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Revista de Bioética y Derecho

On-line version ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  n.32 Barcelona  2014

https://dx.doi.org/10.4321/S1886-58872014000300006 

ARTÍCULO

 

Reprodução assistida com material genético de paciente comatoso masculino: um estudo acerca da colisão entre a autonomia/dignidade do paciente e a liberdade reprodutiva da mulher em face dos princípios e direitos fundamentais

Assisted reproduction with genetic material from male comatose patient: a study of the collision between the patient’s autonomy/dignity and women’s reproductive freedom in to relation with fundamental principles and rights

 

 

Tiago Mafra Lima1 e Paulo Henrique Burg Conti2

1Acadêmico do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense. Pesquisador bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica. Graduado em Geografia Licenciatura e em Geografia Bacharelado pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Professor do Magistério Público Estadual de Santa Catarina. tiagomafralima@hotmail.com
2Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado e Professor Universitário. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade do Extremo Sul Catarinense. phconti@ibest.com.br

 

 


RESUMO

Diante do atual panorama de desenvolvimento das biotecnologias, o presente estudo aborda possíveis soluções à realização do procedimento de reprodução assistida com material genético de paciente masculino em coma. Com a utilização de uma metodologia dedutiva, a análise pretende demonstrar a impossibilidade da reprodução assistida quando a coleta de sêmen for realizada em paciente masculino em estado comatoso, assim como a possibilidade quando o sêmen for doado anteriormente ao estado de coma e tenha o doador deixado por escrito ou comprovado ser esse o seu desejo. Assim, o estudo realizará uma análise de algumas técnicas de reprodução assistida e das circunstâncias do estado de coma irreversível, assim como dos princípios constitucionais da liberdade reprodutiva, da dignidade humana e da autonomia.

Palavras chave: reprodução assistida; paciente comatoso masculino; bioética; direitos fundamentais.


ABSTRACT

In today's development landscape of biotechnology, this study discusses possible solutions to the implementation of the assisted reproduction procedure with genetic material from a male patient in coma. With the use of a deductive methodology, the analysis aims to demonstrate the impossibility of assisted reproduction when the semen collection is held in a male patient in coma, as well as the possibility when semen is donated before the coma and the donor has left written or proven to be that your desire. Thus, the study will undertake a review of some techniques of assisted reproduction and the circumstances of the state of irreversible coma, as well as the constitutional principles of reproductive freedom, of human dignity and autonomy.

Key words: assisted reproduction; male comatose patient; bioethics; fundamental rights.


 

I. Introdução

Os últimos séculos foram marcados por grandes transformações científicas e sociais. Neste período, mudou o mundo e a percepção humana. O positivismo do final do século XIX, otimista em relação ao progresso e cultuador da ciência e da industrialização, prognosticou pela construção de novos produtos o caminho para o futuro. O século XX, existencialista, trouxe consigo novos paradigmas e colocou o ser humano como parte e caminho desse progresso.

Nesse novo contexto de inovações em diferentes campos, inclusive, no da biotecnologia, emergem dúvidas e questionamentos de natureza ético-axiológica quanto à possibilidade de realização de determinados procedimentos médicos, como no caso da reprodução assistida com uso de material genético de paciente comatoso masculino. Além disso, apresenta-se a necessidade de adequação da nova realidade biomédica com o conjunto de direitos presentes na Constituição pátria e no rol dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, o presente estudo pretende realizar uma análise de algumas técnicas de reprodução assistida e das circunstâncias do estado de coma irreversível, assim como dos princípios constitucionais da liberdade reprodutiva, da dignidade humana e da autonomia, buscando estabelecer os critérios bioéticos e jurídicos para o exercício da prática de reprodução assistida com material genético de paciente masculino em estado de coma irreversível.

 

II. O procedimento de reprodução assistida e o estado de coma irreversível

A reprodução natural humana é consequência do encontro sexual de humanos de gêneros opostos e em idade fértil cujas condições são as de o homem produzir nos testículos espermatozóides com capacidade de fecundar e a mulher produzir nos folículos ovarianos um óvulo maduro. Havendo o encontro de pelo menos um desses espermatozóides com o óvulo na tuba uterina, desencadeiam-se os eventos que culminarão com a fusão dos pró-núcleos masculino e feminino[1].

Quando houver impossibilidade de reprodução humana pelo método natural, a reprodução assistida ou artificial será uma alternativa possível. Segundo Diniz[2], a reprodução assistida é definida como um conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um novo ser. Atualmente, as técnicas mais comuns de reprodução assistida, são a inseminação artificial (AI) e a fertilização in vitro (FIV).

A primeira é uma técnica de reprodução assistida relativamente simples e bastante antiga, consistindo na introdução do esperma na vagina, por meio de uma cânula[3]. Assim, a inseminação artificial se dá por uma transferência mecânica de espermatozóides, já previamente recolhidos e tratados, inseridos no interior do aparelho genital feminino[4].

Já a fertilização in vitro é uma técnica relativamente jovem, porém mais complexa. O êxito dessa técnica só foi possível a partir do melhoramento da técnica anterior e, sobretudo, com a possibilidade de congelamento do sêmen, o que permitiu um espaço maior de tempo entre a doação e a fecundação. A técnica in vitro consiste em permitir o encontro do óvulo com o espermatozóide fora do organismo da mulher em uma placa de cultura ou em um tubo de ensaio[5]. Em linhas gerais, esse método de fertilização consiste em retirar por laparoscopia um ou vários óvulos da mulher doadora. A produção desses óvulos é, geralmente, provocada por estimulação hormonal, sendo em seguida colocados em meio nutritivo. Na sequência do procedimento, aos óvulos reúne-se o esperma, havendo a fecundação. Após horas ou até dois dias, o óvulo é colocado no útero da mulher, sendo que se houver a nidificação a gravidez segue seu ritmo natural[6].

Existem ainda outras técnicas de reprodução assistida, mas todas aperfeiçoadas a partir da técnica in vitro. É importante ressaltar que com a técnica in vitro não há necessidade da existência de um imperativo temporal entre o momento da doação dos gametas masculino e feminino, uma vez que podem ser retirados mesmo estando o doador em coma. Essa técnica possibilita que o procedimento ocorra sem a anuência do doador comatoso que se encontra em estado não consciente.

Por outro lado, o estado de coma é uma síndrome qualificada por um conjunto de sinais e sintomas que pode ter várias etiologias, caracterizando-se por manifestações clínicas importantes que indicam a falência dos mecanismos normais de manutenção do estado de consciência[7]. O coma se refere, portanto, ao estado clínico em que o paciente não responde a estímulos, sendo que esse estado pode ser causado por lesões estruturais no tronco cerebral, tálamo ou hemisférios cerebrais e por anomalias metabólicas[8].

No que se refere ao coma irreversível ou EVP (estado vegetativo persistente), pode-se afirmar que é uma síndrome com várias causas em que o paciente sofre danos cerebrais graves, sem consciência detectável. Nesse entendimento o Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná no Parecer no 1.243/2000 define que nas situações de coma irreversível existe ainda algum grau de funcionamento do tronco cerebral, com uma lesão severa e difusa dos hemisférios cerebrais. Nesta situação o paciente deixa de ter vida voluntária, mantendo-se apenas as funções básicas do organismo. Portanto, no coma irreversível existe ainda vida na pessoa acometida[9].

Assim, em tal estado de coma irreversível o paciente encontra-se em estágio não consciente, mas apesar de remota, existe a possibilidade de retomada da consciência por parte do paciente comatoso. Nessas situações, verificada tal circunstância, determina o Código de ética médica brasileiro que a conduta a ser seguida e a real situação deste paciente deva ser discutida amplamente com os familiares. Porquanto, o Conselho Federal de Medicina não orienta pela facilitação da morte, mas por outro lado, não obriga o empreendimento de ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas[10].

 

III. A dignidade humana e a liberdade reprodutiva no espectro do Estado Democrático de Direito

O conteúdo conceitual da dignidade humana tem sido objeto de análise por parte de inúmeras correntes de pensadores e em diferentes períodos históricos. Apesar disso, uma conceituação clara e precisa do que efetivamente é a dignidade humana, inclusive para efeitos de proteção como norma jurídica fundamental, se revela difícil de ser obtida. Tal dificuldade, como devidamente destacada na doutrina, é oriunda do fato de tratar-se de um conceito com contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua porosidade, assim como por sua natureza polissêmica[11].

No presente estudo, não obstante a existência de uma pluralidade de dimensões conceituais acerca da dignidade humana[12], discorrer-se-á sobre as que entendemos ser as mais incidentes no plano jurídico-constitucional, quais sejam, a dimensão ontológica e a dimensão histórico-cultural.

No plano de sua dimensão ontológica, a dignidade humana é entendida como uma qualidade intrínseca da pessoa humana, sendo irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado[13]. Tal concepção remonta à matiz kantiana, na qual a dignidade representa uma qualidade de autonomia ética do ser humano, de liberdade moral, uma vez que essa, entendida como a possibilidade de agir em conformidade com a representação de certas leis morais, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais[14].

Assim, na concepção de Kant, a humanidade em si é uma dignidade, uma vez que o ser humano não pode ser usado meramente como um meio por outro ser humano, mas deve sempre ser vislumbrado como um fim em si mesmo. É precisamente nisso que consiste sua dignidade, pelo que o ser humano se eleva acima de todos os outros seres do mundo que não possuem natureza humana[15].

Por outro lado, na dimensão histórico-cultural da dignidade, considera-se que os valores espirituais e morais não são inatos ao ser humano. A dignidade, nesse viés, reside justamente no fato de que está por ser construída ao longo da vida, sendo os momentos culturais e históricos vividos pela humanidade e pelo indivíduo, constituidores de seu conteúdo[16].

Portanto, desenvolve-se a ideia de que a dignidade constitui também uma qualidade a ser conquistada. O ser humano não nasceria digno, mas tornar-se-ia digno a partir do momento em que assumisse sua condição de cidadão, ou seja, exercesse sua sociabilidade. Dessa forma, a concepção de dignidade seria também o resultado de um reconhecimento, gerando, assim, um afastamento da ideia kantiana, uma vez que não há a fundamentação da dignidade como qualidade inata a todos os seres humanos, bem como não se condiciona sua noção à racionalidade, mas ao critério de sociabilidade e reconhecimento histórico-cultural[17].

Assim, brevemente definidas as supracitadas dimensões da dignidade humana, deve-se observar que se tem também um princípio constitucional que, diante dos avanços científicos atuais e futuros, impõe à comunidade estatal o dever de tê-lo como paradigma, pois é fundamento do Estado Democrático de Direito, devendo prevalecer diante do uso indevido de qualquer avanço científico e tecnológico[18].

No que tange à liberdade reprodutiva, pode-se afirmar que o direito à liberdade garante a não ingerência do Estado na esfera de liberdades dos cidadãos, sendo, nesse sentido, reconhecida como “direito negativo”, uma vez que impõe ao Estado um dever de abstenção, de não impedimento ou oposição de obstáculos na esfera de liberdade dos indivíduos[19]. Não obstante, apesar de ser a liberdade um direito de natureza negativa frente ao Estado, ao cidadão também é um direito positivo, referindo-se a reivindicações de exercício de anseios autodeterminados, ou seja, pautados no livre-arbítrio[20].

Nesse sentido, a liberdade contemplada no rol dos direitos autodeterminados, aqueles em que o próprio cidadão determina seus atos, é protetora da liberdade reprodutiva. Tal proteção, confirmada na Conferência Internacional de Beijing em 1995, reconheceu o direito básico de todos os casais e indivíduos a decidirem de forma livre e responsável sobre o número de filhos, espaçamentos dos nascimentos, bem como a dispor de informação e de meios para tanto, visando obter o mais elevado nível de saúde sexual e reprodutiva[21].

No ordenamento jurídico brasileiro, pode-se verificar que a Constituição contempla esse entendimento, expondo em seu art. 226, §7o que o planejamento familiar é livre decisão do casal, sendo fundado nos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável. Nesse tocante, cabe ao Estado propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedando-se qualquer interferência coercitiva por parte de instituições públicas ou privadas[22]. Também a lei no 9.263/1996 (Lei de planejamento familiar), regulamentando o parágrafo 7o do art. 226 da Constituição afirma que o planejamento familiar integra o conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, a partir de uma perspectiva de atendimento global e integral à saúde, advertindo que a universalidade dos direitos sexuais e reprodutivos é aplicável indistintamente a homens e mulheres[23].

Assim, todos têm direito à concepção e à descendência, podendo exercê-lo por via de ato sexual ou reprodução assistida, em caso de infertilidade, desde que tal procedimento não coloque a vida do paciente e do próprio descendente em risco[24]. Desse modo, depreende-se que é direito do indivíduo decidir sobre sua descendência, constituindo-se a família em uma entidade autônoma, gerida por seus membros, sendo esses responsáveis por ela e cabendo ao Estado o dever de assegurar as condições para o bem estar de todos.

 

IV. As colisões de direitos fundamentais na reprodução assistida com material genético de paciente comatoso masculino

Até aqui, o presente estudo permitiu a compreensão do procedimento da reprodução assistida e das características do estado de coma irreversível, assim como dos princípios e direitos fundamentais da dignidade humana e da liberdade reprodutiva, ambos envolvidos nas problemáticas inerentes à reprodução assistida em paciente comatoso masculino.

A partir de então, tomando-se por base a existência de um homem em estado comatoso irreversível e desejando sua esposa ou companheira utilizar o material genético daquele paciente para gerar uma filiação de ambos, torna-se imprescindível analisar três possíveis situações de conflitos decorrentes, quais sejam: a reprodução assistida com sêmen coletado diretamente do paciente comatoso, a reprodução assistida com sêmen doado previamente pelo paciente comatoso e com autorização do doador para a realização do procedimento e a reprodução assistida com sêmen doado previamente pelo paciente comatoso e sem autorização para a realização do procedimento.

Assim, na primeira hipótese possível, o paciente em estado comatoso irreversível não realizou doação prévia de seu material genético, no entanto, sua esposa deseja providenciar a coleta, no intuito de que seja realizado o procedimento de reprodução assistida. Diante dessa situação, Telöken et al[25] são categóricos em afirmar que apesar de possível tal procedimento, seria inaceitável a coleta de sêmen em casos de coma ou morte do indivíduo, uma vez que a ausência de doação prévia suscita séria dúvida quanto ao interesse do paciente em ter seu material genético utilizado.

Porém, caso o paciente, de forma prévia ao estado de coma, tenha se manifestado informalmente no sentido de desejar ou permitir a realização de tal procedimento, pode haver a devida alegação por sua esposa, parentes ou amigos próximos, no sentido de se permitir a reprodução assistida. No entanto, caso o paciente comatoso não tenha exteriorizado uma manifestação de modo a tornar indubitável tal intenção, a reprodução assistida não seria eticamente e juridicamente viável, tendo em vista o excesso de intervenção que provocaria uma indevida limitação na autonomia e na dignidade do paciente.

Já na segunda hipótese, um homem que se encontra em estado comatoso irreversível, previamente a tal situação, realizou a doação de material genético, depositando-o em laboratório especializado em reprodução assistida, deixando por escrito autorização para a utilização do material genético (sêmen ou pré-embrião) caso esteja impossibilitado de manifestar sua vontade.

Nesse caso, apesar de não haver no Brasil dispositivo normativo, oriundo de processo legislativo, que regulamente tal situação, o Conselho Federal de Medicina estabelece diretrizes para o procedimento de reprodução assistida, passível de aplicação também nos casos em que o paciente se encontra em estado comatoso irreversível. Assim, a Resolução no 1.957/2010 estabelece que no momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos[26].

Portanto, nesse caso, existindo manifestação do paciente no sentido de permitir a utilização do seu material genético, quando ele não possa manifestar diretamente sua vontade, nada se interpõe à realização do procedimento, uma vez que está se respeitando a vontade expressa anteriormente e registrada em documento escrito. Desse modo, há o devido respeito e observância à dignidade humana e à liberdade reprodutiva do paciente.

Menos pacífica é a terceira hipótese, na qual a esposa ou companheira deseja gerar descendente e, apesar do paciente comatoso (futuro pai) ter doado sêmen e esse encontrar-se devidamente congelado, não deixou autorização por escrito quanto à possibilidade de utilização de seu sêmen no procedimento de reprodução assistida.

A Resolução no 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina dispõe que na ausência de autorização expressa para utilização do material genético, não será permitida à utilização do material doado[27]. No entanto, é importante lembrar que a Constituição Federal, apesar de prever a possibilidade de elaboração de leis delegadas pelos órgãos do Poder Executivo (do qual faz parte o Conselho Federal de Medicina), em seu art. 68, §1o, II veda de forma taxativa tal delegação quando se trata, entre outras, de matéria referente a direitos individuais[28]. Dessa forma, pode-se depreender que inexiste obrigatoriedade jurídica de tal orientação advinda do Conselho Federal de Medicina, nada impedindo que a autorização para o referido procedimento de reprodução assistida seja requerida judicialmente, em virtude da ausência de legítima previsão legislativa.

Quanto à colisão de direitos fundamentais, nessa hipótese, deve-se analisar a dignidade e autonomia do paciente em face da liberdade reprodutiva da esposa. No que diz respeito à dignidade humana do paciente comatoso, não parece ocorrer violação, uma vez que se pode presumir que fosse pretensão do paciente gerar descendência, pois se assim não fosse não teria coletado material genético para crioconservação.

O que efetivamente mais suscita dúvida quanto à viabilidade do procedimento é a impossibilidade de manifestação expressa da vontade do paciente, ou seja, o não exercício de sua autonomia decisória no que se refere a ter descendência naquele momento e sob tais circunstâncias. Nessas situações, se reconhece que pessoa diversa seja responsável pela tomada de decisões em razão de procedimentos que recaem apenas sobre o paciente. Assim, conforme Diniz[29], em tal ocasião não pode a esposa autorizar que seja utilizado material genético do incapacitado, pois a substituição do exercício da autonomia diz respeito a decisões essenciais à proteção da vida ou dignidade do incapacitado e não quanto a outros procedimentos. Nesse sentido, nos parece plausível que a esposa tenha que requerer, perante o Poder Judiciário, o reconhecimento de presunção do consentimento do doador.

 

V. Conclusão

O progresso trazido pelo desenvolvimento das técnicas aplicadas à Biomedicina trouxe consigo novas possibilidades de procedimentos, gerando, inclusive, inéditos questionamentos de ordem ética e jurídica. Nesse contexto, emerge a necessária reflexão acerca da (im)possibilidade de realização do procedimento de reprodução assistida com utilização de material genético de paciente comatoso masculino, uma vez a esposa do referido paciente desejar gerar descendência.

Assim, por meio da técnica de reprodução assistida poderia a esposa ou companheira gerar descendente, havendo a coleta de sêmen antes ou durante o estado de coma irreversível do paciente, estado esse que impossibilita o paciente de responder a estímulos ou apresentar normal consciência. Desse modo, tal paciente não seria capaz de expressar sua vontade, salvo nas situações em que houve doação prévia de material genético e o paciente firmou documento escrito no qual manifestou sua concordância para utilização de seu sêmen.

Foram analisadas três possíveis situações de utilização do procedimento da reprodução assistida, nas quais o doador do sêmen não estará consciente no momento em que a técnica for realizada, bem como suas implicações no campo bioético e jurídico.

A primeira hipótese abordou a possibilidade de coleta do sêmen do paciente comatoso, não tendo o mesmo firmado previamente nenhuma manifestação de vontade nesse sentido. Essa situação, no tocante aos princípios bioéticos e constitucionais, parece ser demasiadamente invasiva ao paciente, uma vez que haveria uma espécie de “expropriação” do sêmen do paciente sem que o mesmo pudesse expressar, no livre exercício de sua autonomia, sua concordância ou não com tal procedimento. Da mesma forma, no tocante à dignidade humana, o paciente estaria sendo utilizado como instrumento para a consecução de fins alheios à sua vontade, ou seja, para satisfazer um desejo da esposa em gerar descendência.

Já a segunda situação analisada é caracterizada pela doação prévia de sêmen pelo paciente comatoso e na qual o mesmo autorizou, em documento escrito, a utilização de seu material genético em tais circunstâncias excepcionais. Aqui, não há maiores problemas de natureza bioética e jurídica, uma vez que está sendo respeitada a manifestação de vontade expressa no documento, assim como sua dignidade humana consubstanciada na liberdade em gerar descendência.

Por fim, a terceira hipótese englobou a doação prévia de sêmen pelo paciente comatoso e na qual o mesmo não firmou nenhum documento escrito manifestando sua vontade na utilização de seu material genético em tais circunstâncias excepcionais. Nesse caso, a solução poderia ser obtida pela propositura de requerimento judicial, por parte da esposa, no sentido de comprovar por prova testemunhal (parentes, amigos próximos do doador) de que era vontade do paciente a utilização do sêmen doado para gerar descendência ou, inclusive, pleitear o reconhecimento de presunção de consentimento, uma vez que o doador, muito provavelmente, não doaria seu sêmen se não fosse com o objetivo reprodutivo.

 


[1] SILVA, REINALDO PEREIRA E, “Introdução ao biodireito: investigação político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana”, Ltr, São Paulo, 2002, pp. 59.

