1. INTRODUÇÃO
Com o desenvolvimento da Genética outra frente de ameaça aos direitos humanos se abriu. Podem-se vislumbrar dois grupos de ameaças: ameaça ao patrimônio genético da biodiversidade, com apropriações indevidas e exploração econômica sem repartição dos benefícios; e a ameaça ao genoma humano, especialmente pela violação de seus dados genéticos.
A excessiva flexibilização que alguns países oferecem aos requisitos de patenteabilidade, tem permitido um grande número de patentes envolvendo recursos genéticos. Além disso, é cada vez mais frequente o acesso indevido a dados genéticos, por Estados, seguradoras e empregadores, para cerceamento de direitos ou obtenção de vantagens econômicas.
Dessa forma, a proteção jurídica dos dados genéticos tornou-se tema fundamental para a reconstrução da teoria dos direitos humanos no Estado Democrático de Direito. Seu tratamento e interpretação jurídicos envolvem amplas discussões, que poderão modificar por completo a relação do Direito com a Ética e com a Biologia.
É claro, portanto, que o conhecimento da técnica de mapeamento e manipulação genética envolve riscos e, neste ponto, a proteção jurídica dos dados genéticos deve resguardar a dignidade da pessoa humana.
Este trabalho não pretende percorrer todos os caminhos da proteção dos dados genéticos, nem mesmo especular os problemas da clonagem reprodutiva. A análise restringir-se-á à perspectiva dos direitos humanos na regulação e tutela dos dados genéticos.
2. DIREITOS HUMANOS E DIREITO SOBRE O PRÓPRIO CORPO
A tutela dos aspectos emanados da personalidade do ser humano, na Antiguidade, dava-se por instrumentos isolados, o que impede a consideração dos direitos humanos como espécie autônoma e sistemática, embora normas e garantias esparsas já se fizessem presentes.
António Menezes Cordeiro (2004) reporta a história dos direitos de personalidade à iniuria romana. A iniuria aparece desde a Lei das XII Tábuas (451-449 a.C.), mas é com a Lex Aquilia que se acentua sua importância, traduzindo-se na idéia de que tudo o que for contrário ao direito, merece reparação.
Contra a iniuria havia a actio iniuriarum, que protegia a pessoa de atentados à sua integridade física, difamação verbal ou escrita, ataques à honra da mulher casada etc. A responsabilidade civil aquiliana, ou extracontratual, tem nela sua origem.
No século V d.C., compiladas as obras de jurisconsultos romanos a mando de Justiniano, publicou-se as Institutas, espécie de sistematização simplificada da doutrina e que dedicou todo um capítulo à iniuria.
Na Idade Média, glosadores e comentadores continuaram com a proteção processual da actio iniuriarum sem, no entanto, elevar o tema a uma categoria autônoma. Foi a Escola Humanista ou Escola Culta de Direito que a isso procedeu, criando os iura in persona ipsa ou potestas in se ipsum.
Menezes Cordeiro (2004) relata que Hugo Donellus, em 1590, dizia que os direitos recaem parte sobre a nossa pessoa, parte sobre coisas externas. Já eram por ele considerados como direitos sobre a própria pessoa a vida, a incolumidade física, a liberdade e a reputação. E, em 1604, Gómez de Amescua afirmava haver uma potestas in se ipsum, que permitia ao homem, em relação a si mesmo, tudo o que não estivesse expressamente proibido pelo Direito. (OLIVEIRA, 2000)
O Humanismo procurou afastar a fundamentação da existência humana da religião, permitindo que o homem se emancipasse sob um poder de autodeterminação, que incluiria seu próprio corpo.
Será, todavia, sob os auspícios do jusracionalismo dos séculos XVIII e XIX que a categoria dos "direitos do homem" surge na doutrina francesa, especialmente por meio das declarações de direitos.
As ideias liberais levaram as primeiras colônias da América do Norte a proclamar a liberdade e a proteção do homem por meio da Declaração de Independência das treze colônias inglesas em 1776.
Na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, estabeleceu como finalidade de toda associação política a preservação de "direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem", dentre os quais se destaca a liberdade, definida como a possibilidade de "fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos." (artigo 4º da Declaração) Especifica, ainda, as liberdades de circulação, de consciência e de manifestação.
