1. Introdução
Em abril de 2015, após um acordo extrajudicial firmado entre a University of Pennsylvania e o Ministério Público Federal brasileiro (com a intermediação da Secretaria de Cooperação Internacional), foram repatriados ao Brasil 2.693 frascos contendo o sangue de indígenas yanomamis que se encontravam de posse da instituição norteamericana há décadas. O material havia sido coletado entre os anos de 1960 e 1970, quando o antropólogo Napoleon Chagnon, o geneticista James Neel e outros pesquisadores estiveram nas terras yanomamis, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, realizando controvertidas pesquisas junto aos índios. Como resultado dessas pesquisas, o seu livro Yanomamö: The Fierced People [Yanomamö: O Povo Feroz, em tradução livre], escrito em 1968, foi responsável por veicular internacionalmente a visão dos yanomamis não apenas como uma etnia isolada, mas também feroz, lasciva e beligerante.
Considerado um dos mais polêmicos antropólogos da atualidade, Chagnon é acusado de, durante sua expedição, incitar conflitos entre aldeias yanomamis, introduzir armas de fogo entre eles, e disseminar fatalmente sarampo entre indígenas, tudo isso deliberadamente, para comprovar suas teses científicas e examinar as consequências do contato de índios isolados com não-índios. Embora não comprovadas, essas acusações são reunidas, dentre outros, em Darkness in El Dorado: How Scientists and Journalists Devastated the Amazon [Trevas no Eldorado - como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia, em tradução livre] (2000), famoso livro em que o jornalista Patrick Tierney acusa Chagnon de manipular dados para criar um best-seller.
Ainda conforme esse livro, no contexto dessa expedição, James Neel teria coletado amostras de sangue de diversos indígenas, recolhendo-as em tubos de ensaio, para depois encaminhá-las aos Estados Unidos, onde ficariam por muitos anos congeladas à disposição de experiências acadêmicas1.
Para os propósitos do presente artigo, o caso Sangue Yanomami, controvérsia que repousava no direito dos índios yanomamis (enquanto comunidade) de reaverem, por repatriação, o sangue coletado de seus parentes e antepassados sem o seu consentimento livre e informado, deveria servir para mostrar que o direito ao patrimônio genético pode ser visto não apenas como um direito individual ou de toda a humanidade, mas também como um direito de uma certa coletividade, ligado a valores específicos como a memória e a espiritualidade, independente de sua importância científica.
2. Sobre o caso Sangue Yanomami
Os yanomamis são recorrentemente citados como índios com elevado grau de isolamento ou semi-isolados (CARVALHO et alli, 1985; DINIZ, 2007), com séculos de pouca ou nenhuma relação interétnica, e que por isso mesmo possuem características únicas do ponto de vista socioantropológico e biológico. Contudo, eles não compõem uma única comunidade, uniforme e integrada. São mais de 25 mil índios yanomamis espalhados por um vasto território (mais de 9,5 milhões de hectares) abrangendo a Venezuela e o norte do Brasil (Estados de Roraima e Amazonas), e abarcando cerca de 250 aldeias distintas, que variam entre si em termos numéricos (de 40 a 250 pessoas), grau de aculturação, de nomadismo, histórico de belicosidade etc. Em comum - que atrai o interesse científico - há o baixo nível de mestiçagem, e, consequentemente, a "pureza" do patrimônio genético (DINIZ, 2007).
Certamente em razão disso, o geneticista James Neel acompanhou a expedição de pesquisadores e teria proposto a coleta do sangue dos indivíduos daquela comunidade que poderia representar uma "janela para as sociedades pré-históricas", conforme disse Chagnon em entrevista que concedeu em 20152. Embora ele diga nessa entrevista que o sangue seria 99% de tribos venezuelanas, Bruce Albert, 2006, contesta tal informação, defendendo que "Entre os Yanomami que doaram sangue às equipes de J. Neel está o líder yanomami Davi Kopenawa e sua família. Essa coleta aconteceu no ano de 1967, na região do rio Toototobi" (p. 337).
Robert Borofsky et allí, 2005, p. 61, apresenta o caso como uma "feroz controvérsia" - em clara paráfrase ao livro de Chagnon -, recontada pelos próprios yanomamis. Entrevistando membros da etnia, em especial o líder indígena Davi Kopenawa, o autor sustenta a tese de que os indígenas que formaram fila em fins dos anos 60 para terem seu sangue coletado, não tinham plena consciência do que faziam, e, demais, foram seduzidos por presentes oferecidos pelos pesquisadores. Como os primeiros europeus que exploraram a ingenuidade e as carências materiais dos índios, a equipe de Chagnon teriam oferecido machados, terçados, linhas de pescar e outra ferramentas e equipamentos úteis para a vida selva, para convencerem os indígenas a se submeterem ao procedimento de coleta de sangue.
Tudo isso permaneceu alheio ao conhecimento da comunidade científica internacional até a publicação de Darkness in El Dorado, de Patrick Tierney, e sua disseminação ao longo dos anos 2000 (ALBERT, op. cit). Daí então, nos Estados Unidos, na Venezuela e no Brasil, principalmente entre antropólogos e estudiosos comprometidos com questões de ética aplicada, a controvérsia passa a ganhar contornos claros (idem, ibidem). Conforme registrou Débora Diniz, "O caso do sangue yanomami será o fio condutor para a elucidação de questões centrais ainda na pauta da agenda da ética em pesquisa no Brasil" (2007, p. 286).
Entre os próprios yanomamis, a informação divulgada de que o sangue de alguns de seus parentes ―inclusive muitos dele já mortos― estavam armazenados em uma terra distante, em um sítio frio, os deixa "extremamente chocados": "essa estocagem, mantida secretamente até a revelação de Tierney, constitui, para eles, uma afronta cultural gravíssima já que seus ritos funerários impõem a destruição de qualquer rastro/resto" (ALBERT, op. cit., p. 337). Consta que à época teria havido alguma explicação vaga dos objetivos da coleta do sangue aos indígenas, como o de desenvolver novos remédios para tratar das doenças deles. Em todo caso, o próprio expediente de convencê-los por meio de presentes materiais não permite que se afirme alguma preocupação emancipatória naquele método de pesquisa.
As falhas éticas nos métodos de coleta de amostras de sangue de J. V. Neel, bem como a ausência de reflexão ética de seus sucessores em relação à extração e replicação de DNA a partir delas fundamentaram-se num pressuposto idêntico: a [alegada] dificuldade de explicar a natureza e os objetivos dessas pesquisas aos povos indígenas permitiria reduzir o direito desses povos ao pleno princípio do consentimento prévio informado (ALBERT, op. cit. p. 340)
Não era o primeiro caso de coleta de sangue de índios para usos científicos inusuais, como técnicas rápidas de replicação de sequências de DNA daqueles indivíduos sem qualquer controle. Amostras de DNA dos Karitiana e Suruí, de Rondônia, chegaram a ficar disponíveis para venda na internet nos anos 90, após terem sido coletadas por pesquisadores da Universidade de Yale; amostras de sangue e material genético dos Kayapós foram usados em pesquisas sobre o retrovírus HTLV-II nos Estados Unidos e no Japão; e J. Neel também obteve amostras de sangue e sequências de DNA dos Tikuna, em 1976, as quais circularam por muito tempo em institutos de pesquisa e laboratórios farmacêuticos nos Estados Unidos e Europa.
No caso das amostras de sangue yanomami, elas foram rotuladas de archival anthropological samples e manipuladas com modernas técnicas de laboratório (reação em cadeia da polimerase), que permitiram a extração e reprodução exaustiva de fragmentos de DNA. Segundo Albert, "esse material genético foi utilizado posteriormente em diversas pesquisas, que D. A. Merriwheter, geneticista detentor de material biológico yanomami na Universidade americana [...] designa pela interessante expressão de 'freezer anthropology'" (op. cit., p. 338).
No entanto, sendo o sangue yanomami mais quente do que se imaginava, em 11 de novembro de 2002 o líder yanomami Davi Kopenawa escreve uma carta à Procuradoria Geral da República expressando sua revolta e a de seu povo: queriam de volta os "vidros de sangue" (ALBERT, op. cit., 337). A controvérsia passou a ser representada juridicamente, através da postulação do direito de enterrar os "restos" (onoké) de seus antepassados, e da acusação de desrespeito aos costumes indígenas. Se bem percebido, o que estava em jogo no caso era o direito de reaverem algo que simbolizava, a um só tempo, o seu patrimônio genético e a sua espiritualidade ancestral.
3. Dimensões do direito ao patrimônio genético
Por meio do material sanguíneo, é possível explorar o genoma humano para obter sequências de DNA. Como lembra Diniz (op. cit.), as amostras de sangue yanomami coletadas tiveram como destino posterior universidades norteamericanas dedicadas ao Projeto Genoma Humano, do qual Neel participou ativamente.
Stela Marcos de Almeida N. Barbas, 2011, resume a importância do genoma nos seguintes termos: "Como conjunto estruturado de informações de que podemos dispor, tanto do passado quanto do presente e mesmo quanto ao futuro, o genoma pode ser considerado um espaço simbólico e um bem colectivo de toda a Humanidade" (p. 14). Nesse passo, destacando a relevância jurídica da matéria, a autora bem distingue o direito ao genoma humano (personalista, individualista) do direito do genoma (ligada ao gênero humano): "O genoma é não só um bem fundamental da pessoa como de toda a Humanidade" (2011, p. 15). Sua tese é de que o direito teria se desenvolvido da mera proteção do patrimônio genético/genômico individual de cada um, para a proteção do capital genético que seria necessário proteger, preservar e transmitir para as gerações futuras, no interesse da humanidade como um todo.
Assim como a identidade genética de cada indivíduo o tornaria um ser único, insubstituível, que poderia reivindicar o direito ao seu próprio genoma (combinações ordenadas de sequências de DNA no tempo e no espaço formando uma "herança" através de muitas gerações); do mesmo modo os interesses da Humanidade deveriam ser tutelados em face dos riscos de manipulação genética. Em O futuro da natureza humana, J. Habermas, 2004, defende que o gênero humano deveria estar a salvo de estratégicas como a eugenia liberal, com isso se protegendo a ética de cada ser humano ser si mesmo.
O caso aqui tratado envolve tanto o direito ao genoma quanto o direito do genoma, embora com uma caracterização um tanto singular de ambos.
Primeiramente, a postulação yanomami não era, conforme se nota, voltada à proteção da cada pessoa da comunidade que eventualmente teve o seu próprio sangue subtraído. De vez que as comunidades indígenas tradicionais não têm desenvolvida uma uma concepção liberal-individualista em relação às coisas, seria, a rigor, o direito ao genoma postulado coletivamente. O sangue seria um bem da comunidade inteira.
De outro lado, a relação daquela postulação com o direito do genoma não se deu como em certos casos em que a proteção difusa do patrimônio genético da Humanidade pretende inibir experiências de manipulação genética que ameacem os limites mais sedimentados da bioética.
É verdade, como lembra Diniz (op. cit.), que alguns pesquisadores se posicionaram contra a devolução do material, alegando a sua importância para o Projeto, mas, em todo caso, não consta que isso envolvesse quaisquer experimentos que pusessem em risco "a integridade da espécie humana e a dignidade e os direitos de cada um dos membros que a compõem" (BARBAS, 2011, p. 16, destaquei). Os impasses éticos estariam ligados à forma leviana da coleta do material, e não necessariamente à sua destinação final. Tivesse o sangue sido coletado de maneira responsável, com a anuência livre e informada dos concernidos, com respeito aos seus costumes, talvez a controvérsia não tomasse a dimensão que tomou.
O que marca a controvérsia yanomami, fazendo com que muitos apoiassem a devolução, é o quanto o sangue (visto como um "resto") têm uma importância simbólica específica para a aldeia afetada, a despeito do material genético que dele possa derivar seja também um "espaço simbólico" de valor para a Humanidade. É a dimensão imaterial do sangue indígena (e não suas propriedades e usos para a biomedicina) que o torna especialmente inalienável no caso. A descrição do ritual que se sucedeu à devolução do material à comunidade ilustra esse valor simbólico específico, "sagrado", para os indígenas.
4. Direito ao patrimônio genético e valores imateriais
Em abril de 2015, após firmado acordo extrajudicial, os frascos contendo o sangue foram repatriados à aldeia yanomami na comunidade Piaú, região do Toototobi, na divisa entre os estados do Amazonas e Roraima. Seguiu-se à devolução um rito fúnebre, de depósito do sangue na terra.
A cerimônia privada foi dirigida pelos xapiris (pajés) e demorou cerca de três horas, período em que os índios choraram pela memória de seus antepassados. Ainda antes de se aberta a caixa com as amostras, alguns inalaram o pó alucinógeno yakoana. Após depositado o sangue, foram ainda lançados ao buraco vinho de pupunha misturado com pimenta e tabaco, como forma de "sagrado" para os espíritos. Em seguida, foram realizadas danças e ritos de pajelança. O local do enterrado, onde o sangue voltou à terra, tornou-se sagrado.
Os yanomamis convidaram para a cerimônia representantes do Ministério Público Federal (MPF), do Itamaraty, da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Instituto Socioambiental (ISA). Foram testemunhas do valor imaterial daquele sangue, que acondicionado em cápsulas pouco remetia aos corpos de onde foram retirados há décadas, mas ainda se mantinham como um peso na memória coletiva da tribo. Quando os yanomamis morrem, o corpo deve ser queimado, e as cinzas devem ser consumidas junto com um caldo de banana. Não deve haver qualquer resquício do morto, e seu nome não pode mais ser pronunciado nunca mais (MILLIKEN et alli, 1999).
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, registra que a luta dos índios para reaverem aquele sangue foi "incansável", e apenas quando se tenta compreender o seu valor espiritual para toda a tribo, perceber-se que não se tratava de um requerimento por patrimônio genético nos moldes típicos, embora a importância identitária ligada ao material esteja presente.
Como se disse antes, a coleta de sangue junto a populações tradicionais não é recente e nem exclusiva ao caso yanomami. Talvez os estudos sobre o direito de reivindicação e uso de materiais genéticos para pesquisas científicas deva inserir tópicos específicos sobre a integridade de culturas e comunidades com visões de mundo próprias como um limite para aquelas pesquisas e um critério especial para o uso exclusivo daqueles materiais.
5. Considerações finais
O caso Sangue Yanomami, que envolveu longa controvérsia sobre sangue indígena coletado de forma irresponsável nos anos 70 por pesquisadores estrangeiros, que foi enfim devolvido (repatriado) em 2015, e que permitiu à comunidade interessada satisfação imaterial, pode ser visto como um exemplo marcante de como questões culturais são relevantes para certos debates sobre direito e patrimônio genético.
Tratou-se dele como um leading case no processo de reconhecimento tanto do direito individual à identidade genética (direito ao genoma) como do direito difuso ao patrimônio genético da Humanidade (direito do genoma). Sua relevância reside no fato de permitir, dentre outros, que se conceba a demanda dos índios pela devolução do sangue ancestral como uma reivindicação ao mesmo tempo (i) do direito ao genoma exercido coletivamente pelo povo yanomami e (ii) do direito difuso, relativo ao interesse da Humanidade em geral, de que o material genético fosse devolvido, dado o valor imaterial específico que tinha para a comunidade indígena, não um interesse de caráter científico, mas simbólico.