1. Introdução
Hodiernamente, considera-se que "ser" humano e "ser" Homo sapiens são condições sinônimas. Contudo, nem sempre foi assim. No passado remoto, representantes do Homo habilis, do Homo ergaster, do Homo erectus, do Homo neanderthalis, entre outros (REECE, et al., 2015), constituíam o amplo rol das espécies humanas, as quais conviviam, inclusive, gerando descendência híbrida (WARREN, 2018). Os novos avanços científicos-tecnológicos em curso deixam entrever que, no futuro, é possível que a convergência NBIC (Nanotecnologia, Biotecnologia, Tecnologia da Informação e Ciência Cognitiva) traga novas possibilidades de existência humana e de convívio social (CANTON, 2004) que não se limitarão aos imperativos naturais.
O cérebro hominídeo primitivo proveu ao ser humano a habilidade de construir ferramentas simples (JOHANSON, WONG, 2009) e, deste então, este processo não parou de se aprofundar. Hoje, há quem prognostique a inserção direta de ferramentas no cérebro, em formato de nanorrobôs, para promoção de aprimoramentos cognitivos (KAPLAN, 2016;KURZWEIL, 2005). Esse melhoramento da cognição é uma das finalidades da filosofia transhumanista1 23,que defende a criação de um novo ser humano aprimorado tecnologicamente. Entre as melhorias propostas incluem-se: "extensão radical do alcance da saúde humana, erradicação das doenças, eliminação do sofrimento desnecessário e aumento das capacidades intelectuais, físicas e emocionais humanas". Nessa perspectiva, uma pessoa pode obter mais expectativa de vida, inteligência, saúde, memória e sensibilidade emocional, sem deixar de existir no processo (BOSTROM, 2005).
Os exemplares de transhumanos - humanos que foram tão significativamente modificados e melhorados que exibem expressivas características não humanas (SAVULESCU, 2009) - incluem os ciborgues, híbridos de ferramenta e biologia, e as quimeras, híbridos de espécies diferentes2 41, seres que ultrapassam a barreira do reconhecimento corpóreo humano3 17. Aqueles, foco do presente estudo, já constituem uma minoria esparsa de indivíduos que passaram por tratamentos médicos, sobretudo sob o enfoque da neuroprotética, área da bioengenharia centrada na conexão de dispositivos externos ao sistema nervoso (LEUTHARDT, ROLAND, 2014), que desemboca nas atuais técnicas de interface cérebro-máquina, voltadas à investigação dos princípios fisiológicos que definem como grandes populações neurais interagem para dar origem a comportamentos motores (NICOLELIS, CICUREL, 2015). Como casos reais, pode-se citar:
Neil Harbisson: daltônico total e primeiro ciborgue reconhecido, possui um sensor de cores instalado em seu olho (eyeborg) que o permite detectar a frequência de qualquer cor colocada em sua frente (sons de frequência) e a envia para um chip instalado atrás de sua cabeça, sendo capaz de "escutar a cor" que está à sua frente através da condução óssea (JEFFRIES, 2014);
Juliano Pinto: paraplégico com paralisia medular completa que utilizou a primeira versão do exoesqueleto controlado diretamente pela atividade cerebral financiado pelo consórcio internacional de pesquisa "Projeto Andar de Novo", para executar o chute inaugural da Copa Mundial de Futebol de 2014 (NICOLELIS, CICUREL, 2015);
Jim Ewing: devido à amputação na perna, recebeu uma neuroprótese desenhada pela Equipe Ciborgue, do MIT, utilizando o procedimento cirúrgico "interface mioneural agonista-antagonista", que, diferentemente das próteses convencionais, preserva as relações musculares dinâmicas que existem dentro da anatomia nativa (CLITES et al., 2018);
David Mzee: paraplégico há mais de 04 anos que voltou a dar passos autônomos graças à introdução de eletrodos em sua medula espinhal lombar através de uma neurotecnologia de "estimulação espaço-temporal" (WAGNER et al., 2018).
