1. Introdução
Escrever sobre doenças raras é enfrentar uma complexidade de doenças de difícil tradução, pois atinge milhões de pessoas em todo mundo, que ainda são invisíveis para diversas barreiras.
A doença rara é caracterizada em diferentes continentes por definições que depende das regulamentações locais. No Brasil, o Ministério da Saúde define como "aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas para cada 2.000 indivíduos" (Brasil, 2014). Para a Comissão Europeia, qualquer doença que afetar menos de cinco pessoas em 10 mil indivíduos é considerada rara (Comissão Européia, 2021). Já nos EUA, doenças e distúrbios raros são aqueles que afetam pequenas populações de pacientes, normalmente menores que 200.000 indivíduos no país (EUA, 2002).
As doenças raras são geralmente crônicas, progressivas e incapacitantes. Os itinerários terapêuticos do diagnóstico até os tratamentos possíveis, por vezes, paliativos para cada condição, demandam um corpo clínico especializado e complexo. Algumas doenças por suas complexidades possuem casos raros no mundo, e outras com números de casos mais facilmente encontrados em um mesmo país.
A permeabilidade do acesso aos cuidados de pessoas com doenças raras é um itinerário complexo, devido ao tempo despendido até o diagnóstico conclusivo e a terapia adequada as intercorrências ao longo da doença. As doenças raras geram conflitos éticos diários na vida de seus pacientes, agravam as dificuldades de acesso às redes de saúde e aos cuidados que lhes são necessários, fazendo com que pacientes e seus acompanhantes percorram longas trajetórias na busca por atendimentos, direcionamentos adequados ou respostas aos seus conflitos, tornando-os ainda mais vulneráveis diante da situação vivenciada.
Apesar da visibilidade que as doenças raras tem conquistados nos últimos anos, há inúmeros obstáculos como a falta de conhecimento profissional para reconhecer e tratar as diversas variáveis da doença, que carregam em torno de 6.000 tipos diferentes, com uma variação de origem genética em torno de 80%; os itinerários entre o diagnóstico e tratamentos acessíveis e possíveis; investimentos em pesquisa e tecnologias assistivas; assim como compreender a dimensão de conviver e cuidar de pessoas com doenças raras, que envolvem a saúde mental e financeira das famílias (Iriart et al., 2019; Felipe et al., 2020).
Receber um diagnóstico de doença rara na família aparece entre significados, estigmas, violações de direitos e discriminações, segundo Moreira (2019). Frequentemente é narrado por uma experiência disruptiva, desnorteada e desafiadora onde o indivíduo e sua trajetória ressisgnificam em números epidemiológicos (Aureliano, 2018; Moreira, 2019; Amaral e Rego, 2020).
Para a bioética minimizar as vulnerabilidades sociais, individuais, institucionais e morais é refletir e transformar o espaço do outro. O modelo comunicativo abordado nas práticas e cuidados de saúde nos itinerários terapêuticos de pacientes com doenças raras implicará em toda trajetória de vida desses indivíduos. Uma comunicação eficiente auxiliará na saúde do paciente e dos familiares, assim como no diagnóstico e possíveis tratamentos dos sintomas. Barreiras na comunicação em saúde podem impedir que todos envolvidos no cuidado e acesso a saúde de pessoas com doenças raras seja efetivo e justo.
Este artigo pretende trazer uma reflexão sobre barreiras comunicativas em saúde, buscando identificar na tríade do meio científico, atuação técnica e do paciente e seus cuidadores, as fragilidades e potencialidades para dar visibilidade ao estigma das doenças raras.
A análise reflexiva sobre as barreiras de comunicação na perspectiva das doenças raras se deu a partir da organização em três níveis: a) o nível acadêmico, considerando os processos de comunicação próprios do segmento científico; b) o nível técnico, considerando os processos de comunicação envolvidos na prática e formação da equipe multidisciplinar; c) o nível pessoal, envolvendo a perspectiva pessoal de pacientes e familiares (Figura 1). A presente análise reflexiva considerou também a conexão entre esses três níveis e a apropriação da temática pela agenda da bioética.
