1. Introdução
Os cuidados paliativos (CP) aplicados a seres humanos se consolidaram a partir da ideia transposição da perspectiva dos cuidados médicos da cura da doença para o cuidar do paciente (Pessini, 2004). Os CP, também denominados de cuidados ou filosofia de hospices, se originaram em remotas civilizações, com um viés rotineiramente religioso e assistencial, destinado a cuidados aos peregrinos e doentes que buscavam abrigo e amparo (McCoughlan, 2004). À medida que o desenvolvimento tecnocientífico foi associado às práticas médicas, a longevidade dos pacientes foi ampliada, acabando por estigmatizar aqueles em final de vida, por representar o fracasso dos profissionais na luta contra a cura. Na década de 1950, Cecily Saunders fundou o St. Cristopher Hospice, em Londres, local que passou a especializar os CP para doentes terminais, identificando as dimensões da dor total: física, psicológica (emocional), social e espiritual. Assim, emergindo o foco do cuidado para a experiência a ser vivenciada pela pessoa e sua família sobre a doença crônica e o processo de morrer, permitindo, com isso, encarar a morte com menos temor e mais serenidade (McCoughlan, 2004).
A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2002, elencou os princípios dos cuidados paliativos (Messias et al., 2020): I) promover o alívio da dor e de outros sintomas desagradáveis; II) considerar a morte como um processo natural; III) não acelerar nem adiar a morte; IV) integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente; V) oferecer um sistema de suporte que possibilite ao paciente viver tão ativamente quanto possível até a sua morte; VI) oferecer sistema de suporte aos familiares durante a doença e o enfrentamento do luto; VII) abordagem multiprofissional em todas as etapas dos cuidados; VIII) melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da doença; e IX) iniciar o cuidado o mais precocemente possível. Verifica-se, a partir dessas premissas, que além de trazer o foco para o paciente, os CP prezam pela ideologia de um tratamento multidisciplinar e integral, incluindo a família, em razão da vulnerabilidade do contexto da morte.
Os CP se estruturam frente ao avanço tecnológico associado à medicina que ampliou a expectativa de vida, seja com a administração de drogas ou com uso de equipamentos de diagnóstico e intervenção. Contudo, se por um lado o avanço tecnológico da biomedicina alcançou o desenvolvimento de tratamentos sofisticados de diversas doenças, coube à Bioética trazer limites para a aplicação dessas tecnologias à vida humana, reacendendo as discussões sobre o direito à autonomia dos pacientes e à vida com dignidade, conferindo-lhes um lugar de protagonismo na tomada de decisões (Maingué et al., 2020).
Com as novas configurações sociais dos núcleos familiares, que incluiu a figura do animal de estimação na categoria de integrante familiar, surgiram as famílias multiespécies que são, inclusive, reconhecidas pelo Direito brasileiro (Fischer et al., 2019). Os animais não-humanos passaram a exercer a função de "filhos" (Walsh, 2009; Fischer et al., 2019), muitas vezes na expectativa de suprir necessidades emocionais dos humanos (Pastori & Matos, 2015, Fischer et al., 2022). Paralelamente, avanços tecnológicos também impactaram na Medicina Veterinária e os animais não-humanos, afastados dos desafios de sobrevivência na natureza, também tiveram sua longevidade ampliada, importando as discussões sobre fim da vida, que antes eram restritas à vida humana.
O Direito Animal emergiu no âmbito jurídico como disciplina que se pretende autônoma, com o objetivo de amparar juridicamente discussões como qual o melhor momento de se optar pela eutanásia, em que se defende o animal como sujeito de direitos fundamentais, respaldado pelo princípio da dignidade animal, insculpido no artigo 225, §1º, inciso VII, da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), que tem como premissa a proibição da crueldade com os animais (Ataíde-Júnior, 2022). Essa proibição autoriza a interpretação de que o ordenamento jurídico brasileiro, por meio de sua lei maior, reconhece os animais como seres sencientes/conscientes, dotados de valor intrínseco próprio. A partir dessas proposições, de que animais têm dignidade própria, a presente pesquisa, sob o recorte dos CP em animais de estimação, desperta a indagação sobre o direito desses animais de também viverem e morrerem com dignidade, sem que sejam submetidos a eutanásia precoce, bem como a tratamentos distanásicos, que apenas prolongam o sofrimento, sem lhes possibilitar o desfrute de uma vida com níveis de bem-estar satisfatórios e com qualidade de vida.
A garantia da qualidade de vida e o controle de sintomas desconfortáveis despontam como critérios de maior relevância para situações em que se avaliam se os benefícios de tratamentos aos animais superam os possíveis efeitos adversos das terapias e da própria doença (Magalhães & Ângelo, 2020; Menine, 2021; Goldberg, 2016; Shearer et al., 2017). Dentre as questões que atualmente atingem os animais não-humanos, é possível destacar os dilemas sobre até quando seria considerado ético manter um animal vivo, em tratamento curativo ou paliativo, em razão do desejo de seus responsáveis. De outro lado, questiona-se como encarar o procedimento de eutanásia, nas situações autorizadas pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV).
A Resolução do CFMV nº. 1.000/2012 (2012a) prevê as hipóteses eticamente aceitas pelo órgão de classe para a realização da eutanásia: a) o comprometimento irreversível do bem-estar animal; b) ameaça à saúde pública; c) risco à fauna nativa ou ao meio ambiente; d) quando o animal for objetivo de atividades científicas, devidamente aprovadas por Comissões de Ética para o Uso de Animais (CEUA); e) quando os custos do tratamento se mostrarem incompatíveis com os recursos financeiros do proprietário. Questiona-se se essa última hipótese deve ser mantida como eticamente aceitável pelo CFMV em um animal que, apesar da doença de base incurável, ainda conseguiria desfrutar de uma vida de qualidade.