A versão original da Constituição dos Estados Unidos, de 1787, regulava apenas a estrutura política e judiciária do país, em nada se referindo a direitos da pessoa humana. Porém, The Bill of Rights, contendo as dez primeiras emendas à Constituição, aprovadas em 4 de março de 1789 e ratificadas em 15 de dezembro de 1791, estabeleceu tais direitos. Assim, dentre outros, a Primeira Emenda protege a liberdade de culto e a liberdade de expressão e a Quinta Emenda garante a liberdade, a vida e a saúde. Outras emendas tiveram objetivos semelhantes, proclamando direitos individuais como as primeiras seções das Emendas XIII e XIV, que estabelecem igualdade entre sexos e entre cidadãos americanos.
No âmbito do Direito Civil, que naquele momento histórico era o que mais eficácia dispunha, o modelo de proteção liberal se operou pelo reconhecimento de direitos subjetivos, que foram adaptados à categoria insurgente.
O segundo pós-guerra é, sem dúvida, o momento em que os direitos do homem ganham a maior repercussão internacional. Ultrapassam as divisas do código liberal para encontrarem uma fundamentação jurídico-filosófica mais ampla, ainda que em um primeiro momento com menos efetividade.
A referência doutrinária aos "direitos humanos", no nascedouro, referia-se à proteção do indivíduo frente às arbitrariedades do Estado. Destacava-se, ainda, cunho jusnaturalista assumido pelos direitos humanos.
Mesmo reconhecendo-se a força normativa dos costumes jurídicos, importantes fontes do Direito Internacional, os direitos humanos pareceram inexplicáveis comandos que pairavam acima dos Estados. Haveria uma necessidade universalizante dos Estados incorporá-los, apesar de confundirem-se com dever moral.
Seu fundamento naturalista por vezes transformou-os em policies ou argumentos meramente políticos, comprometendo-lhes a normatividade.
O processo de universalização e internacionalização dos direitos humanos situa-se como um movimento extremamente recente na história do direito, apresentando delineamentos mais concretos apenas após a Segunda Guerra Mundial. Como explica Louis Henkin: "Após a Segunda Guerra Mundial, acordos internacionais de direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidade para os Estados, com respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição, e um direito costumeiro internacional tem-se desenvolvido. O emergente Direito Internacional dos Direitos Humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas, e não apenas para com estrangeiros. Este Direito reflete a aceitação geral de que todo indivíduo deve terdireitos, os quais todos os Estados devem respeitar e proteger. Logo, a observância dos direitos humanos é não apenas um assunto de interesse particular do Estado (e relacionado à jurisdição doméstica), mas é matéria de interesse internacional e objeto próprio de regulação do Direito Internacional" (Louis Henkin et al., International law: cases and materials, 3. ed., Minnesota, West Publishing, 1993, p. 375-376). (PIOVESAN, 2006, p. 4-5, grifo nosso)
Pérez Luño (1999) discorre sobre essa dificuldade de se conceituar os direitos humanos sem o apelo naturalizante e chega mesmo a criticar a pretensão de que cada palavra em suas disposições expresse a essência de um objeto determinado. Tentando distanciar-se de definições que descrevem uma realidade intrínseca, mas ainda a elas apegado, Pérez Luño propõe a seguinte conceituação para os direitos humanos:
[...] un conjunto de facultades y instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional y internacional. (1999, p. 48)
A evolução da proteção internacional dos direitos humanos alargou-o a bens jurídicos desconhecidos pelo Estado Liberal, protegendo não apenas a pessoa considerada em si mesma, mas também sua posição de partícipe político e cultural de dada sociedade, passando até a integrar preocupações transgeracionais como a proteção do meio ambiente e do patrimônio genético.
3. TUTELA DE DIREITOS DE GERAÇÕES FUTURAS E PATRIMÔNIO GENÉTICO
São crescentes os avanços nas esferas biotecnológicas e genômicas desde o século XX, suscitando a necessidade de viabilizar uma efetiva proteção à dignidade da pessoa humana e à intervenção no genoma humano que tenha por finalidade a introdução de uma modificação no genoma das gerações futuras.
