1. Introdução
Em 2011, um paciente italiano recebeu um stents coronário. Cerca de 8 anos depois, em 2019, o paciente se dirigiu ao médico por apresentar queixas quanto à dificuldade respiratória progressiva, com sensação de "aperto no peito", perda de apetite e, consequentemente, 4kg. Em consulta hospitalar prévia, mediante exame de radiografia, constatou-se que o pulmão estava normal. Em busca de um especialista, Luz, médico responsável pelo caso, verificou que sua aparência era normal e não havia anormalidade. Sinais vitrais normais e não tinha palidez que sugerisse anemia. Os exames de pulmões, coração, abdômen e membros inferiores eram normais, bem como o eletrocardiograma (ECG) de repouso. Luz, ao apalpar o pescoço, percebeu uma massa na face lateral esquerda. Em exames subsequentes, confirma-se o diagnóstico: tumor que comprimia a traqueia. Conforme evidenciado pelo médico, trata-se de clássico exame clínico completo em que não seria possível com a telemedicina, pois a simples inspeção virtual não daria pistas e a história clínica poderia sugerir várias outras possibilidades, tais como doença cardíaca, pulmonar, descompensação diabética, uremia ou anemia (Luz, 2019, p. 100).
A telemedicina define-se como exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDIC's), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde. Não resta dúvidas de que a novidade deva e possa ser empregada para promoção da saúde. Porém, sujeita-se também aos princípios ético-jurídicos do país em que são empregados (Cavet, 2019, p. 05).
Nessa seara, a ética se transfere para as funcionalidades das profissões como fundamentos diretores de vieses éticos e morais. O poder do ethos individual e social traduz-se como expressão de um conjunto de valores como dignidade, respeito, liberdade, individualidade, integridade, autonomia e solidariedade (Bilasová, 2012), princípios estes já evidenciados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) através da Declaração Universal sobre bioética e direitos humanos (2005) (Carlotto & Dinis, 2018). No âmbito da bioética ocorre uma integração de princípios fundamentais, sendo suas vertentes relacionadas essencialmente à autonomia, beneficência e justiça, de modo a formar a base e o suporte para o exercício da medicina.
Com a ascensão da telemedicina no Brasil, consequência de um intenso processo de globalização e principalmente da crise nos sistemas de saúde devido a pandemia do COVID-19, houve uma modificação nas tradicionais relações médico-paciente, resultando em implicações ético-legais cujo debate é premente para maximizar os resultados e regularizar a aplicação da eSaúde.
A partir deste marco teórico, propõe-se como problema de pesquisa o seguinte questionamento: o normativo brasileiro é capaz de lidar com as questões éticas de maior incidência na telemedicina? Para responder ao problema proposto, objetiva-se na primeira seção apresentar argumentos que impedem a instrumentalização da telemedicina como ferramenta destinada ao utilitarismo. Como fundamento, propõe-se 6 parâmetros fundamentais para a respectiva prática. Tais parâmetros tem como fundamento a ética da autenticidade individual com fundamento no social.
Posteriormente, apresenta-se três desafios éticos aplicáveis e encontrados comummente na Telemedicina. Tais desafios são analisados sob a ótica da Resolução n. 2.314/2022 e sob a ótica dos parâmetros propostos. Como resultado, apresenta-se preceitos de aplicação e propostas para efetivação e ou afastamento da prática. Ao final, conclui-se que o normativo brasileiro desenvolve de forma aparentemente eficaz os principais desafios éticos e normativos da telemedicina, propondo uma regulamentação suficiente, até o momento, mas o que não significa dispensar atualizações. Para atingir os resultados e as conclusões expostas, adota-se o método de pesquisa integrada com a técnica de pesquisa bibliográfica.
2. Da instrumentalidade e utilitarismo à satisfação do paciente: parâmetros de aplicação da telemedicina
Ernest Quintana, 78 anos, viveu com uma doença pulmonar obstrutiva crônica, uma doença pulmonar progressiva que torna difícil a respiração. Ela inclui enfisema e bronquite crônica. Pela terceira vez em 15 dias, em 3 de março de 2019 ele foi internado em um hospital Kaiser Permanente em Fremont, Califórnia. Ao seu lado estava sua filha, Catherine Quintana, de 54 anos, e sua esposa, na qual era casado por quase 60 anos. Enquanto esperavam os resultados de uma tomografia computadorizada, Catherine e sua mãe decidiram que iriam rapidamente em casa para tomar banho. Neste tempo de ausência, sua neta, Annalisia Wilharm, de 33 anos, ficou ao seu lado da cama (Jacobs, 2019; Andone & Moshtaghian, 2019).