Partindo-se dos dados obtidos com as pesquisas realizadas por Fischer et al. (2022) sobre a humanização dos animais de companhia, e Carvalho e Fischer (2022), sobre a percepção de médicos veterinários, protetores e tutores sobre os cuidados paliativos em pacientes veterinários, questiona-se como o meio científico e jurídico estão se posicionando com relação aos CP em animais de estimação como alternativa à realização da eutanásia precoce. A presente pesquisa testou as hipóteses de diferenças nas perspectivas da eutanásia e dos CP, bem como entre os cenários nacional e internacional. Assim, objetivou-se mapear a perspectiva, critérios, procedimentos e referenciais éticos e científicos dos CP e da eutanásia em animais de estimação por meio de uma revisão de literatura integrativa.
2. Materiais e métodos
2.1. Revisão de literatura integrativa
A revisão integrativa partiu da pergunta norteadora: "Como o meio científico tem abordado a questão dos cuidados paliativos em animais de estimação com base nos critérios para a indicação dos CP ou a realização da eutanásia". Partindo-se do grupo focal com médicos veterinários, protetores e tutores desenvolvidos por Carvalho e Fischer (2022), testou-se a hipótese de existência de lacunas quanto a um protocolo a respeito desses critérios, principalmente em âmbito nacional. Para tal, foi realizada uma revisão integrativa de acordo com o percurso metodológico proposto por Souza et al. (2010), considerando-se as seis fases: elaboração da pergunta norteadora, busca ou amostragem na literatura, coleta de dados, análise crítica dos estudos incluídos, discussão dos resultados e apresentação da revisão integrativa. Os critérios de inclusão dos textos científicos serão: artigos descritivos, exploratórios, longitudinal, pesquisa participante, revisão e transversal.
A coleta de dados foi realizada em 23/05/2022 nas bases de dados do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, uma fundação vinculada ao Ministério da Educação do Brasil que congrega diferentes bases de dados e do Google Acadêmico (em modo anônimo e com limpeza de memória cache). Em ambos foi aplicado o cruzamento dos termos "cuidados paliativos" e "animais de companhia" e "veterinária" e "eutanásia" e também "palliative care" and "animals" and "veterinary" and "euthanasia". Das sugestões de resultados obtidas em mais de 100 indicações, foram amostrados os 100 primeiros registros de cada um dos buscadores. Como critérios de exclusão, foram aplicados os condicionantes: artigos não disponibilizados na íntegra, citações, artigos com duplicidade e aqueles que, ainda que contivessem as palavras-chaves indicadas, enfrentavam questões alheias às investigadas no recorte temático proposta na presente pesquisa.
2.2. Análise jurisprudencial
A segunda etapa da pesquisa teve como objetivo analisar como a questão ética a respeito da vida e morte de animais não-humanos impacta juridicamente nos profissionais e nos serviços médico-veterinários. Para tal, realizou-se em 31/08/2022, uma pesquisa no site JusBrasil (www.jusbrasil.com.br), um buscador de jurisprudência que auxilia a busca de dados e documentos relacionados a processos judiciais. Para viabilizar a análise, utilizou-se como critério de pesquisa as palavras "médico-veterinário" e "cuidados paliativos", não tendo sido encontrado qualquer resultado. Posteriormente, optou-se pela busca dos termos "médico-veterinário" e "responsabilidade civil", que é o conceito de Direito Civil ligado ao dever de reparar danos, com o objetivo de abranger, dentre os resultados apontados, as ações que frequentemente são movidas por clientes (responsáveis de animais) quando possivelmente existem falhas na prestação de serviços em médico-veterinários, capazes de ensejar indenizações (Kfouri-Neto, 2007).
Os resultados foram categorizados de acordo com o assunto tratado em: a) ações contra profissionais e serviços veterinários; b) ações de ofensas, injúrias e difamações; c) ações indenizatórias envolvendo ataques entre animais; d) ações relacionadas exclusivamente aos serviços de banho/tosa de animais; e) ações relacionadas a concursos públicos prevendo vagas para médicos veterinários; f) ações de maus-tratos contra animais, e g) outras ações (englobando os demais assuntos, que englobavam ações de erro médico humano, ações contra concessionária estadual de energia elétrica, por queda de torres e morte de animais em área rural, acidentes de trânsito com colisão com animal, ações contra municípios por má conservação de pistas e morte de animal, ações contra fornecedores de ração para bovinos, ações contra defeito nos serviços de inseminação artificial de animais e ações pleiteando adicional de insalubridade).
2.3. Análise dos dados
A categorização do conteúdo científico incluiu os artigos que se tratava de CP em animais, excluindo aqueles relativos a CP em humanos que usavam animais em Atividade Assistida por Animais (AAA). A análise do conteúdo se deu por meio da análise semântica de Bardin (2011) segundo as etapas: definição das categorias; organização quantitativa das unidades de registro obtidas por consenso de dois pesquisadores; e interpretação dos resultados subjacentes ao conteúdo analisado, cujas categorias e subcategorias determinadas a posteriori e baseado nos resultados de Carvalho e Fischer (2022) foram: a) pesquisas teóricas ou práticas; b) método da pesquisa (questionário, entrevistas, revisões exploratórias, revisões de literatura e relatos de caso); c) os conceitos de cuidados paliativos, subcategorizados como: emocional; científico; funcional; condicionante; focado; integral; d) os conceitos de eutanásia, subcategorizados como: emocional; científico; funcional; condicionante; focado; integral e legal; e) os procedimentos descritos, subcategorizados como: farmacológico; não farmacológico; suporte nutricional; cirurgia paliativa; quimioterapia paliativa; radioterapia paliativa; escala qualidade de vida; informação; disponibilidade do veterinário; eutanásia; domiciliar e integral; f) abrangência das doenças que comumente acometem animais (doenças graves, crônicas e/ou sem perspectiva de cura, mas que justificam a possibilidade dos CP); g) as doenças: oncologia; insuficiência de sistemas e órgãos; osteoartrite; neurológicas e animais idosos-geriatria; h) as espécies de animais; i) normativas legais mencionadas; j) os critérios para tomada de decisão (qualidade de vida; limitação financeira; sofrimento animal; informação adequada e possibilidade de medidas não paliativas); k) os critérios para decisão; l) procedimentos para geriatria; m) adaptação dos ambientes; n) identificação dos sinais clínicos pelo tutor; o) procedimentos com tutor, família e médico; p) responsabilidades atreladas à decisão; q) perspectiva ética identificada (abolicionismo; utilitarismo; senciocentrismo; 5 liberdades; ética das virtudes; ética do cuidado; ética hindu); r) os princípios bioéticos (implícitos e explícitos); s) fragilidades, dentre as quais se identificaram resistência aos CP (profissional/meio científico, ao tutor e financeira e social); t) potencialidades (educação; ética, informação, abordagem multiprofissional do tratamento, inovação, planejamento e direito).