Não se pode olvidar que as pesquisas e trabalhos na seara da manipulação genética trouxeram significativos avanços em matéria de qualidade de vida e essencialmente como meio garantidor da saúde. Nesse sentido, como afere Romeo Casabona (2002), não se justifica uma proibição à manipulação genética de modo a impedir que se utilizem os progressos acarretados pela mesma em matéria de manutenção à vida.
Os dados genéticos definem características relevantes e únicas não só dos indivíduos, como também de seus ascendentes e descendentes. Não é, pois, um direito humano relativo somente à saúde, mas também à questão ambiental, pois define o ser humano como espécie, descrevendo os laços comuns da humanidade.
A proteção aos dados genéticos humanos é a proteção ao próprio patrimônio genético e àcontinuidade da espécie em condições dignas.
Ainda quanto à repercussão ambiental, para a salvaguarda dos direitos das gerações futuras, a biodiversidade integra o sistema protetivo internacional dos direitos humanos e o sistema constitucional brasileiro como direito fundamental.
Os vários biomas brasileiros despertam a necessidade da ação do poder público de modo a promover um Direito Ambiental que assegure uma tutela da diversidade biológica, inclusive genética, e os direitos das comunidades tradicionais, como os povos indígenas e quilombolas. Dado o potencial econômico e científico das amostras da fauna e flora presentes no território brasileiro, destaca-se a Lei n. 13.123, de 20 de maio de 2015, como meio de acesso ao patrimônio genético, de proteção e prevenção da incidência da biopirataria entre outras formas de exploração e degradação de espécies e populações ameaçadas.
O art. 4º da Lei n. 13.123/2015 faz a expressa ressalva de que está excluído de seu objeto o tratamento do patrimônio genético humano. Essa exclusão dá-se em razão da especificidade de tratamento que o Direito concede ao corpo humano e suas repercussões. Logo, o patrimônio genético humano envolve questões de consentimento e intimidade que os demais não suscitam. Por essa razão, a partir do tópico seguinte esse assunto será abordado de forma mais detida.
Patrimônio genético é legalmente definido como a: "informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos". (Lei n. 13.123/2015, art. 2º, I)
Destaque-se que tal conceito refere-se aos dados genéticos de maneira ampla, sejam obtidos diretamente de DNA ou RNA, sejam obtidos de outro material que contenha informação genética.
A Lei nº 13.123/2015 passou a regular o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado que objetivem pesquisa e desenvolvimento tecnológico. A lei também aborda a questão da repartição dos benefícios advindos da exploração econômica dos produtos ou material reprodutivo desenvolvido por meio dos acessos ao patrimônio genético nacional e ao conhecimento tradicional associado.
É importante salientar que a Lei nº 13.123/2015 fomentou significativas modificações e atualizações ao marco regulatório nacional, tornando menos burocratizado o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado.
Os dados genéticos são únicos, pois apresentam informações genéticas do ser enquanto espécie. São estruturais por guardarem características especiais de um indivíduo diferenciando-o dos outros, tornando-o singular. São probabilísticos por apresentarem, de forma aproximada, as possibilidades do desenvolvimento de alguma enfermidade. E, por fim, são geracionais por informar a herança genética do indivíduo e a sua interligação genética com seus parentes. (HAMMERSCHMIDT, 2005, p. 17-20).
Dados genéticos humanos podem gerar caracterizações sociais discriminatórias, com a distinção de indivíduos cuja análise genética identificou a possibilidade do desenvolvimento de doenças genéticas do restante da sociedade, sendo exemplo plausível o requerimento da análise genética para que o indivíduo exerça certa profissão ou assuma determinado cargo.
Há alguns documentos internacionais que buscam promover uma proteção ao progresso científico, sem que se olvide a proteção do material genético humano e, acima de tudo, sem que pereçam os direitos humanos.
É de extrema importância que a utilização do patrimônio genético do indivíduo possa ser resguardado e que os meios de estudo e progresso não ultrapassem o respeito à vida e à intimidade genética.
4. DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS SOBRE DADOS GENÉTICOS HUMANOS
Vários são os documentos internacionais que recomendam procedimentos e práticas nas pesquisas envolvendo seres humanos. Pode-se regredir historicamente ao Código de Nuremberg de 1947, que cuidou das experimentações com seres humanos, estabelecendo as bases do consentimento informado.
Cite-se, ainda, a Declaração de Bilbao sobre o Direito ante o Projeto Genoma Humano, de 1993, que menciona a intimidade como patrimônio pessoal e afasta a utilização dos dados genéticos com fins discriminatórios.