Em um momento abrupto, uma máquina entrou em seu quarto e um médico apareceu através de um link de vídeo ao vivo. O prognóstico do profissional foi de que houve sérios danos aos pulmões do Sr. Quintana e, em suas palavras, "Infelizmente, não há nada que possamos tratar com muita eficácia". A Sra. Wilharm filmou em seu celular para mais tarde compartilhar detalhes da conversa com sua família Jacobs, 2019; Andone & Moshtaghian, 2019).
O médico sugeriu dar morfina ao Sr. Quintana, embora isso pudesse tornar a respiração ainda mais difícil. Quando surgiu a questão dos cuidados hospitalares, o médico compartilhou uma visão sombria: "Eu não sei se ele vai voltar para casa". Durante toda a conversa, o Sr. Quintana estava tendo problemas para ouvir o médico, vez que a máquina estava posicionada ao lado do ouvido surdo. Sua neta precisou repetir todas as informações passadas pelo médico. Dois dias depois, Ernest veio a falecer Jacobs, 2019; Andone & Moshtaghian, 2019). Surge-se o primeiro questionamento: caso um paciente esteja próximo da morte, será mais ético informá-lo prontamente usando telemedicina ou esperar um período indeterminado para uma consulta de cabeceira? (Humbyrd, 2019)
Eficiência prezada à compaixão (Humbyrd, 2019). Surge-se o primeiro questionamento: caso um paciente esteja próximo da morte, será mais ético informá-lo prontamente usando telemedicina ou esperar um período indeterminado para uma consulta de cabeceira? (Humbyrd, 2019). Para Humyrd, em algumas situações, a entrega de notícias duras e de fim de vida via telemedicina (seja através de um intérprete, após consultas entre pares, ou através do atendimento direto ao paciente) seja apropriada.
A vida social, com mínimo de confiança e solidariedade que existe, não pode assumir posturas que consistem em violência e enganos irrestritos. A característica fundamental da vida humana é evocada em seu caráter fundamentalmente dialógico (Taylor, 2011, p. 42). Essa definição nos permite compreender a existência de comportamentos quer tramitam na legalidade ou ilegalidade e criar parâmetros que nos ajudam a explicar e justificar aparentes condutas e exceções a serem praticadas em sociedade.
Se analisada sob esse contexto, a telemedicina não pode surgir como um recurso ou padrão nos quais outros bens éticos são julgados de forma radical, mas em sua grande parte tornar o que antes era ideal mediante uma reflexão revisionista. Em outros termos, o bem viver nos padrões éticos e morais pode ser compreendido como aquele que, de algum modo, combina no maior grau possível todos os bens que buscamos (Taylor, 1992, p. 94).
Dessa forma, a inovação não deve ser tratada como algo incomensurável ou mesmo como um fator cultural consequencial capaz de afastar princípios como autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça (Beauchamp & Childress, 1994) já então consagrados na bioética. O que há é uma necessidade de se ampliar a concepção segunda a qual toda avaliação é mera projeção de nossas reações subjetivas sobre um mundo neutro para romper com padrões tecnocráticos, burocráticos e essencialmente econômicos. Trata-se de uma experiência contrária ao preceito de uma sociedade moderna que nos empurra para um atomismo e instrumentalismo que tende a dificultar as determinações do próprio sujeito ferente às estimas econômicas. A sociedade tecnológica, nesses termos, se torna insustentável. Por essa razão que deve existir uma ética do bem-estar, tal como proposta por Floridi (2014), em que os impactos das tecnologias digitais devem servir para o bem do ser humano inserido em uma sociedade informacional. Frisa-se: existir e servir para.
