INTRODUCCIÓN
A prática excessiva do exercício físico pode levar ao desenvolvimento de comportamentos patológicos e dependentes, como a dependência de exercício (DE) (Nogueira, Molinero, Salguero, & Márquez, 2018). A DE que se caracteriza como uma ânsia pelo exercício físico e um comportamento incontrolável em praticá-lo de forma excessiva, que se manifesta por sintomas fisiológicos de intolerância e abstinência e/ou psicológicos, como ansiedade e depressão (Di Lodovico, Poulnais, & Gorwood, 2019). Entretanto, ainda são escassos os estudos a respeito da prevalência da DE na população, suas causas e consequentemente suas consequências , fato que pode justificar a ausência deste comportamento dependente na quinta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Association, 2013), ficando apenas identificada como “comportamento repetitivo” (Hausenblas & Downs, 2002; Hausenblas & Giacobbi Jr, 2004).
Nesse cenário, os sujeitos dependentes tratam a prática de exercício como prioridade, abdicando de diversos aspectos (e.g. família, saúde, amigos) para se exercitar (Almeida, Borba, & Santos, 2018; Rudolph, 2018; Zeulner, Ziemainz, Beyer, Hammon, & Janka, 2016). A DE pode ser classificada como primária, quando os indivíduos incluem o uso do exercício como estratégia de coping para as preocupações com a saúde, aparência e estressores em geral (Di Lodovico et al., 2019), ou dependência secundária, quando está incluída na etiologia dos transtornos alimentares (Bóna, Szél, Kiss, & Gyarmathy, 2019), distorção da autoimagem (Neves, 2015) e da dismorfia corporal (Orrit, 2019; Pope, Phillips, & Olivardia, 2000; Pope Jr, Gruber, Choi, Olivardia, & Phillips, 1997), nos quais o exercício físico é elemento compensatório ou mantenedor do transtorno.
Nessa perspectiva, a DE pode trazer danos para a saúde física e mental tanto para atletas quanto para não-atletas (Costa, Della Torre, & Alvarenga, 2015; Manore, Meyer, & Thompson, 2018), visto que a excessiva carga de exercício requer uma alta demanda técnica, física e psicológica para os praticantes (Moreira, Mazzardo, Vagetti, Oliveira, & Campos, 2017), os quais realizam grande volume de treinamento esperando alcançar os resultados esperados, sejam esses relacionados ao desempenho ou a estética.
Embora a literatura aponte a relação positiva entre a DE e o aumento da prática de exercício (Corazza et al., 2019; Di Lodovico et al., 2019; Lukács, Sasvári, Varga, & Mayer, 2019), bem como a relação desse comportamento como a idade, praticantes mais jovens estão mais suscetíveis a desenvolver níveis elevados de DE(Di Lodovico et al., 2019; Lukács et al., 2019; Nogueira et al., 2018; Zeulner et al., 2016), ainda não existe um consenso a respeito do papel do volume e frequência de treino sobre tal comportamento dependente em atletas recreacionais e praticantes de exercício(Di Lodovico et al., 2019; Lukács et al., 2019; Nogueira et al., 2018).
Considerando o crescimento exponencial de praticantes recreacionais de exercício físico nos últimos anos, principalmente em modalidades como a musculação (bodybuiling), o crossfit e a corrida (Esteve-Lanao et al., 2017), e que a DE é um fenômeno grave que requer atenção, é de suma importância identificar possíveis fatores que podem estar relacionados a esse comportamento dependente para que treinadores, psicólogos e praticantes estejam atentos ao comportamento do praticante/atleta em relação ao exercício.
Desta forma, o presente estudo teve como objetivo foi investigar a associação da idade, frequência de treino e tempo de prática sobre o grau de DE de atletas recreacionais. A hipótese inicial é que a frequência semanal de treino e o tempo de prática apresentarão maior associação com o DE dos praticantes de exercício do que a idade.
MATERIAL Y MÉTODOS
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo descritivo com delineamento transversal e investigação metodológica (Ato, Lopez, & Benavente, 2013). O estudo foi desenvolvido por meio das diretrizes do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) (Malta, Cardoso, Bastos, Magnanini, & Silva, 2010) para estudos observacionais.
Participantes
Participaram da pesquisa 159 atletas recreacionais de corrida de rua (n =38), crossfit (n = 85) e musculação (n =35), de ambos os sexos (77 homens e 81 mulheres). Os participantes tinham média de idade de 31,59 (dp = 7,98) anos, tempo médio de prática de 1,68 (dp = 0,87) anos e frequência semanal de treino de 4,62 dias (dp=1,15). Os critérios de inclusão foram: 1) > 18 anos; 2) ser praticante de exercício físico há pelo menos três meses; e 3) treinar regularmente pelo menos duas vezes por semana. Apenas os indivíduos que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido participaram deste estudo.
