1. Introdução
Os membros dos comitês de ética revisam as pesquisas que envolvem seres humanos para decidirem se elas seguem procedimentos adequadamente éticos. Para fazer isso, cada comitê precisa de uma combinação adequada de pessoas. Alguns membros devem ter formação científica ou de pesquisa para decidir sobre termos de compromissos e regulamentos institucionais, legislação específica e padrões de conduta profissional. Outros membros devem ter formação que não seja científica para que a revisão conte com uma avaliação a partir de uma perspectiva completamente diferente da do cientista, podendo esse membro ser um representante da comunidade. Essa particiapação do "leigo" foi idealizada para ajudar os comitês de ética considerar como a pesquisa pode afetar a comunidade envolvida na investigação (Hugman et al., 2011).
O Conselho Nacional de Saúde (CNS), no uso de atribuições que lhe foram conferidas, determinou que os colegiados dos comitês de ética em pesquisa (CEP) sejam constituídos por sete ou mais membros, dentre eles, pelo menos um membro representante da comunidade - sem vínculo ou conflito de interesse com a instituição que sedia o CEP -, respeitando a proporcionalidade de um membro da comunidade para cada sete membros institucionais (Norma Operacional nº 001/2013) (Brasil, 2013).
A decisão do CNS possibilita a abertura dos comitês de ética para além dos domínios institucionais, mas ao mesmo tempo, a indeterminacão das competências do representante da comunidade no CEP, pode comprometer sua participação efetiva, uma vez que permite que lhe sejam atribuídos um número excessivo de significados, os quais serão explorados no decorrer deste artigo. A compreensão das atribuições do representante da comunidade como membro do CEP, bem como das possibilidades dessas atribuições serem alcançadas com sucesso, ainda se apresentam como uma lacuna a ser preenchida para esse conhecimento.
É nesse contexto, muito geral e rapidamente delineado, que este estudo se propõe refletir sobre os desafios da inclusão e permanência do controle social nos comitês de ética em pesquisa. O exame desses desafios vai revelar algumas ambiguidades nas concepções dessa inclusão. Simultaneamente, mostrar-se-á que o envolvimento do controle social nos trabalhos dos comitês de ética pode ser favorecido pela imposição de um representante da comunidade. Por outro lado, a imposição de modo isolado, parece não garantir o sucesso idealizado pelo legislador. Há questões importantes a serem analisadas sobre essa representação, principalmente sobre a escolha e capacitação do representante, a escolha da entidade que o elegerá o representante e o modo pelo qual, tanto como o representante como a entidade serão escolhidos.
2. Conceitos básicos de controle social
Historicamente, o termo "controle social" foi introduzido no comportamento social das interações e organizações humanas pelos sociólogos estadunidenses Albion Woodbury Small (1854 - 1926) e George Edgar Vincent (1864 - 1941) (Vallet, 2017). O controle social, de modo geral, se firma por laços sociais de apego entre os indivíduos, compromissos com as regras sociais, envolvimento com comportamentos sociais típicos e crença em um sistema de valores básicos (Hill; Pollock, 2015).
A teoria do controle social pressupõe que os relacionamentos, compromissos, valores, normas e crenças das pessoas as encorajam a não infringir as normas sociais. Assim, se os códigos morais são internalizados e os indivíduos estão ligados entre si, tem-se uma participação ampliada da comunidade a quem pertencem e, portanto, a comunidade delimitará a propensão de ocorrência de atos desviantes (Chekroun, 2008).
Michel Foucault (1926-1984), filósofo contemporâneo e crítico das instituições sociais, considera que a vigilância exercida pelo controle social estabelece equilíbrio de cumplicidade de poderes. O direcionamento do controle social pode moldar as pessoas (os representantes) a interpretarem e disseminarem normas, costumes e ideologias, simplesmente por viverem dentro de um contexto cultural particular. Desse modo, sem o exercício da autonomia e da liberdade, a entidade ou o sujeito representante do controle social no CEP dificilmente se afastará das forças de cumplicidade indesejadas. Nesse contexto, o sucesso do controle social se valerá da disciplina e da vigilância da autonomia e da liberdade para não se desviar das "conformidades" (Candiotto, 2012).
No Brasil, o termo "controle social" é empregado para representar o controle da sociedade civil sobre as ações do Estado (Bravo; Correa, 2012). A ideia que alicerça os meios de controle das coisas públicas pela sociedade é diminuir a possibilidade de desvio das normas sociais, preservando a conformidade. Essa interpretação sugere que os meios internos de controle (dentro dos comitês de ética), quando eficientes, são poderosos no sentido de mitigar a probabilidade de desvios de conduta. Isso contrasta com os meios externos de controle, nos quais os indivíduos se submetem a uma figura de autoridade que os ameaça com sanções no caso de desobediência às normas (Rueda; Tanner, 2016). Assim, o controle social (controle interno) se apresenta como educativo, enquanto o controle externo se apresenta como punitivo.
3. O representante dos usuários nos comitês de ética em análise
A regulamentação da participação do controle social do CEP é uma preocupação antiga e não acabada do CNS. Um ano após a aprovação das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil (Resolução 196/96) (Brasil, 1996), o CNS editou a Resolução do CNS nº 240/1997, diante a necessidade de definir o termo "usuário" para efeito de participação nos colegiados dos comitês de ética.
Para esse fim, a Plenária do CNS aplicou ao termo "usuário" uma interpretação ampla, contemplando coletividades múltiplas que se beneficiam com a pesquisa e cujo representante dessa coletividade, uma pessoa capaz de expressar pontos de vista de interesses de indivíduos e/ou grupos de participantes de pesquisa, seria indicado, preferencialmente, por Conselhos Municipais de Saúde (Brasil, 1997). A partir do ano de 2009, por meio da Norma de Procedimentos Nº 006/09 - CNS, o representante da comunidade e membro do controle social passou ser denominado de "representante de usuário" (RU) (Brasil, 2009).
Complementarmente, o legislador acrescentou à definição de usuário alguns entendimentos (citados ipsis litteris): "em instituições de referência para públicos ou patologias específicas, representantes de usuário devem necessariamente pertencer à população-alvo da unidade ou a grupo organizado que defenda seus direitos; nos locais onde existam fóruns ou conselhos de entidades representativos de usuários de e/ou portadores de patologias e deficiências, cabe a essas instâncias indicar os representantes de usuários nos Comitês de Ética" (Brasil, 2009).
Percebe-se, nesse cenário, que houve forte tendência do legislador (CNS) a reforçar o olhar para o setor social que ele representa, isto é, a saúde. Pode-se notar na normatização do RU nos comitês de ética, a influência enraizada aos conceitos tradicionais das pesquisas biomédicas em detrimento às pesquisas em humanidades (Brasil, 2012).
Atualmente, o termo "representante de usuário" aguarda decisão do CNS para ser alterado para "representante do participante de pesquisa (RPP)". A proposta de nova resolução, reformará as normas e procedimentos vigentes relacionados ao papel dos representantes do controle social no CEP. As mudanças à vista na nomenclatura do RU serão acompanhadas de inovações. Estão projetadas normas para garantir os meios de ressarcimento ou custeio das despesas dos membros dos comitês de ética indicados para o controle social, bem como, para aumentar o número mínimo de membros do controle social no CEP, não limitando os participantes à área da saúde.
Em muitos países, entre os quais se inclui Brasil, por muito tempo o olhar dos comitês de ética se voltou, prioritária ou quase exclusivamente, para as preocupações com as pesquisas biomédicas. Atualmente, muitos países ainda enfrentam entraves para resolver as diferenças de condutas próprias de diferentes métodos de pesquisa. O Brasil, recentemente, no ano de 2016, dispôs normas, especialmente aplicáveis às pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, reconhecendo de modo positivo a necessidade de distinção de análise ética de protocolos de pesquisa com métodos centrados na investigação de disciplinas dessa grande área do conhecimento (Brasil, 2016).
A falta de clareza do papel ou função do RU nos nos instigam a examinar a maneira pela qual outras experiências projetam e buscam a participação do público nos comitês de ética. A participação de RU nos comitês de ética e o modo como ele articula sua atuação com os anseios da comunidade, permitirá, ao longo do tempo, entender quanto o controle social foi favorecido por sua inserção nos comitês.
No âmbito global, há uma miscelânea de condutas institucionais, no que se refere ao controle social de CEP. A pluralidade cultural, dificulta a adoção de uma tipologia unificada sobre a atuação de tal controle. Nos países da Europa Ocidental, por exemplo, embora estejam integrados pela União Europeia, de uma maneira ou de outra, a dinâmica dos comitês de ética em pesquisa é exercida por distintos modos de pensamento. O acordo dos países com as diretrizes, recomendações ou convenções nem sempre é harmônico e pacificado. É o caso da França, que difere da maior partes dos membros da União Europeia. O representante comunitário francês nos comitês de ética não é fruto de exigência legal, ocorre por exigência interna dos próprios colegiados (Fieve, 1998).