O questionamento central então se torna "qual é o padrão de cuidado". O padrão de cuidado para qualquer encontro de telemedicina é o mesmo padrão de cuidado para o atendimento presencial atrelado àquela especialidade, profissão ou função. Um cardiologista, por exemplo, tem a responsabilidade ética, moral e prática para com o paciente de fornecer todos os componentes de um histórico e exame físico pertinentes à condição do paciente (Antoniotti, 2021). Porém, não apenas.
O modelo coordenado de cuidado, estudado desde a década de 1960 (McDonald, et.al., 2007) insere o paciente como membro da equipe capaz de decidir e assumir responsabilidades (Reynolds, 2009; Ito, 2020), cuja principal função é a redução da fragmentação das práticas de cuidado e o melhoramento dos serviços médicos fornecidos.1 Sob essa perspectiva, a American Telemedicine Association (ATA, 2020) desenvolveu 9 princípios e parâmetros básicos de aplicação da telemedicina.
Assegurar a Escolha, Acesso e Satisfação do Paciente.
Aumentar a Autonomia do Provedor.
Expandir o reembolso para incentivar o atendimento virtual do século 21.
Permitir a prestação de serviços de saúde através das linhas estaduais.
Garantir o acesso a prestadores não-médicos.
Expandir o acesso para populações carentes e em situação de risco.
Apoiar os idosos e expandir o "Envelhecimento no Local".
Proteger a Privacidade do Paciente e Mitigar Riscos Cibernéticos de Segurança.
Garantir a integridade do programa.
Cada um desses padrões tem como finalidade seguir indicações da World Health Organization (WHO, 2016) para desenvolver uma relação em que os médicos sejam instruídos como profissionais capazes de engajar o paciente no tratamento. Dessa forma, promove-se efetivamente uma participação por meios tradicionais ou mesmo de outras maneiras encontradas pelo responsável do tratamento. Essa conexão tende a ser intrínseca e diminuir a distância entre o ser detentor do conhecimento e o recebedor, não alimentando essas engrenagens e reconhecendo a importância do paciente em um ambiente cultural médico. Como resultado, torna-se possível obter resultados favoráveis e suportes eficientes sob a perspectiva intersubjetiva.
Algumas estratégias de nível funcional, interativo e crítico devem ser utilizadas para implementar efetivamente a prática da telemedicina como instrumento centrado no paciente. Funcional limitando-se aos aspectos de leitura e escrita do médico responsável pelo procedimento. Interage-se, também, mediante técnicas de comunicação e habilidades sociais em que permitem compreender o contexto intersubjetivo do paciente em análise. Por fim, deve-se reconhecer a necessidade de informar e tomar decisões em momentos críticos tendo como fundamento a saúde do paciente (Nutbeam & Kickbusch, 1998).
Para Ito (2020), a telemedicina deve ser pautada, para além dos indicados, em uma relação de compliance, aderência e engajamento. A barreira existente no letramento digital não deve ser utilizada, a princípio, como fator impeditivo da implementação dessa técnica. As formas de comunicação baseadas em uma linguagem acessível devem ser necessariamente adotadas pelo médico com intuito de explicar e possibilitar o consentimento informado do paciente sem qualquer vício.2
Porém, outros questionamentos éticos e legais também podem afetar a telemedicina. Como inexistem fronteiras nas relações virtuais, a jurisdição estatal pode encontrar empecilhos em eventuais responsabilidades. A qualidade e o padrão de cuidados podem decair à medida que o médico não esteja presente, tal como no caso de Ernest3. O consentimento acima identificado pode não ser colhido da maneira adequada (Mars & Jack, 2010).4 A coleta e o tratamento de dados podem ser realizados de forma irregulares e, consequentemente, afetar a segurança de seu titular.5 Prescrições médicas virtuais também podem ser um problema para apresentação quando da compra de medicamentos.
Perceba-se que todas essas questões advêm de uma sociedade tecnológica que impõe uma hegemonia profunda em sua razão de natureza instrumental. É ético negar a um paciente uma consulta de telemedicina com um especialista quando ele está virtualmente disponível? A falta de compreensão da tecnologia a ser utilizada pode invalidar o consentimento? É ético sujeitar o paciente ao atendimento por um médico local menos qualificado ou relativamente menos experiente (se comparado ao médico praticante de telemedicina)? Um paciente em um lugar remoto ou em áreas isoladas deve deslocar longas distâncias em condições adversas e a um custo significativo para si mesmo ou para o contribuinte, por causa de preocupações éticas? (Mars, 2020).