Acontece que, para além da interação entre inteligência artificial e biologia na medicina (BIANCHINI, 2016), existem esforços de empreendimentos variados como a Singularity University4 13, a Cyborg Foundation5 21, a Cyborg Nest6 2e a Kernel7 26, em prol da democratização da possibilidade de se tornar um ciborgue. Assim, é possível conjecturar que a fronteira entre a cura e o melhoramento possa ser ultrapassada e a simbiose entre o inorgânico e o orgânico possa ser material e financeiramente acessível a qualquer indivíduo que pretenda transcender os potenciais providos pela natureza.
Uma das consequências das mudanças paradigmáticas biotecnológicas é a ameaça a noções morais e jurídicas razoavelmente consolidadas e caras à sociedade como a de pessoa humana, ente racional e autoconsciente, que é um fim em si mesmo e se orienta a partir de critérios de autonomia e liberdade (KANT, 2007). Embora o ciborgue, ser que funde o humano e a coisa, já exista e seu potencial tenda a se expandir consideravelmente, sua personalidade jurídica ainda carece de especificação normativa, estando a questão adstrita ao âmbito teórico-acadêmico (GLENN, 2002;GILLETT, 2006;VILJANEN, 2008).
Com o fim de endossar a discussão acerca dessa nova forma de ser humano e como essa conjectura pode refletir na constituição da pessoa no Direito, o desenvolvimento deste estudo se dará em três seções: na primeira será examinada criticamente a abordagem natural-especista, que norteia percepções jurídicas orbitais ao conceito de pessoa; na segunda se aprofundará nas particularidades do ciborgue quanto às potencialidades de seus corpos para demonstrar que ele é um ser, de fato, diferente dos humanos atuais, a ponto de suscitar implicações jurídicas inéditas e necessárias; na terceira será apresentado um cenário prognóstico para a inserção do ciborgue na personalidade jurídica focado na ideia de pessoa não-natural.
2. Ser humano: supremacia do natural e reconhecimento corpóreo
Ser pessoa, no Direito, é uma faculdade daqueles que dispõem de um conjunto de direitos e deveres. As pessoas não são necessariamente seres naturais na medida em que se entende que o Direito é prescritivo (dita o dever-ser), não descritivo (revela o ser) (SUNDFELD, 2008), por isso, "do ponto de vista meramente jurídico", quando se trata da atribuição normativa desse status, em um primeiro momento, "não há diferença entre um ser humano e um clube de golfe" (DIMOULIS, 2016): ambos são pessoas.
No Direito é aceita a distinção entre "pessoas físicas (seres humanos) e pessoas jurídicas (empresas, autoridades do Estado etc.)", sendo estas as "unidades organizadas de pessoas físicas e/ou patrimônios que visam a determinados fins". Existe no Direito Brasileiro também uma "categoria de quase-sujeitos" denominada "ente despersonalizado", o "conjunto de pessoas e patrimônios que, apesar de não possuírem personalidade jurídica, (...), podem ingressar em juízo para proteger seus interesses, quando for previsto pelo direito processual" (DIMOULIS, 2016).
Ao considerar essa diferenciação prescritiva, percebe-se que as pessoas jurídicas e os entes despersonalizados são abstrações, enquanto as pessoas físicas são reais, ou seja, aquelas subsistem apenas juridicamente, ao passo que essas existem, também, materialmente. Nesse sentido, ao analisar a realidade, pode-se afirmar que "uma figura do homem é o cruzamento entre uma relação com um saber que ela permite garantir e uma relação com normas que ela permite fundamentar" (WOLFF, 2012). Portanto, a pessoa natural e o ser humano se confundem e os direitos e deveres daquela dependem, necessariamente, de como esse é concebido e reconhecido entre seus pares.
