Introdução
A manutenção do estado de hidratação é fundamental para o desenvolvimento de um bom desempenho atlético em várias modalidades esportivas1, especialmente para atletas que realizam atividades intensas e prolongadas no calor2. Por outro lado, a desidratação induzida pela prática de exercícios físicos em ambiente quente pode causar prejuízos na função cognitiva e motora3 do atleta (aqui denominada de função cognitiva‐motora).
Sabe‐se que o desempenho ótimo no esporte depende da função cognitiva‐motora (tal como: coordenação motora, tempo de reação simples e memória) para a tomada de decisão e execução de habilidades complexas4. E além do desempenho cognitivo‐motor ser afetado pelas condições de ambiente quente, hipertermia e/ou desidratação, a capacidade de manutenção do exercício (desempenho físico) também pode ser prejudicada5,6.
O desempenho cognitivo‐motor é avaliado quando ocorrem perturbações no funcionamento cerebral (concussão), que podem ser resultantes de vários sinais e/ou sintomas não específicos, tais como em comportamentos físicos anormais7. Esses prejuízos no desempenho cognitivo‐motor parecem ocorrer quando 1% ou mais da massa corporal (MC) é perdida devido à restrição de líquidos, não aclimatação ao calor, desidratação e/ou esforço físico, com repercussões no desempenho físico3. Parece que a perda de apenas 1% da MC é o suficiente para reduzir o desempenho cognitivo‐motor3-5.
No entanto, ainda existe a necessidade de mais investigações acerca dos efeitos da desidratação sobre o desempenho físico e cognitivo‐motor, independentemente do ambiente de realização do exercício, visto que muitas dessas informações são baseadas em evidências8,9. Assim, o objetivo desse trabalho foi avaliar o efeito de diferentes estados de hidratação sobre o desempenho físico e cognitivo‐motor de atletas submetidos a exercício em ambiente de baixo estresse ao calor.
Método
Amostra
Dezesseis ciclistas treinados e voluntários, do sexo masculino, participaram do estudo. Estes foram divididos em 2 grupos de 8 atletas cada: grupo com perda inferior a 2% da MC, denominado grupo G2% (34.1 ± 2.3 anos; 69.6 ± 2.7 kg; 1.73 ± 0.02 m; 11.4 ± 1.8% de gordura corporal [%G]; e, 58.01 ± 52.17 ml.kg−1.min−1 de consumo máximo de oxigênio [VO2máx]); e, grupo com perda superior a 3% da MC, denominado grupo G3% (32.5 ± 2.2 anos; 66.6 ± 12.1 kg; 1.67 ± 0.02 m; 9.2 ± 0.5%G; 62.21 ± 0.83 ml.kg−1.min−1 de VO2máx).
Os ciclistas tinham uma média de 3 anos de treinamento (especialmente em ambiente quente e, assim, reconhecidos como aclimatados ao calor). Eles não apresentaram qualquer tipo de doença ou uso de recursos ergogênicos que pudessem interferir nos resultados da pesquisa. De acordo com a resolução 466/12 e a Convenção de Helsínquia10, todos os sujeitos foram informados sobre os procedimentos do estudo e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas, sob protocolo: 017640/2011‐61.
Procedimentos
Uma semana antes do dia do experimento, os atletas visitaram o laboratório para coleta de: MC, altura e dobras cutâneas (para determinar o %G). Em seguida, realizaram um teste incremental máximo (TIM), para determinação do VO2máx através de um analisador de gases automático (Quark CPET Cosmed®, Roma, Itália). Todos foram orientados a manter o seu cronograma de treinamento habitual e consumir líquidos (∼3L.d−1, sem uso de bebidas cafeínadas) 2 dias antes do experimento.
No dia do experimento, foram fornecidos ∼500 mL de água aos ciclistas, antes de iniciar o protocolo experimental, para maior homogeneidade da hidratação. Em seguida, após breve aquecimento, iniciaram uma sessão de 2 horas de ciclismo a 80 rpm, com intensidade entre 75‐85% da frequência cardíaca máxima estimada, acompanhado por frequêncímetro (FT1 Polar®, Kempele, Finlândia). Imediatamente após as 2 horas de ciclismo, os atletas foram submetidos a um novo TIM (TIMn [sem análise gasosa]) para induzir à exaustão (MAX) e avaliar os desempenhos físico e cognitivo‐motor.