Entende-se que a telemedicina deve atender aos seguintes parâmetros:
Ser contra a fragmentação: o método de atendimento deve ser articulado e acompanhado. Não se deve abolir a continuidade. O desafio é combinar maneiras de implementar o acompanhamento. Tal como o médico não está 100% disponível em momentos de necessidade no ambiente físico, o telemédico também pode não estar. Porém, ao mesmo tempo, inexistem limitações de fronteiras físicas, possibilitando uma aproximação mais adequada quando envolver uma devastação da saúde do paciente.
Digressão histórica: deve-se assumir as limitações da prática e envolver o paciente exclusivamente no contato físico quando assim o for necessário. Nem todas as práticas podem ser virtualizadas e, por essa razão, o médico responsável deverá prezar pelo atendimento centrado no paciente e inseri-lo na relação decisória.
Evitar escorregar para o subjetivismo: a ciência médica, tal como toda ciência, deve prezar pela objetividade. Porém, a objetividade médica encontra limites na beneficência e no contato humano. A negativa da exacerbada subjetividade é a negativa de qualquer conduta narcisista que permite o médico, em seu amplo ramo de atuação, individualizar suas escolhas e negar a sensibilidade em momentos de supressão do sujeito. Pretende-se romper com o niilismo e desenvolver um ideal de autenticidade do próprio sujeito. Contudo, não se deve também deixar de lado o desconhecimento do paciente sobre as práticas de telemedicina que poderão ser complexas. Seu desejo deve ser levado em consideração para construir um arranjo naturalmente estratificado. Mas essa estratificação não pode se tornar elemento basilar de castas autoritárias.
Prudência: o diagnóstico e a avaliação médica devem ser prudentes do início ao fim. Dessa forma evita-se possíveis erros na prescrição médica ao estabelecer uma relação direta entre o paciente e as necessidades visualizadas no curso do atendimento virtual.
Esclarecimento e detalhamento: Conforme Antoniotti (2021), quando de outra forma se espera que o médico obtenha o consentimento livre e esclarecido, adapte o processo de consentimento livre e esclarecido para fornecer informações que os pacientes (ou seus substitutos) precisam sobre as características distintivas da telesaúde/telemedicina, além de informações sobre questões médicas e opções de tratamento. Os pacientes e substitutos devem ter um entendimento básico de como as tecnologias de telemedicina serão usadas no atendimento, as limitações dessas tecnologias, as credenciais dos profissionais de saúde envolvidos, e o que será esperado dos pacientes para o uso dessas tecnologias.
Compreensão na transmissão da informação. Antoniotti (2021) prescreve que, como em qualquer interação médico-paciente, tomar medidas para promover a continuidade dos cuidados, considerando como a informação pode ser preservada e acessível para futuros episódios de cuidados de acordo com as preferências dos pacientes (ou as decisões de seus substitutos) e como o acompanhamento pode ser fornecido quando necessário. Os médicos devem assegurar-se de como a informação será transmitida ao médico de atendimento primário do paciente quando este tiver um médico de atendimento primário e a outros médicos que atualmente cuidam do paciente.
Verifica-se que para além dos princípios básicos da bioética tradicional, a telemedicina exige constante apoio e aperfeiçoamento das tecnologias utilizadas em sua prática. Dessa forma, padrões clínicos e técnicos devem ser constantemente desenvolvidos e aprimorados para permitir que o paciente usufrua do serviço com segurança e qualidade. Esses resultados somente podem ser obtidos mediante monitoramento constante do cenário objetivando identificar as necessidades e sanar as consequências e desafios advindos das práticas. Reconhece-se a sociedade deve evoluir e, dessa evolução, pode-se incentivar seu uso. Uso esse focado em uma relação intersocial e não apenas atomística e reduzida no individualismo ou mesmo no niilismo.
Diante o exposto, parte-se para um detalhamento ético sobre os questionamentos elencados utilizando como referencial teórico a recente Resolução n. 2314, de 05 de maio de 2022, publicada pelo Conselho Federal de Medicina Brasileiro.