Ao longo da história, o reconhecimento humano-pessoal dependeu das circunstâncias espaço-temporais e, por muitas vezes, se deu por exclusão; em determinadas épocas e locais, certos grupos de indivíduos não eram considerados humanos ou pessoas, por motivos diversos e arbitrários8 43. Isso mudou em meados do século XX, no pós-Segunda Guerra, quando o espelhamento entre "humano" e "pessoa" se consolidou na preleção de que "todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei" (Declaração Universal dos Direitos Humanos). Atualmente, um humano-pessoa é reconhecido através de um maleável molde de seres com corpos-mentes assemelhados que pouco se diferenciam objetivamente em estatura, largura, tonalidade de pele, sistemas reprodutivos e estados de saúde, e subjetivamente em crenças, nacionalidades e posicionamentos políticos9.
Porém, ao contrário das escolhas do passado para determinar quem seria humano ou pessoa, esse molde é amparado por evidências científicas, dado que também foi resultado das descobertas genéticas: os que nele se encaixam não variam significativamente no genótipo, na composição genética, mas sim no fenótipo, na aparência ou em suas características observáveis. Portanto, a partir desse subsídio científico, passou-se a ter um saber propriamente confiável para justificar normas. Esse norteador natural-especista pode ser visto em variados prefácios de dispositivos internacionais:
Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos: "direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana";
Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina: "respeitar o ser humano simultaneamente como indivíduo e membro pertencente à espécie humana";
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural: "uma maior solidariedade fundada (...) na consciência da unidade do gênero humano";
Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos: "respeito da igualdade humana";
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos: "seres humanos fazem parte integrante da biosfera".
Dessa análise depreende-se que o uso de "natureza" como um "estado de referência com o propósito de descrever o que o ser humano é e justificar argumentos morais" é frequente, sendo "referido como se fosse um conceito claramente definido". Acontece que não o é (NIELSEN, 2011). Esse é o ponto crítico.
O sujeito humano universal, concebido a partir de suas particularidades biológicas e como um fim em si mesmo, pode ser tomado como um ser acabado para propósitos jurídicos, dado que todas as justificativas teóricas que outrora segregaram seres humanos se mostraram falsas ou insuficientes para minar os direitos e a humanidade de determinados indivíduos. Contudo, a noção de que o humano é um ser dado e concluído evolutivamente está equivocada: o ser humano, bem como qualquer outro ser vivo, não está em seu último estágio evolutivo. A evolução natural é uma constante10 29e a evolução das potencialidades humanas através das biotecnologias, uma incógnita11 22. O organismo humano que a natureza proveu, que RayKurzweil (2005) denomina "versão 1.0", composta por cérebros altamente limitados e por corpos biológicos "igualmente frágeis e sujeitos a uma miríade de modos de falha, sem mencionar os rituais de manutenção complicados que eles exigem", pode dar uma guinada "contranatural" nos quesitos de capacidade intelectual, funcionalidade corpórea, modalidades sensoriais, faculdades especiais, sensibilidades, humor, energia e autocontrole (BOSTROM, 2005). É esse o motivo pelo qual o molde pode ser expandido - extraordinariamente expandido.
Para superar a inadequação da ideia de humanidade invariante e manter as questões subjacentes ao reconhecimento, é necessário constatar que o potencial para suplantar os limites do naturalmente dado é, justamente, parte integrante da natureza humana (BOSTROM, 2003). Apoiando-se nesse pensamento, que coaduna a teoria transhumanista com a prática biotecnológica, a "versão 2.0" do corpo humano, a "atualização radical de todos os nossos sistemas físicos e mentais" (KURZWEIL, 2005), pode emergir efetivamente.