[2] DINIZ, MARIA HELENA, “O estado atual do biodireito”, Saraiva, São Paulo, 2001, pp. 452.

[3] HRYNIEWICZ, SEVERO; SAUWEN, REGINA FIÚZA, “O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito”, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, pp. 90-91.

[4] PESSINI, LÉO; BARCHIFONTAINE, CHRISTIAN DE PAUL DE, “Problemas atuais de biodireito”, Loyola, 2000, pp. 194-195.

[5] SILVA, REINALDO PEREIRA E, “Introdução ao biodireito: investigação político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana”, Ltr, São Paulo, 2002, pp. 60.

[6] HRYNIEWICZ, SEVERO; SAUWEN, REGINA FIÚZA, “O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito”, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, pp. 91.

[7] PARANÁ. Conselho Regional de Medicina, “Parecer no 1.243/2000”. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CRMPR/pareceres/2000/1243_2000.htm. Acesso em: 30 set. 2011.

[8] ROSENBERG, N. REGER, “Consciousness, coma and brain death”, The journal of the american medical association, 18 mar. 2009. Disponível em: <http://jama.amaassn.org/content/301/11/1172.full.pdf+html>. Acesso em: 30 nov. 2011.

[9] PARANÁ. Conselho Regional de Medicina, “Parecer no 1.243/2000”. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CRMPR/pareceres/2000/1243_2000.htm. Acesso em: 30 set. 2011.

[10] Ibid.

[11] SARLET, INGO WOLFGANG, “As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível”, Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, Livraria do advogado, Porto Alegre, 2005, pp. 16.

[12] Segundo Sarlet, a dignidade da pessoa humana apresenta as seguintes dimensões: ontológica, comunicativa, histórico-cultural, negativa-prestacional e analítica. Ibid., pp. 18-37.

[13] Ibid., pp. 19.

[14] COMPARATO, FÁBIO KONDER, “Ética: direito, moral e religião no mundo moderno”, Companhia das Letras, São Paulo, 2006, pp. 297.

[15] KANT, IMMANUEL, “A metafísica dos costumes”, Tradução Edson Bini, Edipro, Bauru, 2008, pp. 306.

[16] MARTINS, FLADEMIR JERÔNIMO BELINATI, “Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental”, Juruá, Curitiba, 2005, pp. 90-91.

[17] Sarlet menciona aqui o entendimento de Hegel. SARLET, INGO WOLFGANG, “Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988”, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2004, pp. 37.

[18] DINIZ, MARIA HELENA, “O estado atual do biodireito”, Saraiva, São Paulo, 2001, pp. 17-18.

[19] CANOTILHO, J. J. GOMES; MOREIRA, VITAL, “Constituição da república portuguesa anotada”, Revista dos tribunais, São Paulo; Coimbra, Coimbra, 2007, pp. 310-311.

[20] BOBBIO, NORBERTO, “Igualdade e liberdade”, Tradução Carlos Nelson Coutinho, Ediouro, Rio de Janeiro, 1997, pp. 32.

[21] DINIZ, MARIA HELENA, “O estado atual do biodireito”, Saraiva, São Paulo, 2001, pp. 134-135.

[22] BRASIL, “Constituição da República Federativa do Brasil de 1988”, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em: mar. 2012.

[23] BRASIL, “Lei no 9.263 de 12 de janeiro de 1996”, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm. Acesso em: fev. 2012.

[24] DINIZ, MARIA HELENA, “O estado atual do biodireito”, Saraiva, São Paulo, 2001, pp. 137.

[25] TELÖKEN, CLÁUDIO et al, “Bioética e reprodução assistida”, Amrigs, vol. 46, no 03 e 04, Porto Alegre, jul.-dez. 2002, pp. 100-104,. Disponível em: <http://www.amrigs.com.br/revista/46-03/Bioética e reprodução assistida.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.

[26] BRASIL, Conselho Federal de Medicina, “Resolução no 1.957/2010”, Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm>. Acesso em: mar. 2012.

[27] Ibid., Acesso em: mar. 2012.

[28] MELLO, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE, “Curso de direito administrativo”, Malheiros, São Paulo, 2011, pp. 370.

[29] DINIZ, MARIA HELENA, “O estado atual do biodireito”, Saraiva, São Paulo, 2001, pp. 15.

 

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Fecha de recepción: 10 de octubre 2012
Fecha de aceptación: 12 de noviembre 2013

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