3. Desafios éticos da telemedicina: preceitos de aplicação e propostas para efetivação e ou afastamento da prática
Em suma, analogicamente à medicina tradicional, o uso de plataformas digitais não mitiga ou isenta a incidência de responsabilidade. Conforme Kallás (2021), quando o médico assume um paciente atribui-se a ele uma função de garante. Em outros termos, existem disposições éticas e normativas que regulamentam o tratamento do paciente independentemente do meio utilizado e da forma adotada. Assim, seja uma consulta médica ou um tratamento de maior complexidade, existe a responsabilidade médica sob suas ações e condutas perante seu paciente. O fato de esse procurar aquele para tratar diagnóstico e tratar sua condição, ainda que seja por teleconsulta, não reduz a força do vínculo jurídico existente entre os contraentes. Portanto, o médico continua em sua posição de garante e passa a responder pelo resultado lesivo, na medida de sua culpabilidade (Kallás, 2021).
Neste sentido, Kaplan (2020), Stovel et al. (2020) e Fields (2020) apontam que os principais questionamentos são direcionados ao consentimento informado, à formação do médico para exercício da atividade de telemedicina, à falta de humanização no exercício profissional, ao letramento digital e acesso à rede mundial de computadores6.
A Resolução n. 2314, de 05 de maio de 2022, publicada pelo Conselho Federal de Medicina Brasileiro tende a abordar a maior parte das temáticas em seu bojo normativo. Para tanto, tentar-se-á identificar as formas e maneiras de articulação desses questionamentos no início, na execução e no término (pós) contratual.
Preceito I: A telemedicina como ato complementar (art. 6°, §1°)
Contexto I: A Resolução em análise dispõe de forma expressa que a telemedicina não substitui o atendimento presencial.
Fundamento I: Assim, a telemedicina somente deve ser utilizada como fator de favorecimento à relação médico paciente.
Princípios bioéticos pretendidos: não-maleficência, beneficência.
Situação Hipotética I.I: Caso o paciente informe ao médico seu desejo de ser atendido via telemedicina, deverá o médico acatar o pleito?
Proposta I.I: O médico não está obrigado a acatar o pleito. Conforme disposição do art. 4° da Resolução n. 2314, o médico possui autonomia7 de decidir se utiliza ou recusa a telemedicina. Tal autonomia, nos termos do §1° do referido normativo, está limitada aos princípios da beneficência e à não-maleficência do paciente.
Deve-se observar que o grau de liberdade do paciente não é zero. Não está ele adstrito apenas à uma análise centrada na decisão do médico que pode ou não ser acertada. O padrão de verificação é justamente a condição de a decisão ser fidedigna ao tratamento do paciente e que não lhe cause prejuízos. Quando médico identificar que existem questões que somente podem ser diagnosticadas presencialmente, tal como a demência (Johnson & Karlawish, 2015), a telemedicina deve ser suspensa e a medicina presencial-tradicional deverá retornar como padrão ouro (art. 4°, §3°, da referida resolução).
Conforme mencionado, deve-se evitar a fragmentação do atendimento. Porém, o método de atendimento deve ser articulado e acompanhado. Não se deve abolir a continuidade, mas reconhecer limitações de fronteiras físicas para possibilitar uma aproximação mais adequada quando envolver uma devastação da saúde do paciente.
Como a consulta médica consiste em uma tríade representada em anamnese, exame físico e exame complementar, a teleconsulta inviabiliza o exame físico e representa uma metodologia incompleta, que pode ocasionar falhas decorrentes da impossibilidade de proceder com rigor técnico científico os diagnósticos (Kallás, 2021, p. 58).
Com essa postura, pretende-se evitar uma grande propensão à não humanização, tornando o vínculo entre o médico e o paciente deficiente. Esse fato pode ainda ser intensificado pelo ceticismo da maioria dos pacientes, ainda adeptos aos moldes tradicionais e receosos com a modernização dos meios de cuidado, o que dificulta a formação de laços de confiança virtualmente, já que essa credibilidade pressupõe contato pessoal.