Análise sanguínea
Sangue foi obtido em repouso (0 min), a intervalos de 30 min, durante o ciclismo (30, 60, 90 e 120 min) e após o TIMn. Parte da coleta foi usada para análise da creatinina (método colorimétrico, Jaffé modificado; reagente Labtest®, Minas Gerais, Brasil), através de um analisador automático (Dade Behring®, Eschborn, Alemanha). Outra parte do sangue foi usada para análise da hemoglobina e hematócrito, através de um analisador hematológico (Human®, Hessen, Alemanha). Esses dados serviram como marcadores sanguíneos do estado de hidratação.
Avaliação do desempenho físico e cognitivo‐motor
O desempenho físico foi avaliado pelo tempo de exaustão imediatamente após o TIMn (momento pós). Já o desempenho cognitivo‐motor foi avaliado tanto antes de iniciar o protocolo de ciclismo (momento pré), quanto no momento pós, através de: memória imediata, como descrita por McCrory et al.7; coordenação motora, utilizando o teste dedo‐nariz adaptado de McCrory et al.7, e o tempo de reação simples, como descrito por Eckner et al.11.
Avaliação do estado de hidratação
O estado de hidratação foi avaliado pela variação percentual da MC (Δ %MC) e por amostras de urina (aqui denominados de marcadores simples do estado de hidratação), também coletados nos momentos pré e pós. A urina foi usada para análise da sua coloração e gravidade específica (GE). A coloração urinária foi determinada através da escala de cores proposta por Armstrong et al.12. A GE foi analisada por um refratômetro manual (Biobrix®, São Paulo, Brasil). De posse desses marcadores, o estado de hidratação foi classificado de acordo com Casa et al.3.
A taxa de sudorese também foi calculada de acordo Casa et al.3, onde: taxa de sudorese = MC do momento pré ‐ MC do momento pós + total de líquidos ingeridos durante o protocolo (contado como 0, pois não houve ingestão de líquidos) ‐ volume total urinário no momento pós/tempo do protocolo em horas.
Durante todo o experimento, foram registradas a temperatura ambiente, umidade relativa do ar, movimento do ar e radiação para calcular o índice bulbo úmido temperatura globo (IBUTG), através de um monitor de estresse ao calor (Instrutemp®, São Paulo, Brasil). Além disso, a temperatura corporal foi registrada através de um termômetro timpânico (Genius™ 2®, Minnesota, EUA), determinando a temperatura retal equivalente, oferecido pelo próprio termômetro. Durante todos os momentos de coleta, também foram registradas as sensações térmicas e de conforto dos atletas13.
Análise estatística
Os dados são expressos como média e erro padrão. Após aplicação de testes de normalidade e/ou de igualdade de variância, os dados do IBUTG, sensações (térmica e conforto) e sanguíneos, foram analisados por ANOVA one‐way; e as mudanças no grupo foram analisadas por ANOVA two‐way por medidas repetidas, usando o teste de Tukey como post hoc. Os desempenhos físico, cognitivo‐motor e os marcadores simples do estado de hidratação foram analisados por teste t Student pareado e não‐pareado. Em qualquer condição, um nível de significância de p < 0.05 foi adotado.
Resultados
Houve diferença significativa apenas quanto ao Δ %MC entre G3% e G2% (p < 0.001), e na GE urinária entre os momentos pré e pós‐ciclismo, em ambos os grupos (G2%, p = 0.016; G3%, p = 0.008). Apesar disso, os valores iniciais da coloração e GE urinárias demonstraram que os grupos já estavam desidratados antes do início da sessão de ciclismo (tabela 1).
†Diferença significativa entre os grupos.
*Diferença significativa em relação ao momento pré do mesmo grupo.
Apesar de o IBUTG aumentar em ambos os grupos (p < 0.001), este indicou um baixo estresse térmico. No momento MAX, o IBUTG atingiu 19.8 ± 0.1°C e 19.6 ± 0.2°C, em G2% e G3%, respectivamente, sem diferença entre os grupos (fig. 1A). Não houve diferença significativa nos valores equivalentes para temperatura retal em nenhum momento (fig. 1B). O mesmo ocorreu para a sensação térmica (fig. 1C) e sensação de conforto (fig. 1D), apesar do aumento dessas variáveis no decorrer do ciclismo, em ambos os grupos.