Os valores absolutos do resultado de cada categoria foram comparados por meio do teste do qui-quadrado, considerando como hipótese nula a homogeneidade da amostra a um erro de 5% e confiabilidade de 95% (P<0,05).
3. Resultados e discussão
A revisão integrativa se estabeleceu a partir do universo de 535 textos recuperados com o recorte proporcionado pelo percurso metodológico aplicado, os quais após passarem pelos critérios de exclusão/inclusão, resultaram em 43 artigos científicos, predominantemente internacionais e teóricos (Figura 1). A hipótese inicial de diferenças nas produções científicas nacional e internacional foi confirmada, indicando insuficiência de grupos de pesquisas no enfretamento do tema em âmbito científico nacional. Magalhães e Ângelo (2020) já haviam alertado para a baixa produção cientifica brasileira sobre CP relacionando esse resultado a uma incipiência de normas oficiais. Segundo os autores, a inserção da temática no contexto formal e legal se constitui de um incentivo ao interesse dos grupos de pesquisa.
A ausência de protocolos e normativas editadas pelo CFMV, especificamente sobre CP, se contrapõe com a existência de regulamentação da eutanásia (CFMV, 2012a). Dentre as cinco situações previstas para legitimação da eutanásia pelo CFMV, se destaca a insuficiência de recursos financeiros do proprietário, possibilitando a prática da eutanásia precoce, ainda que tal conduta seja eticamente questionável. Essa lacuna normativa no enfrentamento do tema acaba por imputar vulnerabilidade para os animais não-humanos, uma vez que a eutanásia insurge como alternativa terapêutica. Acresce-se a potencialização da convicção de que o responsável pelo animal tem o poder irrestrito de decidir pela vida ou morte do animal sob a sua tutela, eximido de consequências éticas, sociais ou jurídicas.
A legislação brasileira permite a responsabilização de qualquer pessoa que cause maus-tratos aos animais (Lei nº. 9605, 1998; CFMV, 2018), inclusive de seu responsável, sendo que a eutanásia de conveniência (morte sem justificativa médica), por acarretar sofrimento desnecessário e resultar em morte, pode vir a se enquadrar como uma modalidade típica de maus-tratos no caso concreto, conforme consta do artigo 32, §2º, da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº. 9605, 1998). Nesse sentido, surge a possibilidade para a atuação dos membros do Ministério Público, na tutela criminal da dignidade e da vida animal. Ademais, para a realização do procedimento da eutanásia, é necessária a atuação de um médico-veterinário, que também poderá vir a ser responsabilizado por causar a morte de um animal injustificadamente, segundo consta no artigo 2º, do mesmo diploma legal (Lei nº. 9605, 1998). Caberia ao profissional, diante do pedido indevido do cliente, comunicar as autoridades responsáveis (CFMV, 2018). Contudo, indubitavelmente, se trata de uma decisão delicada, por vezes conflituosa, pois poderia trazer problemas de relacionamento com os clientes, acarretando impactos financeiros na atividade do profissional.
Concomitantemente, ao se negar a operar o procedimento, o médico veterinário não impediria que o procedimento fosse realizado em outro local, em condições inapropriadas, que acarretassem maior sofrimento ao animal e, inclusive, por profissionais não capacitados (Carvalho e Fischer, 2022). Bem como não coibiria o responsável de abandonar o animal, maximizando a sua vulnerabilidade. Tal situação foi, inclusive, referida por médicos veterinários, no grupo focal realizado por Carvalho e Fischer (2022), como uma justificativa para o atendimento do pedido de eutanásia sem indicação médica, assumindo o controle, ao menos, uma morte digna ao animal.
Por outro lado, subsiste a obrigação do médico veterinário em sempre prestar esclarecimentos ao responsável pelo animal e apresentar as possibilidades terapêuticas (CFMV, 2018; CFMV, 2020). Consequentemente, o profissional deve indicar o momento em que seria recomendável a suspensão de terapias fúteis e ser realizada a eutanásia. Bem como a possibilidade de se implantar tratamentos paliativos, que assegurem a qualidade de vida do animal. A comunicação deve ser transparente, sem ruídos e visar o bem-estar-animal (BEA), focando nas suas reais necessidades, sob pena das decisões tomadas pelo responsável desinformado levar o animal ao sofrimento desnecessário. Segundo Spingere e Flammer (2021) a linha entre prolongar ou não a vida pode ser tênue e evoluir para o problema do tratamento excessivo que apenas prolongaria o sofrimento do animal. Inclusive estender a vida do animal além do plausível pode decorrer de decisões alimentadas por sentimentos, ainda totalmente incompreendidos, estimulado pelo mercado pet que normatiza procedimentos como a rinoplastia, lifting nos olhos e lipoaspiração (Kulick, 2009, Fischer et al., 2022). Carvalho e Fischer (2022) demostraram que a comunicação, principalmente de más notícias, é considerada uma limitação pelos médicos veterinários, que reivindicam que sejam melhor abordadas no processo de formação acadêmica.
Os valores absolutos das subcategorias foram comparados entre si em cada categoria, partindo a hiopótese nula de homogeniedade da amostra, sendo os valores signficiativamente maiores (P<0,05) acompanhado de asterisco (*).
O CP foi definido, nas pesquisas analisadas, predominantemente e na mesma proporção segundo a perspectiva funcional (visando vida útil e de qualidade) e direcionada (com foco no cuidado), enquanto a definição de eutanásia se apresentou proeminentemente direcionada (com foco em mitigar o sofrimento), contudo, com uma diversidade maior de subcategorias. Por outro lado, enquanto os critérios para implementação dos CP agregaram principalmente referências funcionais (manutenção da vida útil), a eutanásia foi legitimada em critérios técnicos como baixa qualidade de vida, seguido da dor não controlável e da impossibilidade de cura da doença (Figura 1).
Os artigos analisados que aprofundaram a definição de CP, demostraram a necessidade de se utilizar de mecanismos que possibilitem o controle de sintomas angustiantes, desconfortáveis e experiências dolorosas, sendo que, na impossibilidade de controle desses sintomas, a eutanásia passa a ser justificada (Shearer, 2011; Villalobos, 2011; Marocchino, 2011; Downing, 2011a; Carter, 2020, Carvalho & Fischer, 2022). Downing (2011a) alertou que a dor, o estresse e a ansiedade são concomitantes em pacientes animais. O estresse desempenha um papel protetor, concentrando a atenção do animal em evitar ou escapar do estressor. Se o agente estressor é a dor, e a dor é constante ou não aliviada, o animal não consegue escapar ou minimizar efetivamente esse estresse, levando a um estado de ansiedade, cujas funções biológicas são interrompidas. Consequentemente, a ansiedade não aliviada leva ao sofrimento. Vale dizer que a definição dos CP não esteve atrelado, necessariamente, com o aumento de sobrevivência dos animais, mas sim com a possibilidade de viver com qualidade, aplicando-se critérios para medir e quantificar a qualidade de vida. Logo, a longevidade não é o objetivo dos CP, mas a vida com qualidade, a partir de um plano de cuidados personalizados que transpõem a cura.
O CP em Medicina Veterinária, tal qual na Medicina Humana, busca imputar uma perspectiva mais cuidadosa para ao paciente, transformando os ideais de "curar", voltando-se as atenções para o "cuidar" (Figura 1). Nesse sentido, o foco passa a ser o paciente e não mais a doença, buscando minimizar o desconforto, otimizando medidas para trazer qualidade de vida, a fim de que o paciente tenha condições de "viver ativamente até morrer" (Downing, 2011b).
A morte e do processo de morrer congrega estigmas, o mesmo ocorrendo com a eutanásia e os CP, contaminando os procedimentos e as expectativas, se não bem alinhadas. Para Marocchino (2011), os CP para animais de estimação são conceito relativamente novo e, em razão disso, podem deixar de ser oferecido pelos médicos veterinários. Bem como podem não estar familiarizados com o conceito de hospices para animais de estimação, ou mesmo mostrarem resistência na indicação CP devido a uma má compreensão do termo. A falácia de que a colocação de um paciente em programa de CP significa condená-lo a uma sentença imediata de morte (Carvalho & Fischer, 2022) deve ser combatida. Pois, assim como em humanos, o CP engloba o cuidar de um paciente portador de uma doença sem perspectiva de cura, mas que pode conduzir a uma sobrevida de anos (Carvalho e Fischer, 2022). De maneira semelhante, o conceito da eutanásia traz arraigado a si uma perspectiva negativa oriunda do senso comum, aplicada aos humanos, uma vez que se caracteriza como crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal). Transformar essa visão, ressignificando a eutanásia para os animais com uma conotação positiva, de alívio de dor e sofrimento é uma tarefa que demanda informação, amplo debate, processos educacionais e desconstrução de pré-conceitos (Favarim, 2014).
A definição dos CP também apontou a necessidade de um cuidado multidisciplinar, que englobe a saúde física e mental, buscando o fortalecimento de vínculos entre a equipe veterinária, o responsável pelo animal e o próprio paciente (Figura 1). A necessidade da equipe multidisciplinar em CP, consolidada na medicina humana, se justifica não só pelo gerenciamento dos cuidados ao paciente, mas também àqueles destinados aos familiares, na forma de encararem a perda do ente querido e do enfrentamento do processo de morte (Fischer et al., 2022). Há a necessidade de apoio psicológico, emocional e espiritual e de educação sobre o processo de morrer e do luto (Hewson, 2015; Dawson, 2008), durante a trajetória da doença e após a morte do animal. Dentre as ferramentas de comunicação destacou-se a aplicação de metodologias como a Goal of Care (GOC), que envolvem processos de conversação, informação e esclarecimento sobre a trajetória da doença e do cuidado (Goldberg, 2019).
Os CP também foram apontados, nos artigos consultados, como alternativa para a eutanásia imediata, quando ainda há possibilidade de vida com qualidade. A constatação da perspectiva de uma sobrevida constituiu em um dos parâmetros éticos mais utilizados pelos veterinários participantes da pesquisa de Carvalho e Fischer (2022) para a indicação da terapia paliativa. A eutanásia, por seu turno, ainda abrange certo grau de polêmica e divide opiniões. Há quem compreenda o procedimento como um verdadeiro "presente" (Taylor, 2017), inexistente na Medicina Humana, que permite aos médicos veterinários oferecer ao animal uma morte rápida e livre de dor, de modo a findar o sofrimento do animal de forma irreversível (CFMV, 2012a).
Por outro lado, Hurn e Badman-King (2019) defenderam que a realização da eutanásia, ainda que preenchidos os requisitos de baixa qualidade de vida, não deveria ser realizada pelo médico veterinário do animal. Tampouco autorizada pelo responsável, pois representaria uma grave traição do cuidador humano para com o animal, que deveria sempre agir em seu interesse e respeitá-lo como um ser divino, sendo o sofrimento, um aspecto inevitável da vida e da morte. Logo, a oportunidade do ser vivo (humano ou não humano) de conectar-se com o espiritual, não deve ser evitado.
A dissonância a respeito da legitimação da eutanásia enquanto procedimento ético é algo que reflete a necessidade de se rediscutir a Resolução 1.000/2012, do CFMV. Uma vez que, se um lado, traz na sua exposição de motivos preocupações éticas sobre a realização do procedimento, reconhecendo expressamente a senciência animal, de outro autoriza sua realização na ausência de recursos financeiros do responsável pelo animal. Vale consignar que essa previsão na referida resolução é contrária ao princípio da dignidade animal, pois afronta a previsão constitucional de proibição da crueldade (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Trata-se, assim, de norma inconstitucional. Ademais, seu texto oportuniza a prática indiscriminada da "eutanásia de conveniência", por critérios exclusivamente financeiros, quando o tratamento paliativo poderia se apresentar como uma alternativa viável. Embora exista um Guia de Boas Práticas para Eutanásia em Animais (2012b) editado pelo CFMV há uma década, no qual constam que as hipóteses autorizadoras da Resolução 1.000 ficam restritas às situações nas quais não exista a possibilidade de medidas alternativas, esse documento, meramente consultivo, não tem o condão de se sobrepor ao teor da referida Resolução, que autoriza o procedimento por insuficiência de recursos no proprietário (CFMV, 2012b). Há, sob outra perspectiva, o risco de se potencializar a vulnerabilidade entre pessoas e animais, quando estes possuem necessidades de cuidados especiais e seu responsável não têm condições de supri-las e, ao mesmo tempo, não concorda em realizar a eutanásia. Essa preocupação também foi apontada pelo grupo focal de Carvalho e Fischer (2022), quando é possível antecipar que a doença acarretará sequelas ao animal que exigirão dedicação do responsável, trazendo dificuldades no cuidado e na adoção.
Os procedimentos associados aos CP foram mais diversos do que aqueles associados à eutanásia (Figura 1), uma vez que demostraram uma confluência de procedimentos de suporte farmacológicos ou não, mas que busquem o alívio da dor e do desconforto. Ademais, foram identificados procedimentos de cunho multidisciplinar, como a utilização de massagens terapêuticas, quiropraxia, alongamento, acupuntura, liberação miofascial, laserterapia, ozonoterapia e terapia nutricional (Downing, 2011a, Carvalho & Fischer, 2022). A utilização de procedimentos mais invasivos foi igualmente presente nos textos analisados, com destaque para cirurgia paliativa, a quimioterapia paliativa e a radioterapia paliativa. Entretanto, destacando o sopesamento entre os benefícios que tais medidas podem trazer ao paciente, em comparação aos níveis de qualidade de vida que eles possuem ao longo do planejamento dos protocolos de cuidado (Garcia et al., 2009; Menine, 2021). A avaliação do conjunto de procedimentos paliativos, além de acordada com o responsável, deve ser pautada em princípios e valores éticos. Assim, espera-se que a decisão seja a mais adequada, evitando-se a adoção de medidas que prolongue uma vida com sofrimento e sem qualidade.
Outro importante procedimento no contexto dos CP foram as medidas de conforto, higiene e segurança do paciente, corroborando os princípios dos CP que otimizam os cuidados em detrimento da obrigatoriedade da cura da doença. Downing et al. (2011) assinalaram a importância dessas medidas a fim de se evitar o distanciamento e a morte social do animal de estimação, pelos inconvenientes que podem advir em razão de incapacidades ou da idade, promovendo o isolamento tornando-o menos interessante e ativo. A prevenção desse cenário é possível de ser combatida por meio de um processo educativo para o exercício da tutela responsável, que abranja aspectos de todas as fases da vida do animal, sobretudo a fase final da vida. Vale lembrar que boas conexões surgem entre humanos e não-humanos envolvidos na trajetória da doença quando há interação, contato e cuidado (Barcelos et al., 2020). É possível ensinar os responsáveis pelos animais como aplicar técnicas para maximizar o conforto e reforçar o vínculo humano-animal. Downing (2011b) reiterou que o simples ato de acariciar os animais pode constituir-se de uma medida terapêutica.
As adaptações ambientais necessárias para os CP foram relacionadas com a preparação de um local confortável e seguro (Figura 1). Partindo-se da premissa do cuidado com o paciente e não com a doença, as medidas de conforto e segurança buscam minimizar, tanto quanto possível, a desafiadora trajetória da doença. Nesse sentido, também se mostra como uma possível alternativa para priorizar o conforto que o tratamento seja realizado no domicílio da família multiespécie, local conhecido pelo animal, em que ele pode se sentir seguro, diminuindo os níveis de agentes estressores, além da própria doença (Kerrigan, 2013). Médicos veterinários volantes, que se deslocam até o domicílio do cliente, podem ter destaque no tratamento paliativo, permitindo a aproximação com paciente e a criação de vínculos, fator de suma importância. Além disso, foram identificadas, nos textos analisados, medidas adaptativas como a utilização de rampas, pisos antiderrapantes, realocação da cama para local próximo do responsável, utilização de comedouros e bebedouros elevados e controle de temperatura e luz. Ferramentas simples e de fácil adesão, mas que são eficazes em proporcionar bem-estar ao paciente. Contudo, a manutenção do animal em CP em casa demanda de uma proatividade dos responsáveis para o monitoramento do animal, o qual deve ser bem-informado (Figura 1). A informação adequada é devida pelo médico-veterinário não só enquanto dever ético (Código de Ética do Médico-Veterinário, 2016), mas também como dever legal, decorrente da aplicação das regras do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, 1990), em razão da prestação de serviços médico-veterinários.
Em relação aos procedimentos vinculados à eutanásia, verificou-se uma preocupação em priorizar o atendimento domiciliar, minimizando o estresse do deslocamento de um animal debilitado, além de permitir privacidade para o enfrentamento do momento (Magalhães & Ângelo, 2020). Outro aspecto debatido nos textos foi a presença e participação do responsável pelo animal no momento da realização da eutanásia, bem como de outros animais com vínculo com o paciente para poderem processar a morte do companheiro (Dickinson & Hoffman, 2019). É importante que haja um diálogo esclarecido com o responsável sobre a importância da sua participação no procedimento de eutanásia, no entanto sua vontade e segurança devem ser consideradas, pois são fundamentais para agregar humanização no momento da morte. O compartilhamento de momentos ao longo da vida entre o humano e o animal de estimação certamente exige um empenho pelo cuidador, que é amenizado ao compreender que o sofrimento daquele ser deixará de existir. Isso corrobora a importância do planejamento dos CP, que envolvem conversas sobre a morte e fim da vida e como tornar esse momento minimamente reconfortante.
Os textos analisados sobre CP tratavam especialmente de cães e gatos e traziam como a principal causa os efeitos de tratamento oncológicos, contudo com destaque para insuficiência de órgãos, geriatria e doenças neurológicas (Figura 1) corroborando com os dados apresentados por Carvalho e Fischer (2022). O desenvolvimento de doenças crônicas se relaciona com a maior longevidade experimentada pelos animais em decorrência da domesticação e do compartilhamento de espaço com os humanos. Fischer et al. (2022), ao realizarem uma pesquisa sobre o perfil de tutores e os impactos da humanização dos animais, verificaram que não existe uma reflexão crítica quanto ao exercício da tutela de animais. Em regra, as pessoas, antes de assumirem tal compromisso, não avaliam se futuramente podem deixar de querer permanecer como responsável por aquele animal. Em situações que exijam maior comprometimento financeiro, emocional e disponibilidade de tempo como a fase idosa, ou acometimento de alguma doença grave ou sem perspectiva de cura, o despreparo dos humanos traz ainda mais impactos na qualidade de vida do animal. Ademais, as autoras também identificaram que novas espécies de animais não convencionais estão despertando o desejo dos tutores, desbancando a tradicional preferência por cães, em razão da maior facilidade de manejo, imputando a necessidade de procedimentos médicos ainda incipientes para animais exóticos e silvestres.
As decisões na perspectiva ética, além de compartilhada, devem ser baseadas em referenciais éticos e normativos, tal como identificado nos artigos analisados. Para o meio científico, os referenciais éticos demonstram o estágio de desenvolvimento em que ideias utilitaristas, sencioncêntricas e abolicionistas se completam (Figura 1). No contexto normativo foram destacados documentos tais como as diretrizes da International Association for Animal Hospice and Palliative Care (IAAHPC), que contêm ferramentas e recursos úteis, incluindo os princípios de comunicação empática no final da vida, planejamento colaborativo de cuidados paliativos e luto (Lennox, 2020). As diretrizes do American Veterinary Medical Association (AVMA) - Guide for Veterinary Hospice Care que determinam que a realização da eutanásia esteja disponível se o cliente e o médico veterinário acreditarem que este serviço é adequado (Johnson et al., 2011). Outra normativa referida pelos textos foi a utilização da Escala Quality of Live-QV, em que se avalia a quantidade pontuações negativas da escala avaliativa para pensar em estratégias definitivas de mitigação do sofrimento, como a eutanásia. Um paciente com uma pontuação abaixo de 35, provavelmente estará em sofrimento, logo, para Villalobos (2011), é hora de deixá-lo ir.
A inclusão da temática dos CP nas pautas da bioética é apoiada no fato de que, mesmo não se referindo diretamente à área, os textos demonstram a confluência com a temática ao se referirem a aspectos como BEA, valor intrínseco do animal, senciência, vulnerabilidade e deliberação. Também foram mencionados assuntos relacionados à Bioética do Cuidado aplicado a humanos (Oliveira et al., 2022), tal qual o acolhimento do luto, educação para o processo de morrer, encarar a morte como um processo natural, evitar tratamentos invasivos e fúteis, viver ativamente até o momento da morte. Ainda foi possível identificar perspectivas da Bioética Principialista, a partir do apontamento dos princípios da autonomia (estreitamente relacionado com a necessidade da informação adequada para viabilizar o exercício da autonomia) e os princípios da beneficência (fazer o bem) e da não-maleficência (não causar o mal) aos pacientes, demonstrando, novamente, que é válida e aplicável a aplicação desses conceitos da Medicina Humana (Souza e Wunshc, 2022) à Medicina Veterinária.
Dos 43 textos analisados 23 se refiram a limitações e potencialidades dos CP (Figura 1). Dentre as limitações se destacaram a resistência dos tutores em relação aos CP, o que pode ser favorecido pelo próprio desconhecimento do profissional em bem orientar sobre a terapia paliativa. Essa deficiência também foi destacada nos textos analisados e converge com a informação coletada nos grupos focais dos médicos veterinários avaliados por Carvalho e Fischer (2022). Na ocasião, a insuficiência de critérios técnicos para a tomada de decisão foi atrelada à necessidade emergente do CFMV editar normativas técnicas e protocolos para auxiliar profissionais e responsáveis.
Outra relevante questão ligada à limitação profissional relaciona-se com a fadiga por compaixão, também presente nas falas dos médicos veterinários analisados por Carvalho e Fischer (2022). Segundo Shearer (2011) e Hewson (2015), o distúrbio mental está cada vez mais recorrente dentre os médicos veterinários por lidarem diretamente com o sofrimento animal. Contudo, não tem sido dada a devida atenção para o fato de que a realização da eutanásia poder se constituir de um fator de geração de vulnerabilidade nos profissionais, uma vez que são potenciais em causar danos emocionais (Magalhães & Ângelo, 2020, Carvalho & Fischer, 2022). A questão foi considerada na Diretriz Brasileira para o Cuidado e Utilização de Animais (CONCEA, 2016) cuja eutanásia, de animais utilizados em atividades acadêmicas ou de pesquisa científica, deve ser realizada por profissional capacitado tecnicamente e emocionalmente, sendo a responsabilidade pela sua saúde mental um dever da Instituição.
As limitações relacionadas aos responsáveis pelos animais foram associadas à preocupação com a humanização dos pets e ao extremo apego, os quais para Johnson et al. (2011), travestidos de boas intenções, acabam por macular o BEA. Contrapondo com a limitação financeira que pode se sobrepor ao apego. Uma alternativa atual é a disponibilidade de planos de saúde veterinários, que aos moldes do atendimento à saúde suplementar humana, fornece uma gama de serviços chegando, em algumas modalidades, a atenderem as necessidades paliativas.
Em relação às potencialidades (Quadro 1), destacaram-se aspectos educacionais em relação ao processo de morrer e em relação às liberdades para garantir BEA aos animais de estimação, bem como dos responsáveis e da equipe médica veterinária. A potencialidade da educação e da informação foi identificada por Taylor (2017), Downing et al. (2011) e Carvalho e Fischer, 2022), reiterando tripla relação da prática veterinária entre o paciente, o veterinário e o cliente. Essas relações são caracterizadas pelas necessidades individuais de todas as partes e, portanto, variável. Por exemplo, os veterinários podem ser mais exigidos quando os responsáveis possuem laços emocionais estreitos com os animais. Ao passo em que, esse mesmo estreitamento de vínculos pode ter um impacto positivo, por representarem tutores mais dispostos a cuidar de seus animais ou a fazerem maiores investimentos financeiros em tratamentos veterinários de alto custo, incluindo hospices e serviços de CP.
