, seguiu o critério cronológico, para definir a pessoa idosa, com base nas diretrizes apontadas pela Organização Mundial de Saúde - OMS, na qual o idoso está definido como a pessoa com sessenta anos ou mais, considerando-se, dessa forma, uma média observada, principalmente nos países apontados como ainda em desenvolvimento (Camargo e Pasinato, 2004).
Destaca-se também, o fato de que os institutos jurídicos se apresentam eivados pelo caráter de historicidade, de forma que o estabelecimento do Estatuto do Idoso se deu na esteira da Constituição Federal/88, que uma vez apresentada como "constituição cidadã", reservou apenas alguns artigos esparsos à condição do idoso, o que já representou algum avanço em relação às Constituições anteriores, dado que ignoravam a necessidade de regulamentação da condição do idoso. Contudo, na busca do enfrentamento dessa questão, surgem, na década de 1990, alguns dispositivos constitucionais, discorrendo sobre políticas setoriais de tutela aos idosos, desdobrando-se, a partir daí, como principal referência, a aprovação da Lei nº 8.742 - Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS, estabelecendo ações e projetos e prevendo as responsabilidades das esferas governamentais, sejam estaduais, municipais ou federais, em atenção ao idoso. (Freitas Júnior, 2011, p.3).
O enfrentamento legislativo da demanda social estabelecida pelo quadro expansivo da população de idosos no Brasil, dessa forma, mostrou-se relevante em função da necessidade de se criar uma política direcionada a esse público. Por conta disso, em 04.01.1994, foi criada a Lei nº 8.842/94, que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso para nortear as ações que garantissem os direitos sociais dos idosos, visando assegurar sua nova forma de participação na sociedade. Outro marco regulatório desse contexto firmou-se com o Decreto nº 4.227, de 13.05.2002, que instituiu o Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos, vinculado ao Ministério da Justiça, com competência definida para avaliar e acompanhar as políticas públicas voltadas ao idoso. Assim, esses exemplos do aparato legislativo que, paulatinamente, vinha se estabelecendo, é que ensejaram, então, a consolidação desses avanços, a fim de regular as prerrogativas atribuídas aos idosos, embasando os seus direitos nos âmbitos dos direitos públicos e privados, envolvendo disposições previdenciárias, civis, processuais civis e de proteção penal do ancião, de forma que se pode chegar ao já referido Estatuto do Idoso, como ficou conhecida a Lei nº 10.741/2003 (Boas, 2011).
Antes de adentrarmos o campo específico das garantias que o referido Estatuto estabelece, no escopo do artigo, mister se afirmar que suas disposições legais se encontram permeadas, transversalmente, por uma série de princípios norteadores de tais prerrogativas asseguradas a estes cidadãos idosos, visando a sua proteção, integração social e garantia de atenção especial, pelo estabelecimento de prioridades a este segmento, dando-lhes, não apenas maior visibilidade, senão projetando possibilidades concretas de sua inclusão nesses novos papéis sociais. Deve-se igualmente frisar que tais garantias têm seu foco, também, nas desigualdades sociais verificadas em nosso país (Silva, 2012). Nesse sentido, importa, primeiramente, voltar-se para o princípio fundante dessa tutela legislativa, que se ancora na Constituição Federal/88, dado que é o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no inciso IIIº, do artigo 1º da Carta Política que regula, em grau máximo, essa tutela jurídica, de forma constitucional, como fonte originária a irradiar para o conjunto do ordenamento pátrio.
Dessa forma, a dignidade da pessoa humana, elevada à condição de norma norteadora dos demais direitos fundamentais, reveste-se de importância decisiva, também, quando se visa assegurar e proteger os direitos dos idosos, haja vista que:
(...) justamente porque a dignidade vem sendo considerada (pelo menos para muitos e mesmo que não exclusivamente) qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano; e certos de que a destruição de um implicaria na destruição de outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas), constituem-se, ou, pelo menos, assim, o deveriam) em meta permanente da humanidade, do Estado e do direito (Sarlet, 2006, p. 27).