2. O meio científico como fronteira de comunicação
As infrequências do diagnóstico de cada doença rara indicam que a maioria das doenças tem sido relativamente negligenciada, devido às dificuldades em obter financiamento de pesquisa, recrutar pacientes suficientes para estudos científicos, encontrar abordagens estatísticas válidas para pequenos números de pessoas envolvidas nas pesquisas clínicas ou mesmo longos percursos e complexos atos regulatórios para um novo tratamento em cada país. Para encorajar a inovação diagnóstica e terapêutica para doentes raros ainda existem muitas barreiras no meio acadêmico e em pesquisas (Baxter, 2012).
Estudos de investigações em saúde com seres humanos são imprescindíveis, porém é necessário minimizar riscos, identificar danos e vulnerabilidades ao sujeito de pesquisa que enfrentaria maior possibilidade de sofrer danos sendo um paciente raro. A informação segura e eficiente sobre a finalidade, benefícios, riscos, confidencialidade e custos do estudo segundo Rimaudo e Llobeta (2021), torna-se fundamental para o paciente raro, pois tendo em consideração que estes pacientes por vezes necessitam participar de estudos como única alternativa de ter acesso ao tratamento, mesmo que experimental. Por outro lado, importante ressaltar que a pesquisa pode gerar preocupações com relação à privacidade, ao consentimento e ao potencial de identificação nos resultados, exigindo que o pesquisador garanta a confidencialidade do participante.
Apenas 1% das doenças raras beneficiam de tratamento curativo, segundo Conseil (2018). Poucas medidas estruturantes são tomadas em níveis nacionais, e também continentais, para potencializar itinerários terapêuticos menos longos e traumáticos, garantindo que qualquer inovação seja acessível a um preço justo e controlado para além das fronteiras geográficas. Da mesma forma, é necessário envolver sempre que possível a autonomia do paciente em todas as etapas do desenvolvimento das terapias, comunicando-se com todos os atores envolvidos nessa trajetória.
Para Conseil (2018), a falta de conhecimento sobre muitas doenças tem sido a causa da má gestão e da falta de investigação de soluções terapêuticas, como fontes de dados não coordenadas em nível global, resultando na fragmentação do conhecimento e em fronteiras de comunicação. Muitas vezes com o apoio e comunicação com associações de pacientes é que se consegue gerenciar maior número de informações. Com grande frequência os centros médicos e de apoios terapêuticos, assim como as associações de pacientes se encontram nos grandes centros urbanos, não favorecendo que todos possam ter acesso com facilidade.
Hyry et al. (2017) apontam que políticas entre países podem interferir diretamente na vida das pessoas com doenças raras, principalmente em relação a acesso e preço de medicamentos "órfãos", os quais a indústria farmacêutica tem pouco interesse no desenvolvimento e comercialização pelo pequeno número de doentes afetados (Eurodis, 20XX). O monopólio de patentes e uso de medicamentos, parece não estimular o desenvolvimento de medicamentos para pacientes com doenças raras onde há baixo interesse comercial, impondo barreiras morais sobre quem deve ser medicado, e quem tem direito a vida digna.
Komarov, Krasilnikova, Zhulev e Zinchenko (2020), apontam que diversas doenças podem ser negligenciadas pelo Estado, pois falta de organizar sistemas de registro de pacientes violando a compreensão das demandas de cada pessoa, a cuidados preferenciais, desde a evolução da doença, intervenções terapêuticas que permitirão determinar a prevalência, incapacidades, mortalidade, manutenção medicamentosa necessária e também estabelecer o espectro das doenças a serem tratadas.
Acredita-se que por mais que existam entre 6 e 8 mil doenças raras, a escrita científica não acompanha a grande variedade de doenças e as especificidades que cada diagnóstico traz consigo, mesmo em uma pandemia em que pessoas com doenças raras fazem parte do grupo de risco e possuem complexidades que necessitam de mais atenção.
Os limites científicos com poucas pesquisas com pacientes com doenças raras, são reflexo de uma pressão social para resolução de questões que envolvam grande número de pessoas, como se vê numa pandemia vivenciada atualmente com busca à vacinas e tratamentos urgentes e eficazes, numa ética utilitarista. Automaticamente isso envolve tanto o direcionamento de fomentos como próprio interesse das revistas em divulgar estudos com essa temática, rompendo o acesso à informação segura, precisa e científica. A busca por respostas raras na ciência é por vezes a barreira de comunicação em saúde que pode salvar o paciente, sua família e seus cuidadores e a equipe de saúde que precisa de informações seguras para cuidar e garantir seus direitos humanos elementares para viver.
Sayago e Lorenzo (2020), apontam conflitos éticos implicados com a atenção à saúde global de pacientes raros e que há necessidade de transformar as condições estruturais dos sistemas responsáveis pelas disparidades em saúde. Os autores denunciam que há necessidade de uma produção científica crítica comprometida com a emancipação daqueles sofrem em suas vidas e em seus corpos os efeitos de um sistema de saúde global desigual. Isso implica em uma produção de conhecimento que visa contribuir para estabelecer regulamentações mais justas no campo das tecnologias em saúde, e na produção e incorporação de tecnologias por critérios em que o valor da vida e do bem-estar humanos esteja acima do direito à propriedade intelectual e aos lucros.
3. A formação técnica para compreender o universo raro
A atenção à saúde de um paciente raro necessita de uma cadeia ininterrupta de cuidados, envolvendo equipe multidisciplinar, família e cuidadores (Sayago e Lorenzo, 2020).
A formação técnica dos profissionais de saúde sobre conhecimentos que abordem as doenças raras não é comum, sendo ainda poucos profissionais habilitados e capacitados, frente o grande número de doenças e particularidades que cada diagnóstico traz consigo. Isto fragmenta a comunicação do complexo cuidado que os pacientes precisam, pois, as equipes trabalham sem protocolos, padronização e sintonia, mas com dilemas diários. As dificuldades na tomada de decisão que impedem o envolvimento iniciam-se na formação técnica e perpetuam pelos equipamentos em saúde, acessos a medicamentos e exames diagnósticos. Fortalecer todos os níveis de organização e comunicação em saúde na atenção, diagnóstico, atendimento e tratamento são fundamentais.
As emergências que requerem cuidados específicos são usualmente comuns em pacientes, onde ações rápidas são fundamentais, e, portanto, torna o universo do cuidado de uma pessoa com doença rara especial. Há necessidade de fortalecer sistemas que consigam compreender o tempo e espaço da urgência e emergência de um sintoma ou doença rara. Para isso, não pode haver ruídos na comunicação técnica com a equipe e o paciente, para que juntos possam compreender a dinâmica da situação e solucioná-la de forma justa.
Algumas associações em nível internacional buscam ampliar a comunicação em saúde com os atores envolvidos nos itinerários de pacientes com doenças raras, disponibilizando acesso a informações como infraestrutura de investigação, fornecendo uma linguagem comum para uma compreensão homogênea, além de orientar os usuários e os demais participantes sobre a complexidade de informação no domínio das doenças raras (Orphanet, 2021). O material é traduzido em diversos idiomas, com participação de 41 países todos do hemisfério norte, fragilizando a universalização de dados de populações vulneráveis no eixo sul-sul, onde a bioética inclusive manifesta sua preocupação por uma discussão crítica sobre a perspectiva da desigualdade dos povos.
Felipe et al. (2020), identificou fatores de vulnerabilidades nos itinerários terapêuticos no meio científico sobre doenças raras, apresentando que o despreparo profissional gera preocupações às famílias, com a carência ou o pouco conhecimento disponível e a falta de qualificação, formação e instrumentalização de profissionais de saúde para trabalhar com pacientes e familiares no itinerário percorrido por este público, sejam eles em atenção primária ou em serviços de referência. Essa barreira técnica na formação não ajuda a decidir de forma segura e eficaz, perpassando as trajetórias de vida, em busca de comunicação adequada e compreensiva, por inúmeros serviços e profissionais de saúde.
Há de se reconhecer que o elo de comunicação entre a formação profissional e o diagnóstico todos enfrentam dificuldades. Para os profissionais a busca científica é limitada, a formação é insuficiente pela amplitude de possibilidades dentre as mais de 6 mil doenças possíveis, assim como reconhecer que o atendimento multidisciplinar é fundamental. Com relação à formação de profissionais, destaque-se que com exceção de disciplinas voltadas a genética clínica, ainda há pouca formação específica para doenças raras, comprometendo consideravelmente as consultas, atendimentos, exames e diagnóstico, ampliando as buscas por atenção à saúde por tempo indeterminado.
Algumas tecnologias buscam diminuir o ruído entre a comunicação dos atores envolvidos no diagnóstico profissional, como um conjunto de aplicativos que gerenciam informações genéticas para detecção mais precoce dos diagnósticos não conclusivos, dividindo por uma rede de profissionais especialistas, ampliando a gama de conhecimento raro que se tem sobre principalmente as doenças ultrarraras, como detectar fenótipos, revelar caraterísticas faciais e não faciais relevantes ao diagnóstico ou análise de correspondências de síndromes relevantes. Essas potencialidades comunicativas devem fazer parte de cada vez mais da realidade profissional (Face2Gene, 2021).
O fato em consenso é que melhores oportunidades educacionais para profissionais de saúde tornariam mais justas as trajetórias de vida de pacientes com doença rara, e os dilemas e enfrentamentos dos profissionais mais afável e justo. Para a construção dos saberes é necessário lutar por condições dignas que forneçam o necessário para serem profissionais completos, no momento em que um paciente estiver a sua frente (Chernicharo, Freitas e Ferreira, 2013).
A dimensão técnica, também está interligada com a dimensão familiar, pois é necessário haver comprometimento e apoio, presencial ou à distância, para que a vulnerabilidade da pessoa com doença rara e sua família sejam cada vez menores. Essas mesmas dimensões estão interligadas através da empatia, compaixão, cuidado, humanização e carinho, que a equipe profissional/técnica precisa dispender para que a família se sinta acolhida e certa de que a pessoa com doença rara está sendo cuidada da melhor maneira possível.
Para ampliar as formas e acesso aos cuidados a E-saúde e a telemedicina também devem beneficiar as doenças raras. Portanto, é urgente priorizar e transpor experiências bem-sucedidas para melhorar a qualidade do atendimento e auxiliar o paciente no manejo do cuidado (Triclin-Conseil, 2017)
4. Trajetórias de vidas de pacientes e familiares em busca de comunicação segura
A falta de informação e falhas na comunicação geram angústias a quem delas depende, especialmente ao se tratar do campo da saúde, conforme afirma Felipe et al. (2020). A acessibilidade à informação é indispensável à interação entre profissionais e usuários.
Existem dificuldades que abraçam o contexto da comunicação entre pessoa com doença rara e sua família, e a maior delas desde a infância da pessoa que tem doença rara é se fazer entender, quando a doença impossibilita ou dificulta o processo de aprendizagem para tal. Nas especificidades das doenças raras, 8 em cada 10 pessoas têm dificuldades em completar as atividades de vida diária, que dizem respeito a se vestir, sua higiene, alimentação, entre outros, mas estes itens necessitam que algum tipo de comunicação aconteça para haver compreensão entre a pessoa e a família. A maioria dos cuidados diários é realizado pela família, que passa uma quantidade significativa de tempo gerindo tais cuidados (Afonso, Gomes e Mitre, 2015; Barbosa et al., 2016).
Percebe-se que há questões que dificultam a acessibilidade e qualidade de vida de pessoa com doenças raras e dos seus cuidadores. Alguns destes pontos que vulnerabilizam ainda mais essa comunidade diz respeito a infraestrutura, materiais e recursos adequados para atender às necessidades de cuidados, que são específicas para cada indivíduo.
A busca pela comunicação que melhor se adequa a pessoa com doença rara, é extremamente relevante, pois é através dessa escolha que a comunicação precisa ser uma ação que gere a maior autonomia possível, em qualquer espaço que o indivíduo esteja. Essa autonomia, visa a expressão de necessidades e estabelecimento de interações sociais, seja com a comunicação alternativa que irá respaldar toda a comunicação do indivíduo, ou seja a comunicação aumentativa que auxiliará na linguagem já existente. Portanto, os sistemas de comunicação geram promoção de uma comunicação mais efetiva, proporcionando meios funcionais de comunicação e promovendo a inclusão social (Duarte e Velloso, 2017).
Algumas estruturas de comunicação podem ser usadas pela pessoa com doença rara, que tem algum tipo de dificuldade de comunicação, e entendendo que este é um processo que envolve a troca de informações entre dois ou mais interlocutores por meio de regras mutuamente entendíveis. Existem várias estruturas de comunicação, algumas delas são, PECS (Sistema de comunicação por troca de figuras), comunicação por cartões, prancheta alfabética, prancheta de escrita, vocalizador, campainha, Tobii (Civiam tecnologia assistiva), acionadores, comunicação por sinais, entre outros. Existe muita tecnologia que norteia a troca de informações entre família e pessoa com habilidades rebaixadas, que se chama de Comunicação Alternativa (CA). Esta alternativa, envolve tanto pessoas sem fala ou sem escrita funcional, como uma defasagem entre necessidade comunicativa e sua habilidade em troca de fala e/ou escrita (Afonso, Gomes e Mitre, 2015; Dominguez, 2016).
O itinerário terapêutico para encontrar qual é a melhor escolha de comunicação alternativa é um processo importante, pois vai depender da capacidade adaptativa tanto da família entender e aprender o funcionamento da CA, quanto a pessoa com doença rara aprender o uso da comunicação específica, que necessitará de acompanhamento fonoaudiológico e psicológico para a melhor escolha da comunicação e melhor inserção desta aconteça de maneira rápida e precisa. Quando se escolhe uma CA ela não precisa ser definitiva, pois a habilidade da pessoa com DR pode aumentar, e, portanto, a comunicações mais universais podem ser inseridas para que haja possibilidade de diálogo da pessoa com DR com outros grupos, ou de maneira ainda mais precisa. Isso também pode acontecer ao contrário, as habilidades vão diminuindo é importante haver novas avaliações sobre a melhor comunicação para cada pessoa específica (Afonso, Gomes e Mitre, 2015; Barbosa et al., 2016).
Por detrás de todo o contexto de comunicação existe muita insegurança por parte da família e pessoa com DR, pois ela necessita aprender ou ensinar uma técnica que é base para qualquer pedido, resposta ou sinalização de dor, fome, ou outra necessidade acontecer.
Outro contexto relacionado a comunicação ou a falta dela, é a expressão dos sentimentos. A cultura familiar pode ser um grande dificultador na expressão das emoções, pois cada estilo de vida familiar mostra uma maneira de se relacionar com o que se sente. É comum, que as angústias, medos, incertezas e receios sejam deixados de lado, para que o cuidado se sobressaia, mas se não houver acolhimento dos sentimentos, por mais complexos e dolorosos, o cuidar ultrapassa um limite, e se torna um peso, uma carga. A comunicação desde a busca por quem cuidará primariamente da pessoa com doença rara, que normalmente é ocupada pela mãe ou esposa, não deveria ser automático, e sim dialogado com todas as pessoas envolvidas na vida de quem tem doença rara (Pais-Ribeiro, 2007; Soares, Araújo e Bellato, 2016).
É comum haver conflitos conjugais na vida de quem é responsável por uma criança com doença rara, e isso pode acontecer mais de uma vez mediante a falta de comunicação, do que se sente, da distribuição das tarefas e de outros apontamentos relevantes para a família. Um exemplo, é o cuidado e entendimento de irmãos de crianças com doenças raras, que podem entender pouco a respeito do que está acontecendo, mas percebem que existe atenção e cuidados específicos ao irmão, que não acontecem consigo. Grupos terapêuticos para famílias e cuidadores são importantes, pois buscam minimamente ser um guia para a básica comunicação entre si e as pessoas as quais se relaciona (Pais-Ribeiro, 2007; Soares, Araújo e Bellato, 2016).
A dor sentida como sofrimento emocional, é comumente deixada em segundo plano, e por tanto, não dialogada. Isso pode acontecer pela pessoa não saber como descrever o que sente, por achar que quanto menos pensar ou falar de algo, mais rápido se esquecerá ou passará o sofrimento, ou mesmo por não achar quando e com quem falar sobre si. Para chegar a meios de sentir-se mais à vontade a falar sobre si mesmo e a suas vulnerabilidades, é necessário cuidado, para que o falante não se sinta exposto a ponto de se fechar emocionalmente mais (Soares, Araújo e Bellato, 2016).
Toda troca, pode ser muito rica, mas não exima sofrimento, de imediato falar pode ser desconfortável, e por isso, é comum não haver diálogo entre pessoa, família e profissionais do cuidado das doenças raras. É necessário descomplicar a comunicação sobre planos de vida, expectativas e objetivos a curto e longo prazo, em relação a pessoa com doença rara, quanto para a família e a toda rede de profissionais que perpassam pela trajetória de vida dos pacientes raros (Pais-Ribeiro, 2007).
5. Barreira na comunicação entre a triade
A transposição das barreiras de comunicação na perspectiva das doenças raras encontra espaço de acolhimento na bioética, a qual com sua natureza dialogante intenciona a identificação e mitigação de vulnerabilidades por meio do diálogo. Assim, ouvir os argumentos dos atores de um conflito ético se constitui do primeiro passo para superação dos limitantes que atrasam o estabelecimento de estratégias para alcançar soluções comuns, justas e factíveis.
Compreender a estrutura de comunicação em saúde para que a bioética possa auxiliar a invisibilidade nas doenças raras e em especial na comunicação ou falta desta, para com a sociedade é imprescindível. Muitas vezes a própria pessoa com doenças raras tem voz, mas esta não é ouvida pela sociedade, fica, portanto, necessário que família e profissionais da saúde lutem em conquistar o espaço da voz nas doenças raras.
Infelizmente, ainda é comum que as pessoas com doenças raras serem consideradas invisíveis pela sociedade, naturalizando a falta de garantia de acessibilidade no atendimento. O atendimento em saúde inclusivo implica em medidas de acessibilidade, mas não só isso, a comunicação também é acessibilidade, e nisso deve ser assegurado práticas baseadas num compromisso ético com seus direitos.
As Tecnologias Assistivas (TA), visam a produção de materiais e produtos para melhor a qualidade de vida e acessibilidade de pessoas com deficiência, logo, isso engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços para promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, para lhes proporcionar autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social (Varela e Oliver, 2013). Este é um potencial que precisa ser ampliado e compartilhado com quem usa, e com quem desenvolve. Academia, ciência, paciente e profissionais do cuidado todos devem pactuar compromisso ético com a vida das pessoas com doenças raras.
A dimensão familiar e a dimensão do paciente estão estreitamento ligadas, pois muitas vezes, o próprio não tem condições de consentir que intervenções podem ou não acontecer consigo mesmo, assim, este está vulnerável e à mercê do consentimento e vontade da sua família e da equipe técnica que orienta. Por tanto, para haver inclusão e funcionalidade social, é necessário que haja uma relação muito estreita entre conhecer o paciente e a atuação da academia. Enfatiza-se que os itinerários percorridos pelas famílias de pessoas com doenças raras caminham junto aos serviços de atenção primária quase que diariamente, tanto pela necessidade de consultas rotineiras, quanto pelo tratamento e desenvolvimento de habilidades da pessoa com deficiência ao longo da vida, e não apenas enquanto criança (Cerqueira, Alves e Aguiar, 2016).
As perspectivas observadas frente a relação entre comunicação e doença rara, apontam para conhecer e desenvolver cada vez mais ciência, e nesse contexto, investir no que a mesma afirma como possibilidades de comunicação em saúde. Outra perspectiva diz respeito a rede de colaboradores, que deve conhecer sobre as possibilidades de comunicar-se com o paciente. É necessário um olhar com base em quatro pontos, a técnica (profissionais), o diagnóstico (saber o nome do que se tem, pois irá variar o plano de ação terapêutico), o planejamento (que seria a própria ação terapêutica) e a família (possibilidade de gerar mais autonomia para a pessoa com deficiências).
Ao transitar em meio às temáticas envolvendo os itinerários terapêuticos para pessoas com doenças raras, a partir do campo teórico e normativo da bioética, busca-se apontar para problemas significativos que envolvem aspectos como o respeito à dignidade humana, o direito à saúde, a proteção de vulneráveis e o envolvimento coletivo por meio de processos solidários (Felipe et al., 2020).
Na perspectiva das barreiras de comunicação, a transposição entre a formação técnica para a realidade cotidiana, levando em consideração as dificuldades particulares de cada paciente e família, é fundamental. A bioética deve acolher, observar e colocar em prática a sensibilidade e entendimento urgentes, sobre estar presente em contextos acadêmicos, técnicos, familiares e para a própria pessoa com doença rara viverem de maneira mais justa, segura e digna.
6. As doenças raras na agenda da Bioética
A temática das doenças raras encontra espaço de acolhimento da agenda da bioética uma vez que caracterizam conflitos complexos, plurais e globais na qual se identifica diferentes vulnerabilidades ao nível individual, familiar, técnico e institucional, potencializados pelas barreiras de comunicação. A bioética se apresenta justamente como uma ferramenta de superação dessas barreiras, uma vez que ao aplicar diferentes ferramentas teóricas ou práticas estimula o debate (Fischer et al., 2020). A perspectiva do debate, por sua vez, demanda de uma escuta ativa, na qual devem ser identificados os argumentos e valores dos atores componentes desse conflito, sendo a complexidade da questão relativa dependendo da situação específica e da posição na hierarquia decisória. A bioética aceita que não há uma resposta correta, há uma situação real e os valores éticos que devem permear uma decisão cuja expectativa é uma decisão consensual e justa para todos.
As doenças raras permeiam o desenvolvimento da civilização humana, sempre negligenciadas e invisibilizadas pela sociedade que construíram um mundo para pessoas entendidas na faixa de normalidade. Concomitantemente se desenvolve uma concepção econômica capitalista cujas pessoas são concebidas e tratadas como objetivos de lucro. Nesse cenário se desenvolve uma medicina alicerçada no retorno econômico da pesquisa e do desenvolvimento de equipamentos de diagnóstico e medicamentos para um universo global, reforçando a invisibilização e a estigmatização dessas manifestações clínicas. Contudo, o próprio desenvolvimento tecnocientífico que se instaurou motivado principalmente pelo diagnóstico e cura de doenças, uma perspectiva de acolhimento a esses cidadãos negligenciados se implantou. Provavelmente com um descompasso entre as possibilidades e os interesses de inclusão desse grupo nas políticas de cuidado.
A bioética conclama por justiça, sendo justa ao ouvir os argumentos de todos os atores, obviamente que a estrutura de atendimento à saúde em países em desenvolvimento, como no caso do Brasil, principalmente no setor público, que não possui espaço para atender todos os pacientes que sem enquadram em protocolos bem definidos. Logo, em primeira instância a bioética dialoga com esse setor que deve se preparar para receber com qualidade a esses pacientes. O setor da saúde se desenvolverá através da comunicação estabelecida entre a academia e a equipe técnica. É por meio do desenvolvimento da ciência e da incorporação desse conhecimento nos protocolos de diagnóstico e tratamento que se forma a massa crítica e profissional que irá efetivar os benefícios do saber para a população necessitada. Caso haja ruído de comunicação nesse processo, haverá um atraso da consolidação do conhecimento e uma perda para a sociedade. Reitera-se que no meio acadêmico não é fácil pesquisar doenças raras, uma vez que esforços são direcionados para atendimento de um público maior, atendendo a uma perspectiva utilitarista.
A bioética, diante disso, unindo tais questões e acolhendo conflitos e contextos da saúde pública e exclusão social, busca estimular o senso moral individual e coletivo de cada um. Mesmo com o contexto de apoio que as leis respaldam, a família e as pessoa com doença rara necessitam, especialmente, de uma vida digna com funcionalidade, o que significa ter autonomia, independência, maior qualidade de vida, auxiliados pelas equipes de saúde, tecnologias assistivas e acolhimento na necessidade individual de cada família (Felipe et al, 2020, Brotto, Rosaneli e Piloto, 2020).
Mesmo incipiente o processo de comunicação entre o meio acadêmico e o técnico ainda é mais consolidado do que a estabelecida com familiares e pacientes. É justamente essa vulnerabilidade que é identificada pela bioética, uma vez que esses atores raramente possuem oportunidade de se posicionarem como agentes morais. Para que a inserção de pessoas que possuem doença rara se efetive, se faz necessário que o cidadão tenha a concepção do seu papel como protagonista, que consegue se ver na sociedade, entender seus direitos e utilizar ferramentas que o torne visível. Muitas vezes esse papel é mais plenamente assumido pelos pais, uma vez que muitas doenças destituem a autonomia do paciente. Independente se o agente que conclama por mudança e busca o espaço para existência digna deve ser educado para uma vivência comunitária que tenha como valor comum a qualidade de vida de todos.
Assim, vislumbra-se com esse artigo a expectativa de imputar no meio acadêmico a relevância de se aprofundar no desenvolvimento de massa crítica a respeito de procedimentos técnicos e éticos relacionadas as doenças raras. Contudo, estabelecendo um canal mais efetivo de comunicação com a sociedade, seja por meio de processos educacionais formais e informais, seja em confluência com os comitês de ética hospitalar, no direcionamento, orientação e deliberação para implementação de unidades de equipes multidisciplinares para atendimento desse cidadão que não deve ser tomado como um peso para sociedade, mas sim com a potencialidade de agregar valor justamente com a sua especificidade.