À medida que as expectativas de cuidados de fim de vida de alta qualidade aumentam, mais pesquisas, tecnologia e inovação dos CP veterinários e maior treinamento para profissionais levarão a uma prestação serviços mais adequados (Taylor, 2017). A veterinária oncológica Alice Villalobos (2011) cunhou o termo pawspice para descrever a transferência de princípios e práticas da medicina humana à veterinária, demonstrando a importância em fomentar a discussão no âmbito da Medicina Veterinária. Para tanto, destaca-se que um estabelecimento hospice pet ou pawspice no Brasil demandaria regulamentação específica pelo CFMV, reconhecendo-o como estabelecimento veterinário, tal qual os já existentes na Resolução 1.275/2019 (2019). Contudo, Marocchino (2011) destacou que o objetivo do programa hospices para animais deve ser o apoio aos tutores e suas famílias na transição de um diagnóstico terminal para a morte de seu animal de estimação. A filosofia dos hospices pet ou pawspices, segundo Hewson (2015), busca evitar o sofrimento desnecessário por meio da elaboração de um plano de cuidados individualizado e apoio adequado ao cliente, incluindo atendimento multiprofissional.
O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), empregado no consentimento para participação em pesquisa científica, foi transposto o cotidiano médico como uma ferramenta eficaz para minimizar o risco legal na prestação de serviços veterinários em CP. Este formulário, precedido de informações oralmente prestadas, deve ser oferecido pelo médico veterinário e assinado pelo cliente. O documento abrangente deve informar de todos os riscos, responsabilidades e outras considerações na relação de CP, incluindo informações detalhadas sobre: a) o responsável legal; b) o diagnóstico e prognóstico do paciente; c) as várias opções de tratamento discutidas com o cliente e os riscos, benefícios e custos de cada uma; d) o plano de tratamento acordado; e) os detalhes específicos sobre como os cuidados devem ser prestados; f) riscos relevantes para o paciente, cuidador e quaisquer outros animais de estimação; g) acordos de pagamento. O propósito do formulário de consentimento informado é duplo: primeiro, quanto mais informações forem transmitidas ao cliente, melhor preparado ele estará para tomar as decisões difíceis e muitas vezes dolorosas que envolvem os CP. Funciona, também, como um reconhecimento de que o cliente foi informado e que compreendeu todos os riscos relevantes antes de decidir sobre determinada opção terapêutica. Os formulários de consentimento informado são extremamente úteis para resolver prontamente ou, ao menos, atenuar tais litígios (Shanan & Balasubramanian, 2011).
Os conteúdos científicos analisados nesta pesquisa não consideram a potencialidade de apropriação da bioética como uma ferramenta para auxiliar nas decisões sobre o tratamento mais adequado. Dentre as esferas de atuação da bioética na assessoria de decisões de saúde humana se destacam os comitês de bioética hospitalar. Embora a criação destes comitês remontem da década de 1960, somente atualmente vem se constituindo de uma realidade em instituições públicas e privadas brasileiras, destituído de uma obrigação ou regulamentação legal e contando com iniciativas espontâneas e colaborativas para padronização como a Rede de Comitês Hospitalares Brasileiros (Sayago & Amoretti, 2022). O intuito desses comitês deliberativos multidisciplinares é auxiliar familiares, profissionais de saúde e instituições na tomada de decisões a respeito do tratamento de pacientes; auxiliar na resolução de conflitos morais no atendimento à saúde e na garantia da dignidade, tratamento humanitário, direitos humanos e autonomia do paciente. Sayago e Amoretti (2022), sugeriram a implementação urgente dos Comitês de Bioética Hospitalar nas instituições de saúde, apoiados tanto nas evidências científicas dos benefícios dos comitês acrescido do montante de problemas enfrentados nos hospitais brasileiros, dentre os quais os autores destacaram os CP. Por analogia, considerando as mesmas necessidades e conflitos existentes em hospitais veterinários, é cabível que esses espaços de deliberação, em confluência com o CFMV, possam auxiliar médicos veterinários e responsáveis a tomarem decisões mais certeiras. Acresce-se, ainda, a sinergia de esforços para mobilização do poder público para atendimento de saúde em casos em que o tutor não disponha de recursos considerando as obrigações do Estado na promoção da saúde e qualidade de vida dos animais.
3.1. Representação científica dos cuidados paliativos e da eutanásia
Por fim, as perspectivas gerais da presente pesquisa foram sintetizadas pela metodologia da nuvem de palavras obtidas por meio da frequência dos principais termos relacionados aos CP e a Eutanásia nos textos científicos. Os CP foram registrados 320 vezes agrupados em à 187 expressões, com predomínio de qualidade de vida (5%), conforto (3,1%), dor (3,1%) e comunicação (2,8%) (Figura 2). Enquanto a eutanásia apresentou 54 ocorrências, relativas à 47 palavras, com predomínio de: sofrimento (9,2%), dor (5,5%) e conforto (3,7%) (Figura 2). Esses resultados reiteram a interpretação dos resultados anteriores personificando os CP a uma perspectiva otimista, mesmo demandando, em muitas situações, de um investimento físico, emocional e financeiro da família. De fato, os relatos apresentados por Carvalho e Fischer (2022) demonstram que a dedicação pode se estender por anos, muitas vezes comprometendo a vida social dos responsáveis. Mesmo assim, a representação do momento é de satisfação em poder fazer tudo que está ao alcance como uma forma de retribuição às emoções boas compartilhadas. Por outro lado, a eutanásia com menor número de expressões, é representada como uma alternativa para mitigação do sofrimento e da dor.
3.2. Análise jurisprudencial
A análise jurisprudencial, foi relativa à recuperação de 800 ementas, organizadas por critério de relevância, de acordo com a ferramenta da própria plataforma. Desse total, foram analisados os 100 primeiros registros, sendo pré-selecionadas apenas decisões judiciais do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a fim de promover um recorte para análise.