Na esteira dos direitos fundamentais, devidamente positivados no texto constitucional, e além do referido princípio-norma fundante do ordenamento, a tutela jurídica dos idosos encontra-se alicerçada em outros dois dispositivos legais, constantes da Carta Política. Dessa forma, o caput do art. 5º torna expresso que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo a todos assegurada a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança; portanto, tais prerrogativas se estendem, por óbvio, aos idosos. Entretanto, agora, de forma direta, o art. 203, que dispõe sobre assistência social, garante ao idoso um salário mínimo de benefício, desde que este não disponha de meios para prover a sua subsistência, nem de que esta subsistência possa ser provida por sua família. A seu turno, o art. 229 estabelece o dever que os filhos maiores têm de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade; e, por fim, o art. 230 declara expressamente que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida; o que vem reforçado por duas prerrogativas constantes dos parágrafos 1º e 2º, no sentido da previsão de programas de amparo aos idosos e da gratuidade dos transportes coletivos urbanos (Constituição Federal / 88).
Portanto, respeitar os direitos fundamentais dos idosos (e é dessa forma que o presente artigo posiciona-se), não se trata de apenas reconhecê-los a partir de uma obrigação do Estado, ou seja, um dever de proteção dirigido às pessoas idosas, mas se reveste do caráter de uma verdadeira prática de efetivação de tais direitos e prerrogativas, tornando a dignidade efetiva a esse segmento, em função dessa previsão no texto constitucional desse princípio norteador. Por conta disso, o direito a um envelhecimento digno deve ser tutelado de todas as maneiras possíveis, seja por ações de conscientização da sociedade, quanto às próprias características ínsitas ao envelhecimento, como pela educação das pessoas para o resgate do respeito para com os direitos dos idosos (Braga, 2011).
Por conta disso, basta uma breve análise em tais dispositivos constitucionais, para se verificar que é o próprio princípio fundamental da vida digna que os perpassa, com a finalidade de estender tais prerrogativas às pessoas idosas, no sentido de que:
O princípio da dignidade humana preconiza que todas as pessoas tenham uma vida digna. No caso do idoso, para que o princípio possa se concretizar, entendeu o constituinte brasileiro a necessidade de estabelecer uma tutela protetiva diferenciada, pelo simples fato de serem pessoas mais vulneráveis do que as demais, em razão da idade avançada. Reconhecer, juridicamente, a vulnerabilidade da pessoa idosa representa um verdadeiro avanço legislativo(Peres, 2011).
A mesma análise feita com foco nos dispositivos constitucionais, agora, pode servir de base para se proceder ao exame dos dispositivos do Estatuto do Idoso, haja vista que, da mesma maneira, se encontram permeados pelo fundante princípio de assegurar às pessoas assim consideradas, não apenas o respeito, mas a plena efetivação da dignidade da vida humana. Nesse sentido, sua elaboração atende à necessidade de compilação adequada da legislação anterior que, embora direcionada à atenção aos idosos, o era de forma fragmentada, até o ano de 2003, em ordenamentos jurídicos setoriais, ou em instrumentos de gestão pública. Portanto, depois da edição do Estatuto, se tem o conjunto dessas diversas leis esparsas e de políticas reunidas em um único documento legal, abrangente e que dispensa ao problema um tratamento integral e uma visão de longo prazo, no sentido do estabelecimento de medidas que visam propiciar o bem-estar dos idosos e, logo, estender, aos mesmos, a garantia de uma vida digna. Dessa forma, sua relevância se torna inquestionável, enquanto marco regulatório dessa demanda social pungente, para o enfrentamento do problema que visa regulamentar. (Santin, 2005).