Instrumentos
Variáveis independentes
As variáveis independentes do estudo foram mensuradas a partir de um questionário semiestruturado elaborada pelos próprios autores com questões referentes à modalidade, idade, tempo de prática e frequência semanal de treinos.
Variável dependente
A variável dependente do estudo foi a DE, que foi mensurada por meio da Exercise Dependence Scale-Revised (EDS-R), que foi desenvolvida por Downs, Hausenblas e Nigg (2004) e validada para o contexto brasileiro por Alchieri et al. (2015). A EDS-R avalia a dependência ao exercício por meio de 21 itens, atribuindo-se a cada item um escore de um a seis, representando nunca e sempre, respectivamente, conforme comportamentos ou crenças nos últimos três meses. O somatório desses itens possibilita o cálculo de sete escores diferenciados, cada um representando um sintoma da dependência de exercício, a saber: a abstinência (Refere-se à prática de exercício físico superior à sua intenção de fazê-lo), a continuidade (Este fator representa uma continuidade dos exercícios, mesmo quando são contraindicados), a tolerância (Este termo, utilizado no campo fisiológico, refere-se à necessidade de aumentar a carga o exercício para sentir-se satisfeito), a perda de controle (Este fator indica uma falta de controle do indivíduo na prática de exerício, tendo que manter sempre a intensidade, duração e frequência do exercício para se sentir satisfeito), a redução de outras atividades (Esta dimensão diz respeito à redução do convívio com familiares e amigos para passar tempo praticando exercício), o tempo (Refere-se ao tempo despendido pelo indivíduo na prática de exercício) e os efeitos intencionais (Propõe que, quando privado de se exercitar, o indivíduo passa a sentir sintomas característicos de abstinência, como ansiedade, irritabilidade e tensão). Além disso, o instrumento também possibilita o cálculo de um escore global representativo da dependência ao exercício por meio da média dos valores de todos os itens. Quanto maior o escore total, mais alto é o nível de dependência ao exercício e quanto maior o escore em determinado sintoma, mais comprometido o indivíduo se encontra naquele aspecto da dependência de exercício. O escore total da EDS-R é interpretado enquanto um continuum (pontuação mínima 21 e máxima 105) no qual escores mais elevados indicam maiores sintomas de DE, acima de 70 pontos foi considerado elevado e abaixo de 70 pontos foi considerado baixo (Alchieri et al., 2015). O Alfa de Cronbach variou entre 0,76 e 0,87, indicando forte consistência dos dados (Hair, Risher, Sarstedt e Ringle, 2019).
Procedimiento
Os procedimentos adotados nesta pesquisa estão de acordo com os critérios de ética em pesquisa com seres humanos de acordo com a resolução (466/12) do Conselho Nacional de Saúde. Inicialmente, o contato era com a gerência dos centros de treinamentos (academias, box de corssfit, acessórias de grupo de corrida) para obter autorização para coleta de dados. Em seguida, o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco aprovou o estudo (protocolo 2.442.590). Os participantes foram selecionados de forma não-probabilística e por conveniência e a coleta de dados se deu por meio de formulário online disponibilizado pelo Survey Monkay. Os sujeitos que tiveram o interesse em participar da pesquisa fizeram o aceite por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no formulário online, assinalando “concordo”. O endereço eletrônico foi desenvolvido para alojar o questionário eletrônico destinado ao estudo e foi divulgado via e-mail e redes sociais (Facebook, Instagram e Whats App). A plataforma para preenchimento dos questionários ficou disponível para a recepção das respostas dos sujeitos por 90 dias. Antes do preenchimento, uma breve instrução era dada aos participantes contendo informações referentes aos objetivos da pesquisa, o público-alvo e a estimativa de tempo para finalizar o questionário (aproximadamente 15 minutos).
Análise dos Dados
A análise de dados foi realizada através de estatísticas descritivas e inferenciais. A análise preliminar dos dados foi realizada por meio do teste de normalidade de Kolmogorov-Smirnov e o teste de homogeneidade das variâncias de Levene. Como os dados apresentaram distribuição normal, a média e o desvio padrão foram usados para a caracterização dos resultados. A correlação de Pearson foi usada para investigar a associação da idade, tempo de prática e frequência semanal de treino com as dimensões de DE em praticantes de exercício. O modelo de regressão múltipla foi usado para determinar se idade, tempo de prática e frequência semanal (variáveis independentes) estão associadas às dimensões de DE (variáveis dependentes). O modelo foi conduzido usando o método Backward para inserir as variáveis (critério de remoção F = 0,10). Todas as variáveis independentes foram inseridas juntas nos modelos. Não houve correlações suficientemente fortes entre variáveis que indicassem problemas com multicolinearidade (VIF < 5,0). Todas as análises foram realizadas no SPSS v. 22. 0.