Portanto, tendo em vista essa incompletude metodológica, a chance de realização de prognósticos imprecisos8 é um risco alto a se correr, convergindo com os pilares éticos da profissão: zelo e dever cuidado, respeitando-se a digressão histórica.
Porém, quando a especialidade do médico permitir e dispensar toques físicos, constata-se que inexistem impedimentos para configuração da tríade e conclusão do diagnóstico. Nessas situações pode-se adotar a telemedicina sem possíveis prejuízos iniciais ao paciente.
Perceba-se que as situações exemplificadas partem de um contexto em que o médico já está em contato com o paciente e tem dificuldades em diagnosticá-lo em razão do modo adotado pela consulta/tratamento. Acredita-se que caso a triagem seja feita e não seja diagnosticado qualquer tipo de impedimento ético ou legal para com o atendimento via telemedicina, essa poderá ser adotada pelo médico desde o início. Porém, caso se depare com alguma situação acima exemplificada, deverá ele suspender o atendimento.
Situação hipotética I.II: Caso o médico não possa realizar o atendimento presencial, mas apenas virtual, poderá ele recusar a demanda em caso de emergência?
Proposta I.II: Tendo em vista o princípio da beneficência pretendido nessa situação, ainda que o médico prefira receber seu paciente presencialmente, em caso de emergência a prática de telemedicina assume uma postura de obrigatoriedade. O paciente pode não ter tempo suficiente para se deslocar do local onde se encontra até o local onde o médico realiza seus atendimentos. Portanto, prezando pelo bem-estar e pela vida do paciente deverá ele adotar excepcionalmente e naquele momento, a telemedicina como recurso indispensável ao diagnóstico do paciente.
Em outros termos, diante da potencialização de acessibilidade pelas teleconsultas, os pacientes já não necessitam mais ter um dispêndio de recursos econômicos e de maior disponibilidade para locomoção ao presencial, o que consequentemente abranda a superlotação dos sistemas e facilita o atendimento. No mais, a telemedicina também pode mitigar parte a discriminação por regiões ao abranger os mais diversos espaços geográficos, demonstrando-se como importante fator de efetivação do direito à saúde. Mas existe outro desafio de ordem ética e social neste ponto.
Preceito II: O letramento informacional como indispensável à prática de telemedicina
Contexto II: A Resolução n. 2314, de 05 de maio de 2022 estabelece em seu art. 15 a exigência de consentimento livre, esclarecido e informado para a prática de telemedicina.
Princípios bioéticos pretendidos: autonomia, não-maleficência, beneficência.
Situação hipotética II.I: Como o médico deve transmitir ao paciente a informação sobre a realização da telemedicina?
Proposta II.I: O médico deve transmitir a informação de modo que o paciente externe compreensão no recebimento da informação. Conforme art. 15, parágrafo único da resolução em análise, "em todo atendimento por telemedicina deve ser assegurado consentimento explícito, no qual o paciente ou seu representante legal deve estar consciente de que suas informações pessoais podem ser compartilhadas e sobre o seu direito de negar permissão para isso, salvo em situação de emergência médica".
Dessa situação extraem dois problemas: um de ordem econômica e social, referente ao acesso à internet; e o outro de ordem social, pessoal e subjetiva, relativa à compreensão do que é telemedicina, especificamente ao letramento informacional.
Em relação ao primeiro problema, embora a eSaúde ofereça maior acessibilidade geográfica, como já pontuado, o cenário brasileiro ainda é demarcado por desigualdades sociais. Conforme dados divulgados pelo IBGE em 2022 (Brasil, 2022), constatou-se que 90,0% dos domicílios brasileiros se encontram conectados à internet. Contudo, ainda que seja uma quantidade majoritária, não é possível aplicar generalizações, visto que o Brasil tem uma população estimada em mais de 215 milhões de pessoas.9 Logo, o percentual remanescente de 10,0% reflete à um extenso grupo que ainda é acometido pela exclusão digital em áreas urbanas e rurais10.
À vista desse fator, a implementação da telemedicina exige no bojo de sua regulamentação a concretização do letramento digital11, de modo a oportunizar a todos um tratamento justo e isonômico, principalmente quando se trata de um território com múltiplas diversidades e com sistemas de saúde pública. No contexto em que diferentes atores podem gerar e receber informação, com motivações e vivências distintas, através de variados e céleres meios de comunicação, os confrontos de verdades são cada vez mais frequentes. Assim, a autonomia do médico deve restringida considerando a realidade pessoal de cada assistido, a fim de que o acesso à saúde não se torne um privilégio.