A seu turno, o Estatuto está perfeitamente alinhado com a Constituição Federal, ao assegurar a dignidade da vida humana, especificamente, aos idosos, por meio de proteção integral, como novo paradigma de enfrentamento da vulnerabilidade reconhecida a essa parcela da população, devendo ser estendida a todas as facetas existenciais em que deva desdobrar-se a vida dos incluídos nesse critério etário. Da mesma forma, fica expressa a convocação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público e, logo, do Estado, para agirem, em conjunto, no sentido de propiciar a efetiva concretização dessas prerrogativas, referendadas pela condição de determinar prioridade ao tratamento do idoso, em todos os possíveis desdobramentos de sua condição de vida, não apenas pessoalmente considerada, mas em sua completa inserção familiar, comunitária e social.
3. Do enfrentamento do problema do envelhecer com dignidade
Uma vez que a Constituição Federal torna clara a obrigação do Estado, da família e da comunidade, no sentido da proteção do idoso e o respectivo Estatuto repete tal ordenamento fundante dessa nova perspectiva, este enunciado leva a considerar, igualmente, que, no que diz respeito a essa obrigação legal constante dos dispositivos mencionados, o dever da família, no cuidado com o idoso, inclusive, precede à obrigação do próprio Estado, uma vez que é no seio da família que essa circunstância do envelhecimento se mostra, em primeira mão. Entretanto, não se deve confundir cuidado com proteção, de forma que: o primeiro origina-se de elementos subjetivos, tais como o carinho e o afeto, os quais, por óbvio, só podem e devem ser oferecidos pela família, quer consanguínea, quer por afinidade; o segundo, porém, diz respeito aos deveres objetivos do Estado perante a pessoa idosa e, nesses casos, ligados aos direitos fundamentais do idoso, a partir do momento em que esses forem ameaçados, negados, agredidos e/ou quando da necessidade de sua implementação (Braga, 2011).
Assim, essas afirmações colocam o problema em duas dimensões de importância decisiva para os dois focos principais ao enfrentamento social do processo do envelhecer, pois, diante da inércia da sociedade, o Estado deve apresentar um rol de políticas públicas que se municiem do Estatuto do Idoso e da Constituição, para planejar ações que representem essa ressignificação do papel social da velhice na atualidade, promovendo os meios necessários à sua inclusão social. Por outro lado, tais políticas públicas devem alcançar, dentre esses direitos fundamentais, o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, atingindo o nível íntimo da vivência familiar, na qual, infelizmente, se evidenciam os maiores índices de violência e não reconhecimento desses direitos. Eis o desafio: criar medidas e mecanismos capazes de operar essa concretização de direitos, como o direito fundante da dignidade, tendo como princípio a própria família, que o desrespeita (Ritt, 2008).
Há que se considerar, ainda, um difícil processo de interações dialéticas que se estruturam em torno do problema do enfrentamento social do envelhecer, já que, partindo-se do pressuposto que, politicamente, nos estruturamos enquanto uma democracia representativa, tanto o legislador constituinte, quanto o legislador ordinário, ao normatizarem, tanto no texto da Carta Política, como no texto da lei infraconstitucional, os direitos fundamentais dos idosos, o fizeram como representantes da parcela da sociedade que os elegeu para este fim. Portanto, a função legiferante do Estado cumpriu seu papel, fornecendo as bases legais para o tratamento jurídico da questão. Entretanto, agora se exige desse mesmo Estado que implante políticas públicas tendentes a efetivar tais direitos que são desrespeitados pela entidade familiar, base dessa mesma sociedade que, há um tempo, por meio da representação política, ou seja, por meio de seus legisladores, edita normas reguladoras. Estas normas, porém, não são cumpridas e mesmo desrespeitadas pelas próprias famílias e, logo, pela sociedade, igualmente, de forma efetiva, o que reduz esse idoso a um processo de exclusão, na concretude de suas relações familiares e sociais.