3. Ciborgue: supremacia do artificial e expansão do espectro de possibilidades
Sendo o corpo uma realidade cognoscível, através dele pode-se presumir aquilo que o ser humano é capaz ou não de fazer, isto é, desvendam-se as limitações naturais e as superações artificiais, intimamente interligadas à engenhosidade criativa das ferramentas para fins de beneficiamento comum. O progresso tecnológico é resultado, antes de tudo, do avanço conjunto de processos cognitivos e desenvolvimento social. As ferramentas representam o apogeu dessa afirmação: quando humanos pré-históricos presumiram a possibilidade de extensão de ação de seus membros articulados e obtiveram sucesso ao utilizar galhos de árvore para tal fim, deram o primeiro passo para que humanos modernos fossem capazes de criar uma máquina que "engana" o cérebro e o faz interpretar sinais de vibração emitidos na pele como se fossem gerados pelos próprios pés e pernas biológicos do indivíduo (NICOLELIS, CICUREL, 2015), o exoesqueleto, abordado na introdução. É nessa conjuntura que se revelam os dois núcleos da identificação de um ciborgue: (i) superação das aptidões inatas; (ii) indistinção entre o natural e o artificial no momento da execução dessas capacidades.
A superação dos imperativos biológicos não é uma condição "nova" na história humana. Essa afirmação se aplica ao tomar o contexto evolutivo, onde superar a própria natureza foi uma exigência de sobrevivência, no decorrer de bilhões de anos, para a espécie humana. No entanto, no que tange aos indivíduos e suas potencialidades, essa superação só foi possível através do progresso tecnológico advindo da ciência moderna. Para entender essa colocação pode-se tomar o exemplo dos atletas olímpicos recordistas - deve-se abstrair o uso de substâncias externas às capacidades "originais" e ater-se somente aos treinamentos para aprimorá-las -, que configuram humanos muito acima da média das capacidades da espécie quanto a aptidões físicas específicas, como nadar ou correr, mas que não superam os limites designados pela própria natureza humana12.
Logo, se ciborgues são humanos que se diferenciam por superar suas aptidões inatas, essa superação precisa ser mais acentuada do que as já existentes: tecnologias que já ultrapassam, em muito, limites naturais antes intransponíveis. Questões reprodutivas exemplificam esse ponto. Naturalmente, a gravidez e a geração da vida humana são resultantes de um ato heterossexual no qual ocorre a fecundação (junção do óvulo com o espermatozoide para originar o embrião), além de serem um estado e uma capacidade exclusivos da mulher em idade fértil. Contudo, através de diversas tecnologias reprodutivas, é possível que virgens (BERMAN, 2018), idosas (ELEFTHERIOU-SMITH, 2016), mulheres "geneticamente ausentes" (MACEDO, 2016) e homens (COLEMAN, 2017) engravidem, que casais homossexuais tenham filhos biológicos (CRAWFORD, 2016), que bebês nasçam com três DNA's (ZHANG et al., 2017) e que mortos concebam vida (DRURY, 2018). Essas tecnologias não são utilizadas tão somente para suplantar a infertilidade, mas para ultrapassar a maioria dos limites impostos pela natureza biológica no que tange à reprodução humana13.
Então, se os humanos "do molde" já alteram seus corpos e alargam suas potencialidades de formas tão agudas e complexas, o que mantém o ciborgue fora dele? A resposta é que, até o presente momento, as técnicas e tecnologias acessíveis são realizadas dentro do espectro de possibilidades humanas, o que resulta no fato de que essas variações na natureza não foram capazes de alterar a humanidade - contemporaneamente concebida - daqueles que a elas se submeteram. Aquilo que identifica um ser humano dentro "do molde" não foi, ainda, abalado pela alteração biotecnológica disponível: uma grávida por fertilização in vitro não altera a mulher moderna e o bebê dela concebido também não.