Em abril de 1997, foi elaborada em Oviedo a Convenção sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina, proposta pelo Conselho da Europa. A Convenção, em vigor desde 1º de dezembro de 1999, trata de quaisquer intervenções na área de saúde, incluindo tratamentos e investigações científicas. Vários artigos são dedicados à manifestação do consentimento para as intervenções. Seu Capítulo IV refere-se ao genoma humano, havendo artigos que regulam a não discriminação em virtude do patrimônio genético (artigo 11); os testes preditivos de doenças genéticas ou propensão a elas (artigo 12); intervenções modificativas do genoma humano (artigo 13) e a proibição de seleção de sexo em reprodução humana assistida (artigo 14).
Devido à importância, influência e especificidade, destacam-se a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997, e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003. Ambas foram aprovadas em conferências gerais da UNESCO e centram-se no respeito à dignidade humana e na proteção dos direitos humanos quando da coleta, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos humanos e de amostras biológicas.
Passa-se à análise da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.
Logo no artigo 1º, o genoma humano, expresso como a base da unidade fundamental da espécie humana, é classificado como patrimônio da humanidade. Estaria a Declaração afirmando a titularidade difusa do genoma humano?
Mais à frente este problema será enfrentado. Fica a advertência de Galán Juárez:
Por el momento se acordó que el genoma humano, que atañe a todos los seres humanos hoy existentes ya los que existirán, es patrimonio de la humanidad. En este sentido no puede quedar exclusivamente en manos de la iniciativa privada, ni deberá explorarse comercialmente. Sin embargo, la investigación que se haga a partir de él no es patrimonio de la humanidad: aquí radica el peligro. (2005, p. 230)
Preocupada com possíveis discriminações, essa Declaração estabelece a necessidade de se garantir o respeito à dignidade e aos direitos humanos, independentemente das características genéticas do indivíduo. Tais características não representam a totalidade do homem, ser único e irrepetível, e que não pode ser representado apenas biologicamente.
Quanto às características do genoma humano, o documento cita a evolutividade e a extracomercialidade. É evolutivo, pois submetido a mutações e reputa-se res extra commercium, devendo ser proibida sua negociação.
Para investigação, tratamento e diagnóstico que intervenha no genoma humano, o artigo 5º incorpora os princípios da beneficência e da autonomia, determinando a avaliação prévia dos riscos e benefícios da intervenção, bem como da necessidade do consentimento prévio, livre e esclarecido das pessoas envolvidas.
Ninguém deve ser submetido à discriminação com base em suas características genéticas. Além disso, os dados genéticos que possam identificar o indivíduo deverão ser mantidos em sigilo. E qualquer dano sofrido em razão da intervenção no genoma, é passível de reparação de caráter indenizatório (artigos 6º, 7º, 8º).
O artigo 9º deve ser analisado com cautela, visto que restringe os princípios do consentimento e da confidencialidade:
Com vistas a proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, qualquer restrição aos princípios de consentimento e confidencialidade só poderá ser estabelecida mediante lei, por razões imperiosas, dentro dos limites estabelecidos no direito público internacional e a convenção internacional de direitos humanos. (UNESCO, 1997)
Interessante perceber que a Declaração abre caminho para a intervenção do Estado no mais íntimo bem do ser humano ― sua personalidade. Assim, parece-se que em nome do denominado "interesse público" será permitido dispensar o consentimento e a confidencialidade.
Por outro lado, referido artigo 9º, combinado com o artigo 1º, que proclama o genoma humano como patrimônio da humanidade, lança luzes sobre a determinação da natureza jurídica dos dados genéticos.
O acesso aos resultados da pesquisa está garantido no artigo 12, alínea "a": "Toda pessoa deve ter acesso aos progressos da Biologia, da Genética e da Medicina em matéria de genoma humano, respeitando-se sua dignidade e direitos" (UNESCO, 1997).
Ainda sobre o acesso, mas tendo como base outros Estados, preocupa-se, a Declaração, em promover a cooperação internacional quanto ao tratamento de pessoas portadoras de doenças genéticas, incentivos às pesquisas referentes ao genoma humano. O "Capítulo E" enfatiza a necessidade da cooperação dos países desenvolvidos àqueles que estão em desenvolvimento, quanto aos estudos e resultados.
