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Revista de Bioética y Derecho

versión On-line ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  no.39 Barcelona  2017  Epub 02-Nov-2020

 

BIOÉTICA ANIMAL

Leishmaniose visceral humana: reflexões éticas e jurídicas acerca do controle do reservatório canino no Brasil

Human visceral leishmaniasis: ethical and legal reflections on the canine reservoir control in Brazil

Savio T. Pereira da Silva1  , Jornalista e mestrado em História pela Universidade Severino Sombra (2006); Luana D. Ferreira-Vieira-Marques2  , Médica Veterinária do Centro de Controle de Zoonose. Vigilância epidemiológica de Governador Valadares. Responsável pelo controle da leishmaniose visceral humana e canina; Karla C. Coelho-Lamounier3  , Advogada. Oficial de justiça fo Forúm da Comarca de Governador Valadares. Mestrado (c) em Gestão Integrado do Território; Josiane M. de Castro4  , Graduada em Efermagem. Professora da Faculdades Pitágoras Ipatinga. Mestrado (c) em Gestão Integrado do Território.; Gulnara P. Borja-Cabrera5  , MD Medicine and Surgery.

1Faculdade Pitágoras Ipatinga

2Centro de Controle de Zoonose

3Universidade Vale do Rio Doce

4Universidade Vale do Rio Doce

5Ecuador Central University. PhD Pathology, Federal Fluminense University

Resumo

O Brasil enfrenta atualmente dificuldades no combatea leishmaniose visceral humana.De acordo a Organização Mundial da Saúde, a eutanásia dos cães sintomáticos e soropositivos é uma das medidas de controle do agravo, conforme decreto vigente 51.838, de 14 de março de 1963, o que se torna importantediscutir o diálogo entre Saúde e Direito como estratégia para se evitar a expansão da doença, devido à resistência dos proprietários em entregar seus cães, com alto valor afetivo, a zoonoses. Conclui-se que para uma política pública efetiva vários elementos devem levados em consideração, sobretudo a interdisciplinaridade, enfatizando reflexões jurídicas e saúde, envolvendo questões que permeiam as relações humanas no contexto da ética e da legislação.

Palavras-chave: direito; saúde; leishmaniose visceral humana; ética; bioética

Abstract

Brazil currently faces difficulties in combating human visceral leishmaniasis. According to the World Health Organization, euthanasia of symptomatic and seropositive dogs is one of injury control measures, according to current Decree 51838 of March 14, 1963, which becomes important to discuss the dialogue between health and law as a strategy to prevent the spread of the disease, due to the owners ' resistance to deliver their dogs with high emotional value, zoonoses. It is concluded that for effective public policy more elements are taken into consideration, especially interdisciplinary, emphasizing legal and health considerations involving issues that permeate the human relationships in the context of ethics and law.

Key words: law; health; human visceral leishmaniasis; ethics; bioethics

1. Introdução

No processo saúde-doença, as sociedades enfrentaram diferentes situações ambientais, que requereram adaptações biológicas e culturais emsucessivas transições históricas que favorecerama exposição de agentesinfecciosos que contribuíram para emergência de doenças parasitarias, como é o caso da Leishmaniose Visceral Humana (LVH). A domesticação de animais aumentou a notificações desses agravosentre populações humanas, uma vez que aspessoas trouxeram para próximo de si animaispara consumo e para convívio, com isso vigilância sanitária adotou medidas que se tornaram o alicerce para os primeiros esforços direcionados à Saúde Pública1.

Países como a Itália, França, Rússia e algumas cidades Argentinas como Buenos Aires, Rosário, Quilmes e Almirante Brown além de Barcelona e Málaga, na Espanha condenaram o sacrifício de animais como política pública de saúde e adotaram o método de controle da natalidade. Proíbem o sacrifício de cães e gatos encontrados nas ruas, sendo a eutanásia permitida somente em caso de agravos incuráveis ou comprovada periculosidade. Os animais recolhidos são vacinados e esterilizados. Na Itália, os animais são devolvidos à sociedade da qual foram removidos e na Argentina são direcionados à adoção ainda que selvagens. Verifica se que há uma tendência mundial em abolir a eutanásia de animais2,3.

A eliminação de cães como medida de controle da LVH, foi realizado pela primeira vez na Palestina, China e da Ásia Central repúblicas da então União Soviética. Especialmente, na China, em 1970, estas iniciativas foram apoiadas pelo estado centralizado, como parte da doutrina socialista revolucionária associado ao tratamento em massa de pacientes humanos, controle de vetores no ambiente com diclorodifeniltricloroetano (DDT) 3,4.

Em 2008, um surto da doença foi detectado na parte ocidental da China, com a taxa de incidência da doença aumentou mais de 20 vezes em comparação com a taxa de incidência média anual. Isto sugere que a doença nunca foi erradicada, utilizando a eutanásia canina, uma vez que O diagnóstico definitivo de infecção assintomática L. infantum, nos cães ,é problemático, devido às limitações relacionadas a sorológica e aos métodos parasitológicos, se houve algum sucesso, foi momentâneo. No Irã, uma discussão aconteceu sobre a utilização de coleiras impregnadas de deltametrina em nove aldeias,após um ano observou-se que redução da LVH não foi significantiva. No Sudão, uma vacina foi testada contra a leishmaniose, o que conferiu proteção somente em 6%, mas reduziu a incidência do agravo. Finalmente, o efeito de mosquiteiros com inseticida impregnado está sob avaliação na Índia 3,4,5.

Portanto, não há nenhuma evidência concreta damedidas de controle utilizados em grande escala ambientes urbanos, pois compreende dimensões biológicas, sociais e ecológicas, o investimento em pesquisas que abordem estes problemas deveriam ser uma prioridade, principalmente em relação a vacina. Na Europa, a vacinação pode ser combinada com a proteção individual com piretróides, como parte de uma abordagem integrada à prevenção 5,6.

No Brasil, as primeiras leis voltadas para o controle de populações animais foram elaboradas e publicadas sob a influência da divulgação dos trabalhos de Louis Pasteur, na década de 1880, ou seja, o início do estudo da raiva seguidapela veiculação dos primeiros manuscritos sobre essa zoonose, a pesquisa da vacina contra raiva em animais (1884) e o primeiro tratamento contra a raiva humana (1885) 7.

O município de São Paulo promulgou a Lei nº 143, de 28 de janeiro de 1895, que proibia "cães soltos nas ruas, sem estarem açaimados" e o Ato nº 132, de 31 de março de 1902, que alterava, "consolidando, as disposições dos Atos nº 36, de 22 de maio de 1899, e 90, de 6 de julho de 1900, sobre a apreensão, venda e matança de cães". A apreensão e matança de animais, em fins do triênio 1893-1895, passou a ser uma das atribuições da Intendência de Higiene e Saúde Pública, órgão então vinculado à Câmara Municipal 8.

O Ministério da Saúde, por meio da Portaria MS/GM n° 1.172, de 15 de junho de 2004, entre outros dispositivos, enfatizou a competência legal dos municípios brasileiros para controlar animais em sua área de circunscrição, mediante a execução de atividades programáticas. Essa responsabilidade recai, nos municípios, sobre os órgãos executores de controle de zoonoses, cuja criação e atribuições devem ser reguladas por legislação específica 9.

A LVH é uma doença crônica, grave, potencialmente fatal para o homem quando não se institui o tratamento adequado. É causada pela Leishmaniainfantum, cuja transmissão ocorre principalmente através da picada de fêmeas de flebotomíneos da espécie Lutzomyialongipalpis, onde o Canis lupusfamiliaris, o cão, é o principal reservatório. Endêmica em cinco continentes, mais de 90% dos casos mundiais ocorrem em Bangladesh, Índia, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Brasil. A incidência anual estimada da doença é de cerca de 200.000 a 400.000 novos casos. Infelizmente, esses dados são subestimados, uma vez que a afecção não é de notificação compulsória em todos os países em que ocorrem, muitos deles não realizam vigilância ou outras investigações e não possuem um sistema de armazenamento de dados 10.

Mesmo com grande parte dos casos sendo subnotificados, o Brasil é, atualmente, responsável por cerca de 90% dos casos da América Latina. No ano de 2012 foram notificados 3.038 casos da doença em humanos, com uma incidência da ordem de 1,57 casos/100.000 habitantes e uma taxa de letalidade de 7,1%. Até uma ou duas décadas atrás, essa zoonose acometia indivíduos com condições socioeconômicas reduzidas, residentes em áreas rurais ou semiáridas do nordeste, que contava com cerca de 90% dos casos notificados no país 11.

Atualmente, os casos que se concentravam no nordeste passaram a ser notificados com mais frequência nas regiões norte, centro-oeste e sudeste do Brasil, com uma expansão da doença observada em quase todo o território nacional, em razão da urbanização e alto índice de pobreza 12.

No Brasil, ao longo da década de 90, ocorrem importantes epidemias em várias cidades da região Nordeste ―São Luís, Natal e Aracaju, Norte― Bom Vista e Santarém, Sudeste ―Belo Horizonte e Montes Claros e Centro Oeste― Cuiabá e Campo Grande.Em Minas Gerais, observou- se no período de 2004 a 2008, um total de 2.374 casos de LVH, correspondendo a 68% dos casos registrados na região Sudeste e 14% do país 13.

Em 2008, foram notificados os primeiros casos autóctones da LVH no município de Governador Valadares. Segundo a Gerência de Epidemiologia, a taxa de letalidade no município, no período de junho de 2008 a junho de 2010, atingiu um índice elevado de 18,03%, medindo desta forma a patogenicidade doença 14,O Município estava silencioso para LVH até 2008, necessitando um conhecimento mais aprofundado sobre fatores clínico-epidemiológicos, como a procura do diagnóstico, evolução clínica e laboratorial, a escolha do tratamento e as comorbidades, além de intervenções na educação em saúde, paralelamente o Ministério da Saúde vem investindo em pesquisas a exemplo do desenvolvimento de vacinas como a Leishmune 15 e a Leishteck 16.

A Organização Mundial de saúde (OMS) como ferramentas de controle, preconiza três medidas principais como: destruição do inseto vetor, tratamento dos casos humanos e eliminação dos reservatórios (cães sintomáticos e soropositivos) 17.

Porém, observa-se que o poder público pouco investe em educação e esclarecimento à população sobre as formas de prevenção e controle, com foco na eutanásia canina, não permitindo o tratamento dos animais 18, justificando a negligencia a questões financeiras para o investimento necessário no controle dessa endemia, gerando conflitos entre a sociedade, gestores, advogados e juízes (quando há disputa pela vida ou a eutanásia do animal).

Na legislação brasileira, a leishmaniose é uma doença de notificação obrigatória e é regido pelo decreto do Senado Federal nº 51.838, de 14 de março de 1963, que a considera endemia rural. Entre as normas técnicas do referido decreto para o combate à LVH, destacam-se o Artigo 1º "O combate às leishmanioses tem por objetivo a interrupção da transmissão da doença do animal ao homem" o artigo 3º "O Departamento Nacional das Endemias Rurais executará as seguintes medidas profiláticas: a) investigação epidemiológica; b) inquéritos extensivos para descoberta de cães infectados; c) eliminação dos animais domésticos doentes; d) campanhas sistemáticas contra os flebótomos nas áreas endêmicas; e) tratamento dos casos humanos"; o Artigo 5º "A educação sanitária será realizada com o objetivo de esclarecer a população sobre a importância do cão na epidemiologia da doença, ressaltando a necessidade da eliminação do reservatório"; o Artigo 8º "Nas áreas endêmicas será obrigatório o exame dos cães, visando manter o controle da zoonose"; e o Artigo 9º "Os cães encontrados doentes deverão ser sacrificados, evitando-se, porém, a crueldade". Com o passar dos anos, a doença foi inserida no contexto das legislações estaduais e municipais sobre zoonoses, definindo-se que os animais soropositivos, além dos doentes, devem ser sacrificados. Dessa forma, os médicos veterinários são desestimulados a tratar os cães infectados 19,20.

Em 2003 21, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais ingressou com Ação Civil Pública contra o Município de Belo Horizonte em razão:

  1. da eutanásia de animais sadios;

  2. do pouco prazo existente entre o recolhimento do animale a eutanásia ―impossibilitando por vezes o resgate do animalpor seu dono em hipótese de perda;

  3. da forma como os animais recolhidos das ruas do Município eram eutanasiados coletivamente e sem sedação prévia em uma câmara de gás saturada por monóxido de carbonoproveniente de motor de veículo.

Com a Constituição de 1988 e a adesão dos municípios ao convênio ao Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), os municípios passaram a realizar algumas atividades de controle de vetores. Em 1990, com a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8080/90) e Lei nº 8142/90 (participação da comunidade e transferências intergovernamentais), foram detalhados os princípios do Sistema Único da Saúde (SUS), fixados na Constituição Federal de 1988, em que um dos princípios organizacionais para cumprimento das suas principais diretrizes foi a descentralização de ações e serviços de saúde, com direção única em cada esfera de governo e ênfase na municipalização 22.

O Brasil é o segundo país com a maior população de animais domésticos do mundo: são 101,1 milhões, perdendo somente para os Estados Unidos da América (EUA), com 146 milhões 23. Segundo uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (ABINPET), em 2012, havia 37,1 milhões de cães nos lares brasileiros. Apesar de pesquisas apontarem que é crescente o zelo dos proprietários com o bem-estar de seus animais, não é possível afirmar que essas informações revelam uma realidade comum a todos que possuem animais de companhia 24.

Esta diversidade não se apresenta somente com relação aos aspectos éticos dos indivíduos que buscam atençãoem saúde, mas envolve também questões representativas, afetivas entre tantos outros aspectos que configuram as características particulares de cada pessoa ou coletividade. Em nome da ciência houve a marginalização de diferentes segmentos sociais, com a consolidação de práticas pecaminosas que, ao silenciarem considerações de ordem simbólica e histórica sob a ótica das condições de vida e saúde das populações, fazem crer que não existe uma escolha política, ideológica e ética nas práticas sanitárias, parece ser mais racional normalizar condutas de que humanizar o processo 25.

É necessário compreender que o singular é inerente ao individual, o cão dentre vários, é único e insubstituível ao seu proprietário. Ainda que váriosindivíduos compartilhem uma mesma religião, crença, ideologia, entre outros, ou até sofram de uma mesmadoença, alguns aspectos serão únicos a cada pessoa. Nesse sentido, o cão pode ser o mesmo para vários indivíduos, porém a maneira de se relacionar, de perceber, de expressar, será específica a cada cultura, a cada grupo social, e ainda, pode ser singular a cada indivíduo 26.

Na pratica, nota-se a soberania do direito do Estado em detrimento de outras áreas do conhecimento, os conflitos advindos dessa medida de eliminação do cão, requer a necessidade do rompimento de uma visão meramente reducionista e legalista do direito à saúde:

O campo do direito, portanto, evita, repele e, estigmatiza qualquer explicação que não seja realizada por ele próprio. É Deus porque se propõe a responder todos os fenômenos sob uma perspectiva universalista; e é ciumento porque se propõe a responder sozinho, ou seja, sem a incorporação de outros campos de saber em seu discurso. A ênfase na explicação do direito pelo direito é um elemento importante para a solidificação e manutenção desta perspectiva, que se desenvolveu ao longo da história sob a denominação de positivismo jurídico 27

É nesse contexto, que se observa o crescimento da atuação das instituições jurídicas e de participação no processo de formulação, execução e fiscalização das políticas de saúde no combate a LVH. Isso produz arranjos e estratégias das mais variadas e, inclusive, diversas formas de associação entre tais instituições. Juízes, promotores de justiça, conselheiros de saúde e representantes de associações estabelecem, constantemente, sinergias e aproximações de seus saberes e práticas, que atuam decisivamente na efetivação do direito à saúde e na implementação de políticas públicas humanizadas 26

A partir desta consideração surgiu o interesse em discutir a importância do diálogo entre a Saúde e o Direito no combate a LVH, uma vez que áreas doconhecimento com atuaçõesdistintas sobre uma mesma ótica se estabelece a partir dainterlocução, demaneira complementar, sem preconceitosou imposição de uma sobre outra. O direito e a saude no combate a LVH possuem pontosconvergentes e comuns, pois, é umapossibilidade emergente que pode contribuir para a solução de alguns desafios das políticas públicas frente à diversidade e a ética que seapresentam no que concerne a negligencia deste agravo.

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo, observacional, quantitativo, a partir do banco de dados secundários da Vigilância Epidemiológica, Serviço de Zoonoses e do Serviço de Procuradoria Geral do município Governador Valadares/MG, no período de 2008 a 2015, e revisão de literatura e análise documental, de Leis vigentes, federais, estaduais e do município, por consulta a sites oficiais, utilizando hermenêutica juridical 28.

Resultados e Discussão

No município brasileiro estudado, as notificações aconteceram em várias faixas etárias, porém nota-se que desde o ano de 2008, o número de casos LVH em menores de quatro anos foi crescente, com alguns declínios, nos anos de 2013 e 2014 (Gráfico 1). Enquanto, em idosos, as notificações se intensificaram em 2015, evidenciando uma mudança no perfil epidemiológico do agravo.

O que pode estar associado ao acentuado desejo, desses indivíduos de possuir um animal de companhia, principalmente, nos extremos do ciclo vital, por proporcionar significativa melhoria na qualidade de vida, aumentando estados de felicidade, reduzindo sentimentos de solidão e melhorando as funções físicas e emocionais. O que permeia no conceito ampliado do processo saúde-doença 29.

Gráfico 1 Notificações de LVH de 2008 a 2015, em dois extremos do ciclo da vida, em GV/MG. 

Observa-se um número significativo de notificações de LVH em crianças. Uma importante característica da LVH é que, quanto maior a incidência da doença, maior o risco para as crianças mais jovens, fato já documentado no Brasil, onde a preferência da doença pela população infantil vem se mantendo ao longo dos anos 30.

Nota-se a presença considerável da LVH a partir de 2015, em idosos. O animal tem a 'capacidade de fazer o ser humano sentir-se amado, respeitado, aceite, seguro e digno de atenção'. A presença do animal de companhia proporciona momentos lúdicos, como é caso das crianças e idosos, fazendo com que os indivíduos se sintam menos aborrecidos e assumam uma atitude mais ativa nas tarefas cotidianas. Outros benefícios que são apontados por diversos autores relacionam-se com o fato de que a presença do animal faz decrescer a ansiedade e reduzir o sentimento de solidão, situação muito comum em idosos 30.

De fato, no estudo efetuado em Governador Valadares, foi observada uma elevada prevalência de cães soropositivos (Tabela 1), com exceção de 2015, que aparentemente apresentou uma diminuição da LV canina (LVC), porém com aumento de casos humanos como mostrado na figura 1. Levando a reflexão que somente a eutanásia não soluciona a zoonose humana.

Tabela 1 Soroprevalência canina versus processos judiciais 

Fonte. CCZ, Governador Valadares, 2016.

A prática assume uma característica que se revela indesejável aos interesses dos atores sociais, não sendo capaz de atingir os objetivos da saúde pública a que se recomenda e implica em ônus para os cofres públicos. Além de afetar o profissional veterinário que a concretiza de forma a provocar lhe estresse com prejuízos a sua saúde física e mental, e em seu desempenho para o trabalho.

Após duas décadas de tentativas de controle da LVC no Brasil, o número de casos aumentou significativamente e constata-se a sua expansão para áreas urbanas.Como método diagnóstico da LVC canina os programas seguem duas reações: Elisa e RIFI, produzidos por Biomanguinhos, laboratório de Saúde Pública, com o intuito de detectar cães infectados, fonte de infecção para o flebótomo, para a realização da eutanásia e avaliação da prevalência da LVC. Em relação aos métodos sorológicos empregados em inquéritos epidemiológicos, os parâmetros de sensibilidade, especificidade e valores preditivos das técnicas sorológicas empregadas são de extrema importância para se evitar interpretações equivocadas, com resultados falsos positivos ou negativos, a fim de garantir a eficiência do programa 31.

Recentemente um estudo 32 mostrou que GV é o território da leishmaniose, entre 2008 a 2011, aconteceram 86 casos humanos, predominante do gênero masculino, com uma letalidade de 16,2%. O grupo fez um inquérito epidemiológico em 4992 cães, mostrando 30,2% de positividade de LVC. Respeito ao vetor o estudo mostrou captura de 2539 flebotomíneos nas áreas peridomiciliares em 84,5% dos casos, e a Lu. longipalpis foi a espécie predominante em 90% dos casos, sugerindo a participação do agentevetor no ciclo da doença no reservatório canino, levando a pratica da eutanásia.

O que gera impasses com a sociedade, em virtude de lidar de modo inadequado e provocar sofrimento e morte indiscriminada a animais com os quais as pessoas mantêm um vínculo afetivo. Outro entrave diz respeito aos danos provocados ao meio ambiente, devido ao descarte inapropriado da carcaça animal nos lixões, contrariando a legislação ambiental brasileira especialmente a Lei Federal nº9605/98 e a Portaria Federal nº 05/93 do CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente) que estabelece a destinação adequada dos os animais mortos, o que revela a continuidade de uma atitude de desconsideração aos interesses mais essenciais de outros seresvivos 33.

O que emerge a necessidade de substituir medidas preventivas já estabelecidas, por outras capazes de promover o controle canino como vacinas caninas que já estão sendo comercializadas mais ainda não adotadas nos programas públicos de Saúde e consequentemente atingindo o controle da LVH, subsidiadas pela eficiência, humanização e ética.

Os proprietários resistem em entregar seus cães, intervindo o Estado por meio de ações judiciais, negligenciando o vínculo afetivo entre o homem e o cão. Observa-se o antagonismo entre a lógica do Estado e a visão da população sobre a política pública de combate a LHV que se torna reducionista e desrespeita os sentimentos humanos. Se faz necessário pensar em uma nova arte de governar em saúde, que engloba, em sua complexidade, instituições estatais (jurídicas e não- jurídicas) e, principalmente, instituições sociais, o que vem relacionada a estratégias dialógicas que pressupõem a ausência de hierarquia entre os sujeitos que as compõem 27.

Todos os atores sociais envolvidos com a questão animal e consequentemente com saude, deveriam atuar para afirmar o direito à vida dos animais, evitando a morte desnecessária e a utilização de métodos de eutanásia que possam lhes causar qualquer sofrimento. Além disso, a elaboração de legislações mais rigorosas de proteção animal deve ser pleiteada com o intuito de coibir crimes contra os animais.

Entende que o controle populacional realizado pelo Centrode Controle de Zoonoses é legal, consonante com o Art. 196 daCR/88 e amparado pelo poder de polícia sanitária, mas que adiscricionariedade do poder público não pode ser desvirtuadapara a prática de crimes. É citado na fundamentação do Ministro Humberto Martins o erro cometido pelo 6º Informe técnico da OMS, de 1973, que foi corrigido no 8º Informe técnico da mesma, em 1992. Na própria documentação confirma a falha da exterminação de animais para o controle de disseminação de doenças, aconselhando a esterilizaçãoe a educação da população como medida hábil. É observado que a lei concede a discricionariedade ao administrador para que ele encontre a melhor solução possível para o atendimento do interesse público, e que essa discricionariedade não pode ser usada como justificativa para a prática de crueldade contra os animais. Pressupondo-se que pode haver liberdade na escolha dos métodos de extermínio desde que eles sejam equivalentes em menor crueldade 33.

O Direito à Saúde não poderia ser entendido somente como direitosocial, mas, especialmente, como direito humano fundamental, tutelado em documentos legaisdomésticos e internacionais, que repetem a seriedade das políticas públicas para suaefetivação. Contudo, cumpre salientar que o direito em saúde pública, um instrumentoda sociedade, não se restringe à atuação do Estado em seu dever de garantia àproteção dos Direitos Humanos. Significa dizer que é legítima e desejável a intervençãodos cidadãos e das entidades não governamentais, na busca da validação dos DireitosHumanos 31.

De acordo com o Artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, o proprietário não é obrigado a eutanasiar o seu cão, pois é sua propriedade, e, se o Poder Público o fizer, poderá ser acionado por crime de Abuso de Autoridade (o servidor público) e ainda responder por danos materiais e morais, se assim desejar o proprietário 28.

Julgamos que o diálogo entre saude e o direito tema das doenças negligenciadas, como a LVH, fundamenta-se tanto pelos referenciais da bioética, que estão organizados a desvestir as verdadeiros dificuldades de injustiças persistentes no mundo contemporâneo, quanto por referenciais que se propõem a efetivar a saúde como direito fundamental do ser humano, pondo em prática a definição proposta no artigo 14º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco 34. Ir além das injustiças sociais, sanitárias e as dessimetrias estabelecidas entre aqueles que detêm o poder e os que não tem poder algum, originários, na maioria das vezes, das situações persistentes que ainda acometem a humanidade, ignorando a ética 31.