Nesse sentido, é a família que deve cuidar e tratar do idoso, mantendo-o perto de si, cabendo ao Estado oferecer o amparo necessário quando essa possibilidade não puder ser assegurada por uma família deficitária de meios econômicos para tanto. E é aqui, nesse ponto, que se chega a uma espécie de dimensão muito problemática, uma vez que, mesmo estes idosos estando inseridos nesse convívio familiar, é principalmente nesse contexto, como já referido, que sofrem todos os meios de violência, não só física, mas psicológica e financeira, tendo sua dignidade tolhida: é a própria família que, por suas atitudes, retira a autonomia do idoso, muitas vezes sob a desculpa de cuidar de seu bem-estar, de maneira que, sob o pretexto de protegê-lo e cuidá-lo, acaba alijando-o das decisões, tirando-lhe sua liberdade de escolha, desde ações cotidianas, como quanto ao que comer e o que vestir, até atingindo-o de maneira ainda pior, ou seja, decidindo como deve gastar seu dinheiro (Braga, 2011).
Por conta disso, e como para consubstanciar o referido problema dialético desencadeado no enfrentamento da questão social do envelhecer, vale transcrever o estudo que Maria Cecília de Souza Minayo realiza, acerca dos tipos de violência praticados contra os idosos, como sendo os que se seguem, de forma que, se são considerados crimes, é porque assim o foram definidos pela respectiva legislação que os criminaliza, enquanto que são praticados pela mesma sociedade e, pior, pelas famílias, em direção aos quais as normas se aplicam:
Abuso físico: maus tratos físicos ou violência física são expressões que se referem ao uso da força física para compelir os idosos a fazerem o que não desejam, para feri-los, provocar-lhes dor, incapacidade ou morte.
Abuso psicológico: violência psicológica ou maus tratos psicológicos correspondem a agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar os idosos, humilhá-los, restringir sua liberdade ou isolá-los do convívio social.
Abuso sexual: violência sexual são termos que se referem ao ato ou jogo sexual de caráter homo ou hetero-relacional, utilizando pessoas idosas. Esses abusos visam a obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças.
Abuso financeiro e econômico: consistem na exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou ao uso não consentido por eles de seus recursos financeiros e patrimoniais. Esse tipo de violência ocorre, sobretudo, no âmbito familiar. (Minayo, 2017, p. 03-04).
Além desses fatos acima transcritos, a mesma autora ainda esclarece acerca de outras práticas, agora caracterizadas como sendo de omissões de cuidado, marcados por negligência e mais abandono, que, igualmente e de forma intensa, mostram o quadro dramático da violação dos direitos dos idosos; de forma que, por um viés, sofrem as ações de abuso de maneira direta e, por outro, enfrentam as práticas omissivas que, da mesma forma, são lesivas aos seus direitos fundamentais, bem como à sua vivência digna:
Negligência refere-se à recusa ou à omissão de cuidados devidos e necessários aos idosos, por parte dos responsáveis familiares ou institucionais. A negligência é uma das formas de violência contra os idosos mais presentes no país. Ela se manifesta, frequentemente, associada a outros abusos que geram lesões e traumas físicos, emocionais e sociais, em particular, para as que se encontram em situação de múltipla dependência ou incapacidade.
Abandono é uma forma de violência que se manifesta pela ausência ou deserção dos responsáveis governamentais, institucionais ou familiares de prestarem socorro a uma pessoa idosa que necessite de proteção.
Autonegligência diz respeito à conduta da pessoa idosa que ameaça sua própria saúde ou segurança, pela recusa de prover cuidados necessários a si mesma. (Minayo, 2017, p. 03-04).