Um exame mais cuidadoso dos pré-requisitos para a atuação dos representantes do públicos nos comitês de ética revela que eles, frequentemente, são estabelecidos em função de negações. Na Suécia, Dinamarca e Reino Unido, não podem ser profissionais de saúde. Ainda no Reino Unido, não podem ser vinculados a serviços de saúde. Na Bélgica, não podem ser trabalhadores de hospitais. Na Noruega, são vetados os profissionais de saúde que representam hospitais, advogados, psicólogos e especialistas em ética, então, que pertençam a grupos de pacientes, devido à proibição de representar interesses setoriais (Matar; Hansson; Höglund, 2019; Goldbeck-Wood, 1998; Steinkamp et al, 2007).
No Brasil, enquanto se exige composição paritária nos comitês de ética em relação aos demais membros dos comitês de ética, de tal forma que o RU corresponda a 15% do total de membros do CEP, experiências de outros países determinam proporções diferentes. Na Dinamarca, por exemplo, a maioria dos comitês tem de 7 a 11 membros, sendo que a maior parte deverá ser composta por leigos (Holm; Wulti, 1998). No Reino Unido, um terço dos membros de Comitês de Ética em Pesquisa Multicêntricos e um quarto dos membros dos Comitês de Ética Locais devem ser constituídos por leigos, que serão posteriormente treinados para exercer suas funções (ENRRC, 2020). Na França, os comitês de ética especialistas em análises de pesquisa biomédica incluem um terço de membros não ligados a atividades de saúde (Roelandt; Stiennon; Schtsmans, 2006). Por outro lado, há países, como Itália e Chile, onde a representação pública é menos numerosa. Naqueles dois países há a exigência de pelo menos um representante da comunidade (CER, 2020; Correa, 2011) Na Rússia, não há previsão de representante da comunidade entre os cinco membros dos comitês locais ou regionais (RMA, 2000). Nos Estados Unidos, além de um membro público, é exigido que, no mínimo, um dos membros do CEP seja advogado (AERA, 2011).
A preocupação em relação ao número de RU nos comitês brasileiros não deveria ser a inquietação prevalente do sistema regulador, pois a presença de um maior ou menor número de representantes não garante a efetividade da representação. Para realizar a análise ética de pesquisas com seres humanos, há a necessidade de alguns conhecimentos prévios. Desse modo, sem a previsão de capacitação permanente dos RU, há forte tendência de tais pessoas experimentarem a sensação de desigualdade para com os demais membros do CEP, que são detentores de maior experiência em pesquisa (Lopes, 2006).
As relações de desigualdade acadêmica habitualmente posiciona o expert ou aquele com maior prestígio profissional numa posição de destaque ou poder sobre os menos qualificados. Não é rara a precariedade da participação social em diversos outros Conselhos e/ou Comitês (Conselhos Municipais de Saúde, Educação, Segurança, entre outros), causada pela submissão a poderes locais dominantes (Abramovay, 2001). Talvez, uma providência mitigadora seja concentrar programas de capacitação permanente que visem promover a articulação da pesquisa com a sociedade e a permanência do RU no CEP. É muito possível que a percepção da falta dessa articulação dos comitês de ética com a sociedade tenha desencadeado a imposição de participação do RU nos comitês de ética.
Mesmo que a intenção não tenha sido intenção de equiparar os RU nos comitês de ética com o usuário representante de Conselhos de Saúde, os pré-requisitos se assemelham. Mais precisamente, o RU nos comitês de ética não pode ser profissional da saúde, representante de poder Executivo, Legislativo ou Judiciário, nem ter qualquer vínculo com a IES que sedia o CEP. Sendo a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) subordinada ao CNS, ela arrasta consigo um ideal de controle social parecido com os princípios formadores do controle social para o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS). Como os dois colegiados (saúde e ética) exercem funções diferentes, parece coerente supor que as necessidades de qualificação desses dois representantes também guardassem diferenças.
O entendimento atribuído ao RU de "um homem comum (leigo)", ou seja, que não apresenta expertise de pesquisador, carrega alguma ambiguidade que ainda necessita pacificação. Se por um lado não é esperado dele habilidades em termos de formulação ética, tecnológica, metodológica ou científica, do outro, é esperado competência para refletir o olhar daquele que é recrutado para participar da pesquisa. Desse modo, seja qual for o papel predominante do RU nos comitês de ética a representação será estanque às limitações de sua própria realidade cultural, distante da outorga de representar o público em geral. Assim, o RU e a entidade social que o indicador, serão outorgadas, de fato, como representantes da sociedade em geral, quando aclamada por ela.
4. Abertura do comitê ético em pesquisa ao público
Seja qual for o entendimento do papel do RU nos comitês de ética, ele parece terem sido chamado para contrabalançar a percepção de risco, informação e consentimento entre o pesquisador e o participante da pesquisa, com a finalidade de fortalecer os cuidados éticos para com os participantes da pesquisa. Por outro lado, parece duvidoso que um CEP com maior número de RU seja mais bem sucedido do que outro com menor número.
A dificuldade da participação do RU nos comitês de ética, geralmente é carregada de inadequações, seja pelo sistema voluntário perante o trabalho a ser prestado, sem possibilidade de receber pagamento, como pode ser pelo desconhecimento dos RU a respeito da dimensão técnica e científica dos problemas a serem enfrentados na pesquisa. Contudo, ainda que essa participação encontre desafios a serem vencidos, ela está alinhada com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Essa Convenção, atribui aos comitês de ética, também, o dever de promover o debate, a educação, a sensibilização e a mobilização do público em geral sobre questões bioéticas (UNESCO, 2006). No entanto, há ainda a necessidade de se demonstrar resultados baseados em evidências dos progressos proporcionados pela participação do RU nos comitês de ética. Essa necessidade de esclarecimentos poderá ser superada com futuras investigações, desenhadas com metodologias apropriadas.
A regulação descentralizada do sistema CEP/Conep, ao mesmo tempo que favorece a participação da comunidade local no CEP, ela garante efetividade de controle social. Um exemplo bem-sucedido é fornecido pela experiência britânica. No Reino Unido, os membros leigos de CEP locais são nomeados por uma Autoridade de Pesquisa em Saúde (Health Research Authority) subordinada ao NHS (National Health Service), sistema de Saúde Público do Reino Unido equivalente ao SUS brasileiro. Após efetivados, assumem, necessariamente, a presidência dos Comitês. Nesse gesto, parece claro a intenção em realizar uma robusta articulação com o público. No Brasil, algumas vezes a participação do RU é fervorosa, a ponto de um mesmo representante compor representações em diferentes comitês de ética, no mesmo período. Observa-se, também situações inversas, em que a participação do RU não alcança as expectativas, causando distanciamento das obrigações. Esse distanciamento, quando raramente identificado, não parece ter causa única e é de difícil solução.
Por fim, a abertura do controle ético da pesquisa ao controle social brasileiro ocorre, principalmente pela imposição de normas vindas do próprio controle social. Diante disso, é possível pressupor, com razoável segurança, que a natureza jurídica do sistema CEP/Conep impactou a abertura dos comitês ao controle social de modo impositivo. Essa atitude, em si mesma, além de não garantidora de sucesso é dependente de ações complementares de apoio que, embora estejam em andamento, caminham de modo tímido.
5. Considerações finais
O funcionamento de comitês de éticas em pesquisa envolvendo seres humanos é inevitável e ditada pelas atuais normas sociais. Parece minimamente razoável que o requisito da presença de RU nos comitês de ética em pesquisa não é, por si só, garantia de que as dimensões públicas serem devidamente representadas como desejado pelo legislador. Pertencer a um comitê de ética requer habilidades especiais do representante. A aquisição dessas habilidades necessita, no mínimo de duas ações conjugadas: a dedicação ao conhecimento das normas do sistema regulatório, que são próprias, vastas e complexas; e, o empenho do sistema regulador em capacitar periodicamente os membros usuários, sem prejuízo à capacitação dos demais membros. De modo resumido, não é suficiente a Conep determinar e os comitês de ética recrutarem membros RU para representarem a comunidade, se não houver, por parte da Conep, estratégias para garantir a capacitação, o acesso e a permanência dos RU nos comitês de ética.
As reflexões apresentadas neste artigo conduzem a uma observação final, qual seja, de que a abertura de comitês de ética em pesquisa ao público não deve ocorrer, nem deve ser analisada, com base únicamente nos termos da exigência da participação de um número mínimo de RU como membro colegiado. De fato, a abertura de comitês de ética em pesquisa ao público deve ser perseguida pelo sistema regulador mediante múltiplos canais, inclusive com maior liberdade aos comitês locais para decidirem sobre a escolha do representante que melhor atenda as necessidades de sua especificidade. Nesse sentido, é necessário a regulação do sistema CEP/Conep monitorar a garantia de liberdade e autonomia aos comitês de ética, de modo a encontrar, dentro de cada um deles, o melhor meio de articular a pesquisa científica em relação à sociedade.