Por fim, incentiva os Estados a adotarem os princípios estabelecidos e a promoverem sua divulgação.
Adentra-se, agora, na Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos, de 2003. Mais específica que a Declaração anterior, esta é dividida em 27 artigos, distribuídos em sete capítulos.
O primeiro capítulo estabelece disposições gerais, informando os objetivos e alcances da Declaração, a definição de certos termos, tais como dados genéticos, teste genético, rastreio genético e aconselhamento genético.
Dados genéticos humanos são definidos como as "informações relativas às características hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucléicos ou por outras análises científicas" (artigo 2º, I, UNESCO, 2003). São, concomitantemente, informações de um indivíduo e de um grupo, por caracterizarem toda uma descendência.
O artigo 3º admoesta que as características genéticas não são capazes de descrever por completo a identidade pessoal, que é composta por fatores complexos, que passam pelo meio ambiente e pelas relações sociais estabelecidas, dentre outras coisas.
Os Estados devem adotar medidas que promovam o acesso de seus titulares aos dados genéticos e proteômicos e mantenham a privacidade daqueles dados, coibindo o fornecimento a companhias de seguro, empregadores e instituições de ensino (artigos 13, 14 e 15)
Os dados genéticos podem ser utilizados como prova em procedimentos judiciais ou para fins de medicina legal, mas devem ser destruídos assim que se tornem desnecessários (artigos 12 e 21).
Por fim, destaca-se a necessidade de divulgação da Declaração, cooperação internacional nas pesquisas e partilha dos benefícios dos testes e exames realizados.
5. DADOS GENÉTICOS COMO DIREITOS HUMANOS
Os dados genéticos humanos compõem a complexa estrutura de identificação de um indivíduo, apresentando informações a partir da análise de seu DNA. Essas informações genéticas determinam o funcionamento de todo o organismo, mas, como já alertava o citado artigo 3º da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, são apenas um componente da identidade.
Dados genéticos são informações obtidas, ou passíveis de se obter, do DNA e RNA humanos. A proteção jurídica não se faz presente apenas quando o material genético é transformado em informação; a mera potencialidade de se converter em informação já produz efeitos jurídicos. Assim, não é necessário que alguém tome conhecimento da informação, a simples potencialidade dela existir pode, no caso concreto, ser juridicamente relevante. Por esta razão protege-se a intimidade genética ou se garante ao indivíduo a possibilidade de recusar a análise genética.
Dessa forma, dado genético e material genético não são coincidentes; aquele é o resultado da transformação deste em informação ou, ao menos, a potencialidade de transformar o material genético em informação.
Essa informação, segundo Aitziber Emaldi Cirión (2007, p. 201), pode traduzir-se em: a) Predição do futuro, pois diagnostica não somente doenças existentes, mas também predisposições a doenças; b) Informação secundária, "quando se investiga em um paciente a relação de um ou vários polimorfismos com a resposta a um medicamento" (EMALDI CIRIÓN, 2007, p. 201); c) Informação sobre a família biológica, determina a ascendência genética a partir da comparação de perfis genéticos.
Há perfeita correspondência entre os dados genéticos, a definição e as características dos direitos humanos. Aqueles são informações vitais para o desenvolvimento da vida humana; são necessários, já que toda a matéria viva é regida, biologicamente, pelas informações de seus genes; são vitalícios, pois se constituem em bens que acompanham o curso da vida humana; são indisponíveis e intransmissíveis, pois sua disposição ou transmissão implicaria na cessação da vida de seu titular; e, por fim, são extrapatrimoniais, devido à impossibilidade de avaliação econômica, por isso são considerados bens fora do comércio. São direitos humanos relativos à própria personalidade, pois agrega bens definidores da própria pessoa.