Não basta, portanto, inserir as informações em um TCLE, mas deve o médico assegurar que o paciente realmente compreendeu o aspecto semântico e o contexto em que ele será inserido. A compreensão na transmissão informacional não é apenas um parâmetro de ordem objetiva aplicável entre os médicos cujo interesse persiste na transferência de dados. Aceitar essa premissa seria romantizar a falsa articulação em que o paciente deve ser o foco central no atendimento não presencial. Portanto, de forma alguma deve-se relegar a sensibilidade do paciente e ao médico compete se relacionar conforme ser humano; respeitando-se a linguagem em seu teor sintático (simples pronúncia inteligível de palavras) e em seu teor semântico (compreensão do teor textual pronunciado). É essa linguagem em seu aspecto semântico que finca a sensibilidade pessoal do paciente e que ressoa seu consentimento livre, esclarecido e informado para iniciar, continuar ou interromper o tratamento via telemedicina.
Diante o exposto, não deverá o médico proceder ao atendimento virtual quando o paciente estiver impossibilitado de manifestar sua vontade sob pena de violação do art. 15 do normativo em análise e sob pena de configuração de um individualismo da racionalidade desengajada. Em outros termos, a autorresponsabilidade do médico sobre si mesmo e sobre o paciente não pode tornar a pessoa sob seus cuidados como una e anterior às suas obrigações legais, ética, morais e sociais.
Mesmo diante desse cenário, supondo-se a assertividade do paciente, ainda persiste ao médico questões de ordem legal e médica quanto à segurança informacional dos dados de anamnese e propedêuticos (em suma, dados pessoais e clínicos do paciente).
Preceito III: Segurança informacional
Contexto III: A Resolução n. 2314, de 05 de maio de 2022 estabelece em seu art. 3° a necessária proteção dos dados pessoais obtidos no curso da telemedicina.
Princípios bioéticos pretendidos: autonomia, não-maleficência, beneficência.
Situação hipotética III.I: Como o médico responsável pelo atendimento deve proceder mediante solicitação do paciente em relação ao acesso do prontuário médico?
Proposta: Primeiramente, o próprio normativo determina que o atendimento por telemedicina deve ser realizado e registrado em prontuário médico físico ou eletrônico do paciente. Neste último caso, em Sistema de Registro Eletrônico em Saúde. O dever de sigilo nas relações éticas mantém-se íntegro e sem quaisquer alterações. Deverá o responsável adotar medidas de cunho prático e de segurança eletrônica para evitar incidentes quanto aos dados sob sua guarda. Neste ponto, deve-se respeitar a Legislação de Proteção de Dados pessoais e, em caso de contratação de serviços terceirizados mediante tomadora de serviços, a responsabilidade será contratualmente compartilhada entre o médico e a contratada (art. 3°, §4°)
Quando o paciente proceder com a solicitação, deverá o médico possibilitar o acesso aos dados de forma irrestrita ao seu titular. Portanto, a solicitação deve ser prontamente aceita em observância ao livre acesso; princípio esse consagrado no art. 6° da LGPD. Contudo, não basta que os dados estejam criptografados ou de forma ininteligível. Deverá o médico, por força normativa do art. 9° e do art. 18, II, ambos da LGPD, facilitar o acesso às informações sobre o tratamento de dados de forma clara, adequada e ostensiva.
Portanto, a resolução não aborda apenas o dever ético e legal de sigilo profissional, mas também sua obrigatoriedade quanto ao acesso do prontuário eletrônico ou físico da mesma forma que se realizada pela medicina tradicional/presencial.
Ressalta-se que, conforme declaração da WMA (World Medical Association), que dispõe sobre princípios éticos da telemedicina, para que o consentimento informado do paciente seja colhido de forma adequada, deverá o médico, por determinação ética e legal, explicar as possibilidades de falhas tecnológicas, incluindo violações do sigilo dos dados mediante incidentes de segurança. Como a resolução em análise toma como fundamento e referencial teórico, entende-se que a declaração da WMA foi adotada de forma implícita e, por esse motivo, seus preceitos também devem ser seguidos de forma complementar.