RESULTADOS
A maior parte da amostra (51,3%) foi composta pelo sexo feminino e de participantes (51,3%) está entre a faixa etária de 18 a 30 anos. De acordo com a modalidade, a maioria dos respondentes pratica crossfit (53,8%). Ainda, 44,3% participantes praticava a modalidade há menos de 2 anos e em relação a frequência de treino, percebe-se que a maioria dos participantes treina 5-7 vezes por semana (56,3%).
Os resultados apresentados na Tabela 1 mostram que os valores relatados sobre a DE variaram entre 1,00 e 5, e os valores da assimetria e kurtosis variaram entre 0,06 e 0,13, respectivamente. Os valores médios das variáveis variaram entre 2,20 e 3,82.
A análise das correlações apresentadas na Tabela 2 indicou as seguintes correlações significativas (p<0,01) e (p<0,05). Frequência de treino com continuidade (r=0,16), redução de outras atividades (r=0,27), falta de controle (r=0,24), tempo (r=0,25) e escore geral de DE (r=0,25).
Foi realizada uma regressão múltipla com todos os possíveis fatores associados (idade, tempo de prática e frequência de treino) para cada uma das dimensões de DE. A tabela 3 apresenta os modelos finais apenas com os fatores associados que foram retidos no modelo final da regressão e, portanto, mostraram resultados significativos (p < 0,05).
Os resultados obtidos (Tabela 3) indicam que a ‘frequência de treino’ apresentou associação significativa (p < 0,05) e positiva com a maioria das dimensões de DE. A combinação destas variáveis explicou 1% da continuidade (β=0,16), 6% da redução de outras atividades (β=0,27), 5% da falta de controle (β=0,24), 5% do tempo (β=0,25) e 7% do escore geral de DE (β=0,25).
DISCUSSÃO
A presente investigação visou avaliar a idade, o tempo de prática e a frequência de treino como fatores associados da DE em praticantes de exercício. Os principais resultados revelaram que apenas a frequência de treino apresentou associação com a DE (continuidade, redução de outras atividades, falta de controle, tempo e escore geral de DE) (Tabela 3).
O principal resultado desta investigação responde uma das hipóteses iniciais demostrando que a frequência de treino está associada positivamente com o desenvolvimento da DE em praticantes de exercício (Tabela 3). Ressalta-se que a frequência semanal de treino apresentou associação positiva com diversas dimensões da DE, indicando que quanto mais vezes na semana o indivíduo treina, maior pode ser a predisposição de praticar exercícios além do planejado e com grande quantidade de tempo, de reduzir o convívio social, ocupacional ou de lazer para se exercitar, além de apresentarem maior incapacidade de reduzir sua carga de exercícios, mesmo quando são contraindicados (Alchieri et al., 2015; Clifford & Blyth, 2019; Nogueira et al., 2018). Este achado parece indicar que o aumento do volume de treinamento do atleta amador/recreacional pode levar a perda do controle sobre os limites físicos e mentais e, consequentemente, desencadeando a DE (Di Lodovico et al., 2019; Nogueira et al., 2018). O fato de muitos atletas amadores não possuírem acompanhamento diário de treinador e equipe multidisciplinar pode estar relacionado a tal resultado, uma vez que o treinador tem papel fundamental no controle da carga de treinamento diária e semanal (Impellizzeri et al., 2006).
Estudos recentes (De La Vega, Parastatidou, Ruiz-Barquin, & Szabo, 2016; Lucidi et al., 2016; Schiphof-Godart & Hettinga, 2017) demostraram relação positiva entre o risco de desenvolvimento da DE e a intensidade e a frequência da prática do, verificando que quanto maior a frequência de treino maior os indicativos de DE. Clifford e Blyth (2019) demostraram que atletas/estudantes com maior frequência semanal de treino revelaram maior predisposição para a prática de exercícios além do planejado pelos treinadores. Lukács et al. (2019) observaram que corredores amadores tendem a aumentar o volume e a intensidade das suas atividades para alcançarem maiores níveis de satisfação/prazer. Desta forma, os achados da presente investigação revelam que a frequência de treino pode ser considerada um fator prejudicial para a saúde física e mental, uma vez que pode levar ao desencadeamento da DE e, consequentemente, a adoção de outros comportamentos dependentes e patológicos (e.g. Transtorno alimentar, distorção da imagem corporal, uso de esteroides anabolizantes) (Di Lodovico et al., 2019).