As concentrações de creatinina não apresentaram diferença significativa entre os grupos (fig. 2A), apesar do seu aumento ocorrer durante o protocolo nos grupos. Os valores de hemoglobina demonstraram um aumento significativo a partir do momento 30 no G2% (p = 0.006), e o G3% aumentou apenas no MAX, dentro do grupo (p < 0.05) (fig. 2B). Os hematócritos também não apresentaram diferença significativa entre os grupos (p > 0.05), apesar do aumento significativo dentro do G3% no momento MAX (p < 0.05) (fig. 2C).
Nestas condições, ambos os grupos apresentaram tempo de exaustão similares e não foram observadas alterações significativas no desempenho cognitivo‐motor induzidas pela desidratação (tabela 2).
Discussão
Os desempenhos físico e cognitivo‐motor podem ser prejudicados na desidratação causada pelo exercício em ambientes quentes14,15. Esse estudo observou um estado de desidratação nos grupos tanto antes, quanto após o ciclismo, corroborando outros estudos1,16. Armstrong et al.12, avaliando tenistas durante jogos no calor, observaram um estado de desidratação antes de iniciarem as partidas. Casa et al.17 também observaram alterações na coloração urinária (∼6) e GE (∼1025 g/l) após corrida no calor.
Além disso, acredita‐se que a perda de MC entre 1‐3% pode causar prejuízos no desempenho físico e cognitivo‐motor3. No estudo de Ganio et al.5, a perda de 16% da MC, em ambiente sem estresse térmico, induziu prejuízos cognitivos‐motores. Mas parece que esse prejuízo não depende somente do grau de desidratação (perda de 2% da MC), mas também da hipertermia e aclimatação3,18. E, apesar do ACSM8 sugerir que uma perda da MC superior a 2% prejudica o desempenho cognitivo‐motor, alerta que a evidência é mais forte para um efeito negativo de hipertermia.
Esses argumentos corroboram os resultados obtidos nesta pesquisa, levando em consideração que o ambiente foi de baixo estresse térmico, os atletas eram aclimatados, não estavam sob hipertermia e não alteraram os marcadores sanguíneos de hidratação19,20. Talvez os prejuízos físicos e cognitivos‐motores só ocorram em condições de não aclimatação e hipertermia, mais do que na desidratação com redução de 2% da MC.
A hipertermia, por si, promove distúrbios cerebrais e causa prejuízos aos desempenhos físico e cognitivo‐motor21. Walters et al.22 demonstraram que o desempenho de corrida foi reduzido, quando atingidas temperaturas retais de ∼39°C. No presente estudo, as temperaturas corporais dos atletas se situaram abaixo de 39°C, em ambiente de baixo estresse térmico (IBUTG∼19°C).
Os efeitos negativos da desidratação sobre o desempenho cognitivo‐motor parecem ser realmente contraditórios14. Bandelow et al.9 não encontraram prejuízos causados pela desidratação no desempenho cognitivo‐motor de jogadores durante atividade no calor. Grego et al.23 não encontraram efeitos do estado de hidratação sobre o desempenho cognitivo‐motor numa hora de exercício.
Serwah e Marino24 também relataram que, em exercício em condições quentes, o tempo de reação não foi comprometido pela perda de ∼1.7Δ% da MC. Ely et al.25 avaliaram o desempenho cognitivo‐motor em indivíduos submetidos a perda de MC ∼4Δ%, em diferentes temperaturas ambientais e, também, não observaram alterações no tempo de reação. Esses estudos corroboram com o presente trabalho, onde os atletas não apresentaram quaisquer alterações no desempenho físico e cognitivo‐motor, após 2 horas de ciclismo e um esforço até MAX, em estado de desidratação. Os dados sugerem que níveis de desidratação com perda de MC de até 3% não são suficientes para causar alterações no desempenho físico e cognitivo‐motor em atletas aclimatados ao calor e sem hipertermia, após exercício realizado em ambiente de baixo stresse térmico.