As ações indenizatórias contra serviços e médicos veterinários totalizaram 30% da amostra, indicando a judicialização em decorrência direta dos serviços oferecidos. Os demais resultados foram relativos: a) ações criminais por ofensas, injúrias e difamações (5%); b) ações entre proprietários de animais em situações em que houve ataques entre os animais (4%); c) ações relacionadas especificamente ao serviço de banho/tosa (4%); d) ações ligadas a concurso público para o cargo de médico-veterinário (3%); e) ações de maus-tratos contra animais (1%). O restante de 53% não abordaram o tema tratado nesta pesquisa. Das ações indenizatórias, 43,3% foram consideradas procedentes e 4% parcialmente procedentes, ou seja, tendo pelo menos algum dos pedidos da parte autora sido julgado favorável. Destaca-se que 76% das ações incluíam cães, 6,7% gatos e 17% não foi possível identificar qual o animal, por se tratar de processo físico, sem acesso via internet sobre essa informação.
O número de ações contra médicos veterinários reflete o crescimento do Direito Animal, por meio da judicialização, em decorrência da maior importância conferida aos animais de estimação. Ainda que a amostra represente um recorte da jurisprudência nacional, é possível atestar a importância conferida aos animais não-humanos no seio familiar traz, além dos reflexos sociais, implicações jurídicas práticas, acarretando o aumento das ações judiciais contra profissionais e serviços médico-veterinários. Assim como ocorreu na Medicina Humana, o aumento da judicialização contra médicos veterinários, segundo Ataíde-Júnior (2022), traz atrelado o ponto negativo da prática da medicina veterinária defensiva, em que, ao invés de auxiliar da aproximação da relação cliente-paciente-profissional, cria um hiato nessa relação, prejudicando a comunicação e dificultando a criação de vínculos. Para Ataíde-Júnior (2022), a tendência esperada com a evolução do Direito Animal é que sejam motivados diversos tipos de ações judiciais, envolvendo animais, ou mesmo trazendo os animais como parte no processo, pleiteando direito próprio, devidamente representado.
4. Considerações finais
Os dados obtidos no presente estudo, sob o recorte proposto na pesquisa, permitiram mapear a perspectiva, critérios, procedimentos e referenciais éticos e científicos dos CP e da eutanásia em animais de estimação e lançar trilhas interpretativas de como os aspectos técnicos, sociais e éticos que podem subsidiar as decisões da equipe médica veterinária e dos responsáveis pelos animais.
A revisão integrativa ratificou as hipóteses testadas de diferenças, tanto entre as perspectivas dos CP e da eutanásia, quando entre as produções científicas de âmbito nacional e internacional. A análise da produção científica reiterou a necessidade de se desenvolver a temática dos CP em animais de estimação no âmbito nacional, principalmente com pesquisas práticas, incentivando uma produção científica suficientemente significativa para compor uma massa crítica capaz de promover alternativas terapêuticas à eutanásia precoce, provida de condições para uma sobrevida com qualidade. Contudo, para a consolidação dos CP se faz necessário um esforço multidimensional incluindo a esfera normativa, técnica, social e ética.
No contexto normativo, faz-se necessário que tanto os CP quanto a eutanásia sejam ordenados pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária, considerando mudanças no âmbito social e legal, no qual o direito à vida do animal não deve estar subjugado às condições financeiras do seu responsável. Além disso, a decisão do médico veterinário conjuntamente com o responsável deve atender a legislação nacional de coibir os maus tratos aos animais, considerando o seu direito de experienciar sua vida com qualidade. O progressivo número de ações movidas contra médicos veterinários reflete a consolidação do Direito Animal, cuja judicialização da atividade profissional no médico veterinário remete a importância social conferida aos animais de estimação. Contudo, o profissional não precisa ficar a mercê do exercício de uma medicina veterinária defensiva, mas buscar critérios técnicos e éticos em suas decisões, usando tanto ferramentas avaliativas quanto as formais como o TCLE.
No contexto técnico, despontou-se a lacuna dos CP na formação profissional, uma vez que o tema não costuma, em regra, estar incluído na grade curricular do curso de medicina veterinária. Como consequência, acrescido da insuficiente capacitação na tomada de decisões e no processo de comunicação, promove o atraso do amadurecimento científico ao não incentivar pesquisas no desenvolvimento de protocolos e validação científica das terapias de suporte. Os estigmas associados tanto aos CP quanto à eutanásia devem ser transpostos para referenciais técnicos obtidos através do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação que se propõem a superar as limitações e aprimorar as potencialidades de ambos os procedimentos associados ao interesse comum que é a promoção do BEA. A constatação da eficiência de técnicas de comunicação, diagnóstico e tratamento em pesquisas conduzidas no exterior, potencialmente podem inspirar inovações como hospices para animais com doenças sem possibilidade de cura.
No contexto social, o estudo demostra a necessidade de se promover a educação do cidadão que se dispõe a tutelar um animal de estimação e com ele estruturar uma família multiespécie. Logo, é fundamental capacitá-lo no reconhecimento das necessidades do animal durante todo o seu ciclo de vida, incluindo as demandas emocionais, de cuidados e financeira, especialmente na velhice ou em situações de uma doença incurável. Contudo, desponta igualmente a demanda de se trabalhar a morte, seus estigmas e representações que podem imputar nesses momentos de relação com o animal sentimentos incompreendidos e decisões com potencial de geração de vulnerabilidades para a própria pessoa, para a família, para o médico veterinário e, especialmente, para o animal.
No contexto ético, vislumbra-se o acolhimento da questão nas pautas da Bioética, cuja natureza dialogante, multidisciplinar e equipada de predicados que viabilizam a deliberação coletiva com vias a mitigar vulnerabilidades dos animais, dos responsáveis e da equipe médica. Dentre as dimensões de atuação da Bioética insurge a sugestão de implementação do Comitê de Bioética Hospitalar Veterinário, aos moldes do Comitê Hospitalar humano, associado com comitês de Bioética vinculados ao conselho profissional, com intuído de auxiliar na deliberação de decisões conflituosas considerando o direito de uma vida digna do animal e mitigando vulnerabilidades comprometedoras do direito de viver e de morrer.