A literatura aponta que existem mecanismos psicológicos que podem favorecer o aumento da prática do exercício (e.g. paixão pela prática, estratégias de coping) (Di Lodovico et al., 2019; Lukács et al., 2019; Nogueira et al., 2018) e, consequentemente, desencadear a DE. Pesquisas recentes afirmam que a paixão pelo exercício é um atributo psicológico que pode levar ao aumento do volume da prática do exercício e, consequentemente, ao desencadeamento da DE (Back, Josefsson, Ivarsson, & Gustafsson, 2019; Kovacsik, Soós, de la Vega, Ruíz-Barquín, & Szabo, 2018), uma vez que quando o indivíduo pratica a atividade pela própria vontade, por prazer e apresenta identificação com a prática, existe uma tendência de maior investimento de tempo e energia por parte do praticante (Back et al., 2019; Kovacsik et al., 2018). No entanto, o presente estudo não abordou a associação da DE com este atributo psicológico, o que é uma limitação desta pesquisa.
Embora a frequência semanal de treino tenha se mostrado como um fator preditor da DE, o tempo de pratica não apresentou predição significativa com as dimensões e o escore geral de DE (Tabela 3), indicando que o tempo de prática/experiência por si só parece não levar ao desenvolvimento de DE. Esses achados não corroboram com a literatura (Downs, Savage, & DiNallo, 2013; Warburton & Bredin, 2017), uma vez que diversos estudos apontam que o tempo de prática pode ser um fator intermitente para o desenvolvimento da DE (Downs et al., 2013; Warburton & Bredin, 2017). Downs et al. (2013) investigaram que jovens fisicamente ativos apresentam sinais de patológicos de exercício físico, que podem levar ao desenvolvimento de DE. Warburton e Bredin (2017) observaram que o comportamento esportivo ativo na infância pode favorecer a um engajamento de comportamentos dependentes (eg. DE) na fase adulta. Esse fato pode estar relacionado ao fato de alguns praticantes de exercício utilizarem a prática de exercício para superar outro vício (e.g. Depressão, alcoolismo, tabagismo) ou como maneira de reduzir o estresse, sendo a forte dedicação transformando os praticantes em viciados pela prática do exercício (Lee et al., 2017; Warburton & Bredin, 2017).
Percebeu-se que a idade também não se mostrou como um fator preditor para o desenvolvimento da DE (Tabela 3), evidenciando que a idade cronológica não parece interferir no comportamento do indivíduo em relação à prática do exercício. Esses achados podem ser considerados contraditórios, na medida em que pesquisas afirmam que a idade pode ser um fator para o desencadeamento de comportamentos dependentes (e.g. DE; uso de anabolizantes transtorno alimentar) (Clifford & Blyth, 2019; Lichtenstein & Jensen, 2016). Lichtenstein e Jensen (2016) observaram que os praticantes de crossfit do sexo masculino e jovens apresentaram maior DE que seus respectivos pares. No entanto, vale ressaltar que fatores culturais (e.g modalidade, hábitos, costumes) também podem interferir diretamente nesses comportamentos (Fidan, Ertekin, Işikay, & Kırpınar, 2010).
Apesar das contribuições relevantes obtidas a partir dos resultados deste estudo, algumas limitações precisam ser destacadas. Primeiramente, por se tratar de um estudo transversal e com único instrumento (escala de auto relato), os dados obtidos permitem correlações entre variáveis, mas não inferências de causalidade, o que é uma das limitações da pesquisa. Vale destacar também o reduzido número de participantes e que eram praticantes de apenas três modalidades de exercício, o que impossibilita a generalização dos resultados para praticantes de outras modalidades, embora traga implicações relevantes para os profissionais envolvidos com a prescrição de exercício. Assim, futuras pesquisas devem ampliar o estudo com praticantes de outras culturas, hábitos e de outras modalidades individuais e coletivas, assim como analisar variáveis psicológicas relacionadas à DE que não foram analisadas nesse estudo (e.g. paixão, ansiedade). Por fim, vale destacar que a presente investigação não avaliou se os atletas tinham treinador/acompanhante durante os treinamentos.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir que a frequência semanal de treino está associada positivamente, mas com intensidade baixa, com o grau de DE em atletas recreacionais. Diante disso, a orientação e acompanhamento de treinadores/profissionais de educação física torna-se importante com o intuito de controlar o volume e intensidade da carga de treinamento, uma vez que o aumento do volume e intensidade de treino semanal sem orientação profissional pode levar ao desenvolvimento da DE em atletas, ocorrência de lesões e outros prejuízos físicos e mentais.