A afirmação acima leva a duas interpretações: ou (1) esse espectro é muito amplo, mas limitado pelas possibilidades humanas, sejam naturais, sejam tecnológicas, ou (2) ele pode não ser apenas demasiadamente extenso, mas ser, também, passível de extrapolação. Em (1), a ideia de "possibilidade humana" deve ser traduzida como a capacidade que um humano pode ter, que excede sua composição evolutiva natural, mas que não chega a desvirtuá-lo enquanto pertencente ao "molde". Em (2), o ser humano é um ser apto a possuir capacidades que não apenas ultrapassem sua natureza, mas que também incluam habilidades de outros seres, sejam animais, sejam artificiais - como da própria inteligência artificial e da robótica -, retirando-o desse espectro em determinadas conjunturas, físicas ou mentais. A figura 1 ilustra esse modelo:
Como consequência da primeira interpretação, a designação modificação corporal pode ser considerada mais adequada do que melhoramento, utilizada pelos transhumanistas, pois "é um termo neutro que é capaz de abranger todo tipo de modificação, seja cultural, física, psicológica ou neurológica, não se limita a certas técnicas e não depende de sub-definições normativas" (REMBOLD, 2014). Assim, a modificação seria limitada pelas possibilidades humanas, enquanto o melhoramento exigiria uma mudança extremamente substancial para poder fazer sentido conceitual e pragmático. A partir disso, encontra-se a diferença entre um humano modificado e um transhumano, como o ciborgue: aquele é o ser humano moderno, usufruidor dos efeitos advindos da dominação das ferramentas, esse é uma expectativa de ser humano biologicamente transcendente.
Ao levantar essa diferenciação, uma objeção aparece: ferramentas já fazem parte do organismo humano, seja para alterar seu funcionamento, seja como adornos, sendo bastante trivial encontrar superações biológicas que são feitas com o apoio de materiais inorgânicos, como no caso de lentes de contatos para correção de anomalias da visão, de stent's colocados em artérias para evitar a obstrução dos vasos sanguíneos, de bandas gástricas em cirurgias bariátricas e de próteses de silicone em cirurgias estéticas.
Nesse caso, deve-se compreender que o cerne da particularização reside no papel designado pelo material inorgânico: na modificação, ele atua como coadjuvante, ao passo que, no melhoramento, ele é o real protagonista. Pode-se dizer que, no primeiro contexto, há um uso fraco desse componente e, no segundo, um uso forte. A relação de grau consequente se dá no seguinte sentido: o humano modificado é um ser com pouco ou nada de produto inorgânico e muita modificação orgânica em seu organismo; o ciborgue é um ser com grande abundância inorgânica em sua composição ou com uma intensidade maior de alteração advinda de um ou mais componentes inorgânicos.
Quanto ao ciborgue em si pode-se emergir o paradoxo sorites, que se concentra na delimitação de uma categoria baseada em um atributo quantificável (GILLETT, 2006). Nessa lógica, quanto mais inserções inorgânicas em seu corpo, mais definido como um ciborgue o humano seria, revelando o aspecto do grau de melhoramento, que será explorado na próxima seção. Porém, esse critério não é plenamente determinante na medida em que o que caracteriza algo não é somente a quantidade de um atributo, mas também suas qualidades. Assim, um ciborgue forte não seria, necessariamente, um humano com muitas ferramentas em seu corpo, mas poderia ser um com uma ou poucas ferramentas que lhe façam ultrapassar os imperativos biológicos.
Em relação às ferramentas, surge outra objeção: o ser humano já é capaz de ter habilidades extra-humanas, por exemplo, ao enxergar perfeitamente um planeta a milhões de quilômetros de distância através de um telescópio comercial ou ao fazer contas extremamente complexas que sua mente jamais faria por meio de uma calculadora sofisticada, não havendo necessidade de especificar alterações corporais nanorrobóticas (CASE, 2010;REMBOLD, 2014).
Ao pensar essa contestação em especial, revela-se a característica crucial do ciborgue: se a tecnologia aprimorada pela humanidade ao longo dos milhares de anos de evolução levou seus membros a estenderem seus sentidos e capacidades físicas e cognitivas para fora dos limites naturais do corpo (com máquinas de todos os tipos: computadores, aviões, microscópios...), as mais recentes tecnologias em robótica e inteligência artificial são capazes de retomar essas possibilidades sobre-humanas para o organismo natural e é nesse ponto que a hibridização se concretiza. Isso não significa que a importância das tecnologias extracorpóreas será minorada, mas pode ofertar indícios de que suas quantidade e tamanho diminuirão, ou seja, haverá uma desmaterialização, no sentido de que "a revolução digital, ao substituir átomos por bits, está desmaterializando o mundo bem diante dos nossos olhos" (PINKER, 2018). Os ciborgues são um prenúncio desse futuro. Enquanto o humano moderno necessita da ferramenta, o ciborgue dispõe dela dentro de si: os resultados finais podem ser semelhantes, os meios que se alteram e trata-se de uma variação corporal relevante.
Superadas as objeções, pode-se traçar um quadro conceitual norteador para o ciborgue: refere-se ao ser humano melhorado que integra indiferenciada e parcialmente em seu organismo ferramentas que lhe dotam de capacidades não naturais. Tem-se um dado do ser, cientificamente evidenciado, apto a alterar o dever-ser. Assim, a relevância da variação corporal do ciborgue se justifica juridicamente pois definir a personalidade humana perpassa pelas possibilidades físicas.
4. Ser pessoa e fluidez de ser humano: a emergência da pessoa não-natural
Embora o ciborgue seja um prelúdio para ser humano no futuro, não constitui o único cenário possível pois humanos moldados e quimeras também permearão as possibilidades. A liberdade morfológica, valor transhumano que prediz bilateralmente que, "se as pessoas têm o direito de se modificar por meio das biotecnologias, elas também têm o direito de se abster do projeto transumanista" (RANISCH, 2014), garantiria essa variabilidade. Portanto, vislumbrar as inúmeras formas prognósticas de ser humano é a primeira etapa na discussão do ciborgue enquanto pessoa: a condição nova será uma escolha entre outras, não um dado natural, aparentemente acabado, e o espelhamento direto da pessoa natural com o animal humano não mais poderá ser aplicado da forma como o é. Então, como poderá sê-lo?
Para responder a essa pergunta é preciso avançar nas próximas etapas e voltar-se às relações de consequências entre o molde corpóreo e o espectro de possibilidades: a condição nova acarretará uma alteração fenotípica não generalizante, ou seja, o melhoramento trará humanos com organismos muito mais diversos do que os já existentes, além de bastante heterogêneos entre si, e corpos díspares serão resultantes dos graus de melhoramento - a medida do nível de melhoramento, através da robótica e da inteligência artificial, em cada indivíduo -, que levarão a uma dilatada desigualdade de potencialidades, a qual, por sua vez, promoverá diversidades quanto às responsabilidades e vulnerabilidades daqueles que optarem por essa condição, o que, por fim, resultará em "um novo tipo curiosamente assimétrico de relação entre pessoas" (HABERMAS, 2003)14.
A noção de natureza presume uma universalidade de capacidades que é reconhecível em quaisquer exemplares da espécie: voltando-se aos atletas olímpicos, por mais que hajam humanos que são exímios corredores ou nadadores, todo ser humano, em tese15, está apto a correr ou a nadar. Porém, um ciborgue com neuroprótese composta por rodas que o garante correr na velocidade de um guepardo, e outro com dispositivos nanorrobóticos que atuam em seu sistema respiratório assegurando que fique embaixo d'água por horas, como um elefante-marinho, desarmam essa noção. A variabilidade genética humana é ampla, mas é limitada; já no corpo dos ciborgues, a superação dos imperativos biológicos se tornará desmedida. Não há espaço para o "ciborgue médio".
Ademais, como as possibilidades de ser e agir serão muitas, é razoável inferir que nem todos que optarem pelo melhoramento irão querer implantar os mesmos dispositivos e ter as mesmas potencialidades extrapoladas. Da mesma forma, não há como prever quais deles intentarão manter a aparência mais humanizada ou menos, isto é, o quão mais dentro "do molde" intentarão aparentar, além do fato de que é razoável supor que haverá ciborgues com aparência "mais humana", mas com potencialidades não-humanas altíssimas, e ciborgues com aparência "menos humana", mas com potencialidades não-humanas mais moderadas.
A partir desse complexo cenário - muitas formas de ser humano e muitas formas de ser ciborgue - percebe-se a formação de uma miríade de seres que são tão diferentes entre si que as responsabilidades de uns em relação aos outros e as vulnerabilidades pessoais16- muitas formas de se relacionar juridicamente - serão inéditas. O ciborgue com neuroprotése para correr pode lesionar acidentalmente tanto um humano não melhorado, quanto outro ciborgue com uma capacidade neuroprotética muito distinta e pode ser lesionado gravemente em regiões corporais diferentes daquela que suporta sua capacidade ultrapassada. Além disso, os dispositivos mecânicos de sua neuroprotése podem ser atacados por vírus virtuais, de forma dolosa ou culposa, que lhe trarão novas patologias. O ciborgue com nanorrobôs para respirar embaixo d'água pode escolher se autolesionar para obter essa capacidade. É nesse ponto que a discussão da pessoa reaparece: questões jurídicas de diversas ordens se entremeam num emaranhado de perspectivas nas quais o Direito não pode ficar inerte.
Se ser pessoa é ser portadora de direitos e deveres em um contexto social, torna-se manifesto que o ciborgue demanda por uma nova forma de sê-la. A pessoa natural não é capaz de suportar as mudanças advindas de sua existência. Contudo, sua construção teórica pode ser um ponto de partida. Nesse sentido, o adjetivo "física", por atinar a uma realidade material geral, é mais apropriado do que "natural", a priori.
Assim, a pessoa física pode ser dividida em duas, em sentido estrito e em sentido lato, as quais coincidem, em certa medida, com o humano modificado e com o humano melhorado: aquela abarcaria somente humanos "do molde", com a mesma carga teórica já existente de direitos e deveres e a que virá a existir no transcorrer das transformações sociais futuras, já essa abarcaria os transhumanos, se subdividindo em "ciborgue" e "quimera", que, por sua vez, teriam direitos e deveres próprios, a depender da complexidade de suas existências, as quais, ainda, só podem ser conjecturadas. Em outros termos, aquela seria a "pessoa natural" e essa a "pessoa não-natural".
Ao levar em consideração a realidade material corpórea do ciborgue como tão divergente da realidade material corpórea do humano vigente e como parâmetro normativo, culmina-se na ideia de que, no Direito, sua existência não necessariamente fará uma alteração teórica brusca, mas, assim como alargará possibilidades materiais de existência de ser humano, alargará as possibilidades jurídicas de ser resguardado e de possuir obrigações. O medo de bioconservadores de que o ciborgue possa minar a existência do humano natural em significância moral e jurídica não se justifica17 1: esse não precisa deixar de existir para que aquele exista. A elasticidade de ser e de dever-ser garante isso.
Assim, com a concepção da pessoa não-natural, buscou-se inserir no propósito transhumanista de "prever futuros possíveis (...) para que possamos tentar antecipar e melhorar alguns dos efeitos colaterais e secundários e desenvolver respostas, políticas e organizações resilientes" (MORE, 2011).
5. Conclusão
Em geral, o ciborgue enquanto novo ser humano, quebrador de paradigmas morais e jurídicos equivocadamente considerados estáveis, trará inúmeros problemas para os mais variados campos jurídicos ao suscitar questões trabalhistas, penais, civis e tributárias que certamente suscitarão rearranjos institucionais e novos institutos jurídicos. Porém, nada disso é possível ou, pelo menos, satisfatoriamente aplicável, sem que sua pessoa seja delimitada. É a pessoa que inaugura a existência jurídica do ser e essa pessoa possui uma estreita relação de retroalimentação com a realidade. Assim, o que ora se defende é que, com o ciborgue, o Direito não terá que lidar com uma renovação da pessoa em si, mas sim com uma ampliação, tal qual se dará com a inclusão daquele no rol da humanidade. A pessoa não-natural é a candidata a preencher esse posto.