Chega-se, dessa forma, a este ponto relevante: o ordenamento brasileiro dispõe de base legal para o enfrentamento do problema, através de um Estatuto apropriado e o Estado, por meio de ações governamentais, pelo menos enquanto tais ações sociais interessavam às políticas desenvolvidas, apresentou esse amplo relatório da situação do idoso no país que, infelizmente, aponta a sociedade e mais precisamente a família como a responsável pelo núcleo duro onde ocorrem as maiores violações aos direitos e garantias que essa mesma base legal prescreve. (Manual de enfrentamento à violência contra a pessoa idosa - Coordenação Geral dos Direitos dos Idosos: Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República). Eis o enorme desafio social, ou seja, o despertar da sociedade e da própria família para o problema do envelhecer e de, por esta percepção, vir a tornar tais prerrogativas como concretas, desde a intimidade dessa unidade básica, até a efetiva mudança paradigmática do tratamento ao idoso atingir o contexto geral mais amplo, da sociedade como um todo.
Apresentamos, a seguir, três casos paradigmáticos do enfrentamento dos abusos praticados contra os Idosos no Brasil, levados a efeito por alguns Tribunais Superiores, para demonstrar que, a partir do marco regulatório representado pela legislação específica, a prestação jurisdicional do Estado tem se dedicado a procurar resolver essa mazela social.
A questão dos planos de saúde: A Secretaria de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça apresentou as principais teses jurídicas adotadas pela Corte em relação aos direitos dos idosos. Assim, de acordo com o entendimento pacificado na 2ª Seção, colegiado formado pela 3ª e 4ª Turmas do STJ, o Estatuto do Idoso tem aplicação imediata sobre todas as relações jurídicas de trato sucessivo, ainda que firmadas anteriormente à sua vigência, por se tratar de norma cogente, ou seja, imperativa e de ordem pública. A uniformização desse entendimento deu-se no julgamento do Recurso Especial 1.280.211, em abril de 2014, sob a relatoria do ministro Marco Buzzi. Nele discutiu-se a existência de abuso de cláusula contratual que reajustava mensalidade de plano de saúde em razão da mudança de faixa etária de uma consumidora, após completar 60 anos. O contrato foi celebrado em 2001, período anterior à vigência do estatuto. Os ministros consideraram que o direito à vida, à dignidade e ao bem-estar das pessoas idosas encontra especial proteção no artigo 230 da Constituição de 1988, tendo culminado na edição do Estatuto do Idoso, cujo interesse social exige sua aplicação sobre todas as relações jurídicas de trato sucessivo, incluindo os contratos anteriores à sua vigência, a exemplo do plano de saúde. Conforme o entendimento jurisprudencial do STJ é proibida a cobrança de valores diferenciados com base em critério etário, pelos operadores de plano de saúde, quando caracterizar discriminação ao idoso, ou seja, quando a prática impedir ou dificultar o seu acesso ao direito de contratar por motivo de idade. Esta posição se confirmou no Agravo em Recurso Especial 1.045.603, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em outubro de 2017. (https://www.conjur.com.br/2018-abr-09/stj-divulga-jurisprudencia-relacao-direito idosos).
Idoso em situação de risco: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - TJ/RJ- Apelação: APL 0050511 - 69.2015.8.19.002 - Vara da Infância/Juventude/Idoso - Quarta Câmara Cível.
EMENTA: AÇÃO DE TUTELA DE DIREITO INDISPONÍVEL. IDOSO EM SITUAÇÃO DE RISCO. INTERNAÇÃO EM ABRIGO. AFASTAMENTO DA MULTA. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO: 1 - Ação cível de tutela de direito indisponível, ajuizada pelo Ministério Público, pleiteando internação de idoso em abrigo. 2 - Senhor que recebeu alta hospitalar depois de sofrer AVC, que não possui família ou fonte de renda. 3 - Quadro que demonstra situação de risco em razão da dificuldade de deambular, necessitando de cuidados especiais. 4 - A legitimação da Municipalidade decorre do teor dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal. 5 - Desnecessidade de apresentação de laudo atualizado diante da patente irreversibilidade da sequela apresentada. 6 - Multa que deve ser afastada por não ser razoável, vez que o idoso, até o abrigamento, restou acolhido em hospital da municipalidade, bem como considerando a dificuldade em se localizar vaga apara sua internação. Em 30.11.2016. (https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/417240187).