4. Considerações finais
Em primeira análise, há de ser reconhecido que a adaptação da profissão médica por meio da utilização de meios digitais proporcionou otimizações nos setores da saúde, dando ênfase à redução de distâncias e aperfeiçoando o atendimento.
No entanto, apesar de apresentar benefícios expressivos, é necessário reconhecer a ausência de regulamentação do uso de tecnologias para finalidades médicas, fato que reflete em desafios éticos a serem enfrentados.
Primeiramente, considerando a lógica do contexto digital e das consultas, quando os exames físicos são necessários, mas obstados, opõe-se ao Código de Ética Médica, o qual possui em seu texto a exigência de realização de exames diretos e presenciais. Dessa forma, deve-se afastar a prática sob pena de violação dos princípios bioéticos da beneficência e não-maleficência. Noutra vertente, considerando que a telemedicina possui a especialidade de atender diversos espaços geográficos e deve atender o bem-estar do paciente, sua aplicação em situações e emergência se tornaria obrigatória, prezando excepcionalmente pela vida do paciente.
Em relação aos padrões éticos, morais e práticos, assume-se os mesmos aplicados à medicina tradicional. Contudo, propôs-se seis parâmetros aplicáveis especificamente à telemedicina. Deverá ela ser contra a fragmentação. Assim, o método de atendimento deve ser articulado e acompanhado. Deve-se realizar digressão histórica, objetivando assumir as limitações da prática e envolver o paciente exclusivamente no contato físico quando assim o for necessário. No mais, deve-se evitar o subjetivismo, poios a ciência médica, tal como toda ciência, deve prezar pela objetividade. Preza-se pela prudência. Assim, o diagnóstico e a avaliação médica devem ser prudentes do início ao fim. Toda conduta deve ser esclarecida e detalhada para que o paciente consiga compreender a informação transmitida. Em outros termos, não basta a compreensão sintática, mas também semântica. Dessa forma, o paciente deve externar sua vontade e exprimir seu aceite de forma clara e inequívoca sobre todo o procedimento da telemedicina.
No mais, alguns preceitos éticos foram desenvolvidos. O primeiro é assumir a telemedicina como ato complementar. Dessa forma, caso o paciente informe ao médico seu desejo de ser atendido via telemedicina, o médico não está obrigado a acatar o pleito, por força do art. 6°, §1° da Resolução em análise.
Como segundo preceito, assume-se o letramento informacional do paciente e do médico como indispensável à prática de telemedicina. O médico responsável pelo procedimento possui como responsabilidade prática a atenção ao contexto intersubjetivo que o paciente está inserido, como zelo por uma assistência justa e isonômica. Não se trata, conforme dito, de compreensão sintática, mas semântica de todo o contexto inserido.
Por fim, o terceiro preceito fundamenta-se na segurança informacional. O próprio normativo do CFM determina que o atendimento por telemedicina deve ser realizado e registrado em prontuário médico físico ou eletrônico do paciente. Neste último caso, em Sistema de Registro Eletrônico em Saúde. O dever de sigilo nas relações éticas mantém-se íntegro e sem quaisquer alterações. Deverá o responsável adotar medidas de cunho prático e de segurança eletrônica para evitar incidentes quanto aos dados sob sua guarda. Neste ponto, deve-se respeitar a Legislação de Proteção de Dados pessoais e, em caso de contratação de serviços terceirizados mediante tomadora de serviços, a responsabilidade será contratualmente compartilhada entre o médico e a contratada (art. 3°, §4°).
Ressalta-se o dever de sigilo aos prontuários eletrônicos e físicos. Esses devem ser mantidos seguros e inacessíveis em relação a terceiros não autorizados, possuindo o titular o direito de livre acesso conforme preceituado pela LGPD. Todas as informações inseridas devem ser objetivas e não codificadas tecnicamente, propiciando um fácil entendimento.
Diante o exposto, conclui-se que a normatização deficiente sobre telessáude ocasiona transtornos jurídicos e bioéticos, convergindo valores e princípios que pressupõem constância e integração na relação médico-paciente.