Mas será que os dados genéticos são direitos subjetivos privados? Ou seriam eles interesses difusos, como parece afirmar o artigo 1º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos?1
6. CRÍTICA À DOUTRINA DOS DADOS GENÉTICOS COMO INTERESSE DIFUSO. INTERESSE PÚBLICO VERSUS INTERESSE PRIVADO
A doutrina brasileira invoca a categoria dos "interesses difusos" para a tutela de certas situações transindividuais. Trata-se de interesses que têm como características: a indeterminabilidade de seus titulares; ausência de relação jurídica anterior, o que os une é somente uma circunstância fática; e heterogêneo, pois carecem de vinculação organizacional, sendo que os titulares estão unidos circunstancialmente. (RODRIGUES, 2015)
Assim, além de tutelar as pessoas nascidas, os direitos difusos cumpririam a nobre função de "proteção às gerações futuras, evitando que seus interesses sejam afetados por ações do presente, em desrespeito ao ideal de justiça." (NAVES; SILVA, 2014, p. 366)
Perceba-se que o direito difuso carrega um forte viés ético, no entanto corre o risco de se afastar do Direito, se não possuir um referencial normativo.
As normas jurídicas são oriundas de variados interesses. No processo legislativo, interesses pessoais e de grupos influenciam na elaboração da norma. A democracia contemporânea é garantida pelo acesso de valores e interesses plúrimos. No entanto, é importante compreender que esses interesses não são elementos jurídicos, mas elementos fáticos, metajurídicos, referentes a um aspecto anímico ou político.
Interesses são valores, isto é, elementos sociais, econômicos, religiosos e políticos ligados à utilidade que desempenham na vida das pessoas. São fatos e não normas e, como tais, podem fazer parte do conteúdo da norma jurídica, mas não são elementos jurídicos que podem incidir no caso concreto. Com isso, sua localização está no mundo da Moral.
Habermas (1999) explica que a Moral possui deficiências cognitivas, motivacionais e operacionais frente ao Direito, que ocupa um espaço de complemento à Moral, pois é munido de sistema coercitivo institucionalizado, o que garante maior eficácia ao sistema de ação. Assim, ele conecta o processo argumentativo do discurso moral com as decisões institucionalizadas. Além disso, ainda é capaz de estabilizar expectativas de comportamento, o que a Moral não faz.
Além disso, no contexto das ideias de Habermas (1999), pode-se perceber que não há categorias jurídicas prontas por si mesmo. O Direito, como discurso é construído linguisticamente em um ambiente que propicie o diálogo democrático.
Para que um dado valor seja considerado primordial, deveria ele prevalecer "a priori" sobre demais valores. Assim, o ordenamento seria tratado como um conjunto de valores hierarquizados de antemão e aplicados segundo uma prevalência subjetiva, já que o ordenamento não deixa expresso essa ordem de predominância axiológica.
Dessa forma, é impossível conceber o interesse como situação jurídica. Trata-se de situação fática. Parte da doutrina brasileira tem classificado erroneamente a situação da proteção do meio ambiente como interesse difuso. Com isso, desloca-se o foco do discurso para um valor extensível a toda a humanidade, inclusive gerações futuras. A falácia da generalização de valores cria uma falsa situação jurídica de interesse, o que, em verdade, corresponde a um direito fundamental ― um direito subjetivo fundamental ao meio ambiente. Há, pois, uma esfera de liberdade, consistente na pretensão de atuação sobre o comportamento que ameace ou lesione o meio ambiente, e garantida pelo ordenamento jurídico.
Não há interesses juridicamente protegidos (JHERING, 1943) fora das situações jurídicas de direito subjetivo, dever jurídico, direito potestativo, sujeição, faculdade, ônus e poder. Tais situações de liberdades e não liberdades expressam posições que os entes jurídicos podem ocupar no espaço normativo, refletindo, pois, interesses e valores que refogem do intérprete sob pena de arbitrariedade. (CHAMON JÚNIOR, 2006)
Importante, agora, retomar-se alguns pontos das declarações internacionais já expostas, mas que ainda ficaram sem solução. A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos localiza os dados genéticos como patrimônio da humanidade (artigo 1º, UNESCO, 1997), o que pode ser interpretado por muitos como uma identificação aos interesses difusos.
Porém, como expõe José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, os
discursos construídos em torno dos interesses difusos devem ter sempre a referência a um princípio constitucional, como única possibilidade de se demonstrar a sua validade jurídica e assim se pleitear a tutela jurisdicional.
[...] Pretender atribuir a pretensões político-ideológicas a força coercitiva do Direito é um forma de romper com o ideário democrático. Daí a necessidade de se vincular a coerção a uma norma válida, como forma de absorver o fato coerção.