Crime praticado contra idoso: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul -TJ/RS - Apelação Crime - ACR 70077197424 / RS. Sexta Câmara Criminal. Diário da Justiça de 30.08.2018. EMENTA. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES PREVISTOS NO ESTATUTO DO IDOSO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA: 1 - Materialidade e autoria: demonstradas pelos elementos probatórios encartados ao caderno processual, mormente pelos depoimentos colhidos na audiência de instrução. Palavra contraditória do marido da ré e na ausência de qualquer explicação da própria, em confronto com a palavra firme e segura da sobrinha da vítima, em Juízo e em fase de inquérito policial (acompanhada por sua tia). Manutenção do édito condenatório proferido na origem, inexistindo no caderno processual qualquer elemento de convicção capaz de excluir o crime e/ou isentar a ofendida de pena. 2 - Tipicidade: devidamente comprovada a prática do delito previsto no artigo 102 da Lei 10.741/2003, visto que a ré: (i) se apropriou de valores da vítima idosa; (ii) conferindo-lhe destinação diversa de sua finalidade. 3 - Dosimetria da pena: quantum da pena privativa de liberdade mantida. 4 - Indenização à vítima: mantida. Vencida a Relatoria no ponto. APELO NÃO PROVIDO. POR MAIORIA. (https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/621572768/apelacao-crime-acr-70077197424-rs)
4. Considerações finais
O ordenamento jurídico brasileiro, há quinze anos, editou o marco regulatório que, estabelecido pela Lei 10.741/2003, consubstanciou o enfrentamento legislativo da demanda social do aumento da população idosa do Brasil. Entretanto, este fenômeno social insere-se num contexto desafiador, em função de uma população que percebe a si mesma e se afirma como jovem, relegando historicamente a velhice a um processo de invisibilidade social, de forma a reafirmar um enfoque depreciativo do ser velho e do processo do envelhecer. Urge, portanto, uma radical mudança de paradigma, para que as disposições legais não permaneçam como meras formulações abstratas, ou belas propostas, sem que se efetivem enquanto direitos e garantias realmente vivenciados por essa parcela vulnerável da população.
Infelizmente, o Manual de enfrentamento à violência contra a pessoa idosa não só evidencia os abusos e omissões que ferem os direitos legalmente assegurados aos idosos no país, mas evidencia que a fonte de origem das agressões costuma ocorrer no seio das famílias; onde idosos enfrentam um viver dificultado pelas condições atentatórias à sua dignidade como pessoas. A partir dessa realidade social constatada, exige-se, do Estado, a efetivação de políticas públicas que possam tratar desse enfrentamento, principalmente no que diz respeito ao processo aflitivo da violência intrafamiliar praticada contra o idoso.
Por fim, cabe sublinhar os desafios representados para a concretização dos direitos dos idosos enquanto realidade social efetiva, uma vez que o legislador eleito por essa sociedade oferece a necessária base legal para enfrentar o problema, enquanto essa mesma sociedade que o elegeu é que pratica, na intimidade das próprias famílias, o maior número de abusos e agressões a esses mesmos direitos. Evidencia-se ,então, um processo de contradições dialéticas entre o arcabouço normativo, próprio de uma incipiente democracia representativa, que se vê projetando normas não cumpridas pelas próprias forças sociais, as quais delegaram a seus representantes o referido poder de legislar sobre essas questões e demandas; tendo-se que chamar o Estado, então, para agir não apenas na omissão da sociedade, mas para conter as agressões que esta vem a perpetrar contra os direitos que, a partir da formulação legislativa, não apenas deveria respeitar, mas tratar de sua efetivação. O paradigma legislativo já foi alterado, há quinze anos; entretanto, o paradigma social exige continuada atenção, para que se modifique e propicie os meios para que a vida dos idosos transcorra de forma digna, em um processo de envelhecer condizente com sua enunciação enquanto direito fundamental da pessoa humana.