Diante do exposto, necessita-se avançar sobre a compreensão da biologia de Leishmania, e lançar nova luz sobre as interações complexas ocorrendo dentro do triângulo parasita- hospedeiro-vetor, descobrir medidas eficazes em programas de tratamento e controle do agravo. Além disso, explorar como a doença em cães se relaciona com a dos seres humanos e como uma compreensão melhorada, em consonância com o conceito de "Uma Saúde" pode abrir novas vias para o controle dessas doenças devastadoras.

Paradoxalmente, o elevado grau de problemas que enfrenta a sociedade contemporânea é proporcional às possibilidades de encontrar alternativas que permitam a recomposição do tecido social. Os Direitos Humanos foram redefinidos a cada momento histórico de acordo com as exigências e crises por que passava a sociedade em cada momento histórico determinado. O Direito Ambiental é o novo marco jurídico emancipatório que permitirá a ampliação da cidadania no século XXI, e o Direito Ambiental, o que inclui o direito animal, traz à tona uma série de discussões que ultrapassam a sua materialidade, não se resolvendo apenas na esfera processualística 35.

Na realidade, é um novo marco epistemológico da própria ciência do Direito, que aponta para um novo horizonte de discussão em um outro campo designado de Ecologia Jurídica. A sociedade contemporânea não vive mais o dilema dos anos 50: Socialismo ou Barbárie, mas sim um outro dilema: Sustentabilidade ou Barbárie 36.

De acordo com as Organizações das Nações Unidas, o ideal é sustentar a idéia de que a existência humana está intimamente relacionada com a preservação do ambiente, a persistência da afirmação de que o mais importante é assegurar o direito à vida não significa que segue-se falando dos mesmos sujeitos e direitos. Agora, a vida referida na chave dos direitos humanos já não é tão somente a vida da humanidade, mas também a vida da natureza 37.

Conclusões

Conclui-se que a LVH é um agravo grave e reemergente que acomete milhares de pessoas, e as crianças e os idosos, tem sido grupos da população bastante vulneráveis. Afeta homens e animais, sendo que estes últimos, quando não tratados, podem evoluir a óbito. Para os cães ainda não há legalidade para tratamento cientificamente comprovado, o que define a prática da eutanásia, como uma das medidas mais adotada no controle da doença.

Entretanto, o sacrifício de cães deve ser precisamente planejado e implementado de forma responsável e nunca como uma medida mecânica em larga escala. O fato é que não é possível adotar uma norma, mesmo que seja em benefício de uma sociedade, se não partir da própria sociedade esta necessidade fim de ser reduzido o sofrimento de cães e da sociedade. A saúde pública não deve sobrepujar os valores éticos, mas procurar alternativas inteligentes e criativas para controlar e ou erradicar agravos da sociedade.

Diante do exposto, é emergente a construção de uma Política pública Humanizada de combate a LVH, que permita o diálogo entre o direito e saúde, que não negligencie as especificidades dos atores sociais, que não se prenda ao monopólio, capaz de ir além dasregras jurídicas, de incluir as dimensões simbólica, ética e política na discussão sobre as medidas de controle do agravo.

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Recebido: 29 de Março de 2016; Aceito: 14 de Setembro de 2016

Correspondencia: Savio Tarso Pereira da Silva. Faculdade Pitágoras Ipatinga. Jornalista e mestrado em História pela Universidade Severino Somb ra (2006). E-mail: saviotarso@yahoo.com

Luana Duarte Ferreira Vieira Marques. Médica Veterinária do Centro de Controle de Zoonose. Vigilância epidemiológica de Governador Valadares. Responsável pelo controle da leishmaniose visceral humana e canina. E-mail: vetluana@hotmail.com

Karla Cristine Coelho Lamounier. Advogada. Oficial de justiça fo Forúm da Comarca de Governador Valadares. Mestrado (c) em Gestão Integrado do Território, Universidade Vale do Rio Doce. E-mail: karlalamounier@hotmail.com

Josiane Márcia de Castro. Graduada em Efermagem. Professora da Faculdades Pitágoras Ipatinga. Mestrado (c) em Gestão Integrado do Território, Universidade Vale do Rio Doce. E-mail: josianecastro77@yahoo.com.br

Gulnara Patricia Borja-Cabrera. MD Medicine and Surgery, Ecuador Central University. PhD Pathology, Federal Fluminense University. E-mail: gulnara.borja@univale.br

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