Os princípios constitucionais, particularmente os direitos fundamentais, constituem a base formal e material dos interesses difusos, ou a sua referência de validade. (1999, p. 276-277)
Essa ausência de validade no discurso que percorre os interesses difusos se faz pela vinculação dos mesmos a meros fatos, isto é, sua proteção jurídica decorreria da relevância social. Assim, a coletividade elegeria eventos econômicos, políticos, culturais e sociais dignos de tutela, o que justificaria a coerção.
Assim, Baracho Júnior (1999) propugna que a validade dos interesses difusos no discurso jurídico estaria restrita à sua vinculação ao sistema normativo, em especial aos princípios constitucionais. Logo, no discurso de aplicação, a coerção só é garantida pela normatividade, que afasta, portanto, a idéia de eleição de valores sociais, políticos ou de qualquer outra ordem metajurídica pela coletividade.
Trazendo a argumentação para o caso dos dados genéticos, pode-se afirmar que, juridicamente, o que diferencia o direito fundamental ao meio ambiente de tantos outros é, tão somente, a legitimidade extensível a um grande número de pessoas para requerer a proteção dos dados genéticos humanos. O interesse não é elemento jurídico capaz de auxiliar nessa distinção e, além do mais, sua aplicação é perigosa, pois pode conduzir o homem a um estado de autoritarismo justificado por um discurso pseudojurídico.
De forma semelhante, há sério risco em se interpretar o artigo 9º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos como hipótese de "supremacia do interesse público sobre o interesse privado". Neste artigo há previsão para situações em que, "por razões imperiosas", pode-se dispensar o consentimento do pesquisado ou a confidencialidade dos dados genéticos. É claro que, em princípio, pode-se aventar essa possibilidade, mas apenas como uma possibilidade a ser comprovada no caso concreto.
Parafraseando Daniel Sarmento (2007) tais "razões imperiosas", expostas na Declaração, trazem o sério risco de reavivar as "razões de Estado", como justificativas para violação dos direitos humanos.
As normas jurídicas que contêm interesses aparentemente públicos não podem negligenciar o sistema de direitos fundamentais. Da mesma forma, normas que contêm interesses aparentemente privados não podem descuidar do entorno social em que se faz contextualizado.
Humberto Ávila afirma categoricamente "que o 'princípio da supremacia do interesse público sobre o privado' não é rigorosamente um princípio jurídico ou norma-princípio". (ÁVILA, 2007, p. 213)
Também não é instrumento jurídico o interesse, nem público, nem privado, ou sob qualquer outra qualificação que possa receber. Enfim, não há uma situação jurídica de interesse legítimo.
7. CONCLUSÃO
A reviravolta hermenêutica dos últimos tempos colocou o intérprete em situações delicadas. A concepção de um sistema aberto de regras e princípios, adotada por parte da mais nova doutrina do Direito Constitucional, demonstrou a série de armadilhas da antiga dogmática e da velha Ciência do Direito, dentre as quais se destaca a ontologização ou naturalização dos direitos humanos.
O advento da Biotecnologia modificou todo o espaço privado. A intimidade detém-se, também, no nível genético. Novas searas e problemas requerem a reconstrução da categoria de direitos humanos. Não mais como direitos inerentes ao ser humano, pois tal predicação recobra a rigidez jusnaturalista, e mesmo juspositivista, de direitos ex ante, fora da situação concreta.
Não são os dados genéticos interesses difusos. Em verdade, não há espaço para esse discurso na aplicação jurídica. A consideração da juridicidade dos interesses pressupõe a generalização de valores a um número indeterminado de pessoas. É, pois, um elemento extrajurídico que pretende antever a aceitação de certo valor não só à atual humanidade, mas mesmo às gerações futuras.
O pós-positivismo trouxe a consciência da precariedade do mundo, pois só se pode conhecê- lo linguisticamente e a palavra "interesse" traz a ideia de algo que não se faz discursivamente, mas como um valor estático e único.
Enfim, o patrimônio genético é direito fundamental alicerçado na dignidade da pessoa humana e no meio ambiente e não na ideia corrente no Brasil de interesses difusos. O interesse difuso, isoladamente, traz as desvantagens apontadas por Habermas a respeito da Moral, inclusive com deficiências operacionais. Juridicamente, o interesse só faz sentido se conectado a um direito fundamental.