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Enfermería Global

versão On-line ISSN 1695-6141

Enferm. glob. vol.16 no.46 Murcia Abr. 2017  Epub 01-Abr-2017

https://dx.doi.org/10.6018/eglobal.16.2.235251 

Originales

Violência contra crianças e adolescentes: características dos casos notificados em um Centro de Referência do Sul do Brasil

Priscila Arruda da-Silva1  , Valéria Lerch Lunardi2  , Guilherme Lerch Lunardi3  , Ceres Braga Arejano4  , Andréa Stifft Ximenes5  , Juliane Portella Ribeiro1 

1Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande do Sul.

2Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande do Sul.

3Doutor em Administração, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande (PPGENF/FURG).

4Doutora em Enfermagem, Docente do curso de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande do Sul.

5Psicóloga do Centro de Referência Especializada em Assistente Social (CREAS). Rio Grande/RS. Brasil.

RESUMO

Objetivo

Apresentar o perfil epidemiológico da violência contra crianças e adolescentes atendidas em um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), a partir dos registros das notificações no período entre janeiro de 2009 e maio de 2014.

Metodología

Estudo descritivo e documental, de abordagem quantitativa, analisadas em 800 prontuários do CREAS. O instrumento de pesquisa abordou variáveis sociodemográficas selecionadas das vítimas, dos agressores e a modalidade de violência. Foi realizada análise com estatística descritiva e utilização do software SPSS® versão 22.

Resultados

O perfil prevalente foi de crianças e adolescentes brancas, do sexo feminino, com idades entre sete e 14 anos, residentes em bairros periféricos. A maioria dos agressores é do sexo masculino, com idades entre 20 e 40 anos. A mãe é a principal responsável pelas agressões, seguida do pai e padrasto. Houve o predomínio da violência sexual, física e psicológica.

Conclusão

O enfrentamento do problema da violência é complexo, requerendo medidas protetivas imediatas.

Palavras chave Violência na Família; Enfermagem; Defesa da Criança e do Adolescente

INTRODUÇÃO

A violência contra crianças e adolescentes constitui um grave problema social global presente em países desenvolvidos e em desenvolvimento1. É caracterizada como uma questão de saúde pública, diante do impacto e das suas consequências no âmbito da saúde individual e coletiva, constituindo-se, portanto, em tema relevante para a Enfermagem.

Relações de violência familiar contra crianças e adolescentes, numa concepção foucaultiana, não parecem se tratar de relações de poder, móveis, instáveis, com espaços de resistência, mas, predominantemente, de estados de dominação: “em muitos casos, as relações de poder são fixas, de tal forma que são perpetuamente dissimétricas e que a margem de liberdade é extremamente limitada2. Dados de um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância3, em 190 países, revelam que, em todo o mundo, cerca de 120 milhões de meninas e jovens com menos de 20 anos de idade (aproximadamente uma em cada dez) foram forçadas a ter relações sexuais ou a praticar outros atos sexuais. Em relação à violência física, cerca de 17% dos jovens de 58 países foram alvos de duras formas de castigo físico praticados como forma disciplinar3.

A complexidade do fenômeno, que costuma ser tratado de forma velada tanto por agressores como vítimas, justifica e exige o envolvimento dos profissionais que atendem essa clientela para notificar os casos, especialmente pela relevância quanto ao dimensionamento do problema, às prioridades para a atenção das vítimas nas diferentes populações e à definição de planejamento e implementação de políticas e programas estratégicos de prevenção e intervenção4. Considera-se que a notificação da violência contra crianças e adolescentes constitui-se, sim, em uma relação de poder e resistência2 do notificador contra o agressor e uma tentativa de ruptura de reprodução de violência.

No Brasil, o conhecimento sobre a dimensão da violência nos serviços de saúde ainda é escasso, desconhecendo-se a frequência dos casos de violência contra crianças e adolescentes5, pois a prática de notificação ainda está desigualmente implantada. Pouco se conhece sobre o contexto político e institucional e os padrões adotados para a sua efetiva operacionalização nos diferentes estados. Tampouco se conhece amplamente seus fluxos e qual a mobilização de recursos efetivamente desencadeados pela notificação compulsória realizada pelos profissionais de saúde4.

A adoção de padronização nas informações, como a construção de banco de dados e sistemas de informação sobre as situações de violência, torna-se relevante, pois permite monitorar o problema, emitir relatórios periódicos e atuais com agilidade, além de produzir informações confiáveis e oportunas6. Para as autoridades, profissionais e cidadãos que lidam com situações de violência, o acesso à informação significa a possibilidade de salvar vidas, fazer valer direitos e garantir a integridade física e psicológica das pessoas.

O município do Rio Grande, onde se realizou o presente estudo, caracteriza-se como especialmente vulnerável a situações de violação da infância e da juventude, Trata-se de uma cidade portuária com aproximadamente 207 mil habitantes, localizada na metade sul do Rio Grande do Sul, com o segundo maior porto em movimentação de cargas do Brasil7. Dados do mais recente mapeamento dos pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais brasileiras - 2013/2014, realizado pela Polícia Rodoviária Federal, em parceria com outros órgãos como a Childhood Brasil e a Organização Internacional do Trabalho (OIT),revelam um aumento de 12% nos pontos considerados vulneráveis no Rio Grande do Sul8.

Somada a esse cenário, vivencia-se no município uma importante expansão do pólo naval, transformando a região em grandes canteiros de obras com trabalhadores, predominantemente, do sexo masculino, potencializando a vulnerabilidade socioambiental já presente no município quanto à violência e, principalmente, em relação à exploração sexual contra crianças e adolescentes.

No entanto, enquanto o município avança em termos de crescimento populacional, para atender a essa demanda de desenvolvimento econômico, existe somente um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), desconhecendo-se, também, de modo sistematizado, como está a situação da violência contra crianças e adolescentes no município. Destaca-se que, somente em 2009, a notificação de violência e acidentes passou a integrar o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).

Apesar do município, recentemente, ter implantado a Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) e o Programa de Ações Integradas Referenciais de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil no território brasileiro (PAIR), assim como o Sistema Vigilância de Acidente e Violências, não se tem ainda informações que permitam avaliar a grandeza do problema da violência contra a criança e o adolescente, mostrando-se relevante questionar: Qual o perfil epidemiológico da violência contra crianças e adolescentes atendidas em um Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS)?

Nessa perspectiva, o estudo tem o objetivo de apresentar o perfil epidemiológico da violência contra crianças e adolescentes atendidas no (CREAS), a partir dos registros das notificações no período entre janeiro de 2009 e maio de 2014. Especificamente, busca-se traçar um perfil das crianças e adolescentes atendidas neste serviço, o perfil dos agressores e as formas de violência sofrida.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo descritivo, de abordagem quantitativa, e análise documental em prontuários, desenvolvido no CREAS no Município de Rio Grande. É uma instituição que se configura como uma unidade pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos, de acordo com o artigo 86 do ECA9.

O serviço conta com uma equipe formada por oito psicólogas, três assistentes sociais, uma educadora social e uma auxiliar administrativa. Aproximadamente duzentas famílias (vítimas e responsáveis) são atendidas mensalmente, através do encaminhamento dos casos pelo Conselho Tutelar ou de denúncias de vizinhos, escolas, serviços de saúde. Após o recebimento da criança e/ou adolescente e seu responsável na instituição, é realizado seu acolhimento, procedendo-se, a seguir, sua avaliação psicossocial e a abertura de um prontuário.

Assim, optou-se por proceder a análise dos prontuários abertos entre 1º de janeiro de 2009 a 31 de maio de 2014. Os dados foram coletados por um único examinador, de janeiro a maio de 2014.

Do universo de 931 prontuários envolvendo crianças e adolescentes vítimas de violência, a amostra foi composta por 800 prontuários de vítimas de violência intrafamiliar, com idades entre zero e 18 anos. Como critérios de exclusão, foram considerados todos os prontuários de pessoas que não se encontram na faixa etária estipulada; registros efetuados antes de 2009 e vítimas de violência extrafamiliar.

Elaborou-se um instrumento de coleta com as seguintes variáveis: informações da vítima (sexo, idade, cor da pele, escolaridade, bairro); características dos agressores (sexo, idade, escolaridade, relação com a vítima); modalidades de violência. Após sua testagem pelos profissionais do serviço, realizou-se um pré-teste com trinta prontuários, não se identificando qualquer dificuldade para seu preenchimento e posterior análise.

Os dados foram inseridos em planilhas do tipo Excel®, realizando-se sua análise estatística descritiva, com o software estatístico SPSS versão 22.0. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 105/2013.

RESULTADOS

A partir da análise dos 800 prontuários, identificaram-se as caraterísticas das vítimas, dos agressores e da violência.

Características das vítimas

Observou-se o predomínio da incidência de casos de violência em crianças e adolescentes do sexo feminino, correspondente a 64,7% do total das notificações. Na análise por faixa etária, observou-se uma maior incidência dos casos de violência nas faixas de 7 a 12 anos com 71,9% dos casos notificados. Quanto à cor da pele, foi nítido o predomínio de crianças e adolescentes brancas agredidas, retratado na Tabela 1.

Tabela 1 Distribuição de frequência das vítimas de violência, segundo as variáveis, sexo, idade, cor da pele, escolaridade e bairro. CREAS, 2009 a maio de 2014. Rio Grande, RS, Brasil. 

No que se refere à escolaridade, considerando as vítimas cujo dado referente à escolaridade foi identificado, 53,9% das crianças e adolescentes cursaram ou estão cursando o ensino fundamental; quanto ao local de moradia das vítimas, constatou-se sua prevalência em bairros periféricos, representando 72% do total.

Características dos agressores

Na análise efetuada (Tabela 2) sobre o perfil dos agressores, em 64% dos casos, o agressor é do sexo masculino e a faixa etária prevalente, situou-se entre 20 e 40 anos (36,2%). Quanto à escolaridade, apresentam diferentes graus de instrução, destacando-se que 22% dos agressores, cujo dado referente à escolaridade foi identificado, cursaram o ensino fundamental incompleto ou completo, caracterizando o predomínio de baixa escolaridade. No entanto, 18 agressores (2,2%), atingiram o nível superior.

Tabela 2 Distribuição de frequência dos agressores segundo sexo, faixa etária, escolaridade e relação com a vítima. CREAS, 2009 a maio de 2014. Rio Grande, RS, Brasil. 

*Referem-se às denúncias realizadas através de Disque 100 e Conselho Tutelar

Quanto a relação da vítima com o agressor, em 30,3% das notificações, a mãe foi a principal agressora, seguida do pai com 27,1% dos casos e do padrasto/madrasta em 17,3%. Cabe destacar que, além desses, em 24,2% dos casos, os autores eram parentes próximos das vítimas (irmãos, avós, tios, cunhados).

Características da violencia

Considerando-se todas as modalidades de violência e o ano, houve um crescimento no número de notificações, principalmente em 2013. Entretanto, cabe ressaltar que, em 2014, até o mês de maio, foram notificados 97 casos de violência envolvendo crianças e adolescentes, representando uma elevação do número em comparação com anos anteriores a 2013. Ainda, pode-se observar que o abuso sexual ocupou o primeiro lugar, seguido pela violência física. Destaca-se que, até mesmo a violência psicológica, tão difícil de detectar, surgiu como terceira modalidade mais notificada. Quando em um mesmo caso são identificadas duas ou mais modalidades, a violência física associada à psicológica é a que apresenta o maior número, representando 40 casos notificados, conforme pode ser visualizado na Tabela 3.

Tabela 3 Distribuição das notificações de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes segundo tipo de violência e ano de incidência. CREAS, 2009 a maio de 2014. Rio Grande, RS, Brasil. 

* O ano de 2014 corresponde até o mês de maio.

DISCUSSÃO

A realidade analisada permite inferir que o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes é significativo em nossa sociedade. Embora o total de casos notificados, no período de cinco anos, seja bastante expressivo (800), esse número possivelmente não representa a real incidência de violência contra crianças e adolescentes no município, uma vez que o número de notificações da violência intrafamiliar ainda é desconhecida no mundo inteiro4)(10)(11.

Nesse sentido, defende-se que a notificação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes constitui-se em uma manifestação de exercício de poder do denunciante, o que pode requerer coragem de enfrentamento e temor de represálias. Para Foucault, o poder é exercido em diferentes e variadas direções, como uma rede que engloba toda a sociedade: ninguém está livre dele. O poder é concebido como uma estratégia, portanto não é um privilégio2.

Em virtude da dificuldade da criança e ou adolescente em revelar a violência sofrida, por sua extrema vulnerabilidade e pelo agressor, geralmente, constituir-se em um familiar a quem amam e querem ser amadas, além de tratar-se de um fenômeno comumente encoberto pela família e sociedade11, somado à fragilidade do sistema, à morosidade institucional e aos trâmites legais, muitas vítimas podem ser revitimizadas, seja pela minimização da gravidade dos fatos ou pela pouca importância dispensada aos casos pelas instituições13.

Apesar de a notificação ser importante no combate à violência, produzindo benefícios para os casos notificados e constituir-se como um instrumento de resistência2 e de controle epidemiológico, a subnotificação da violência ainda é uma realidade em muitos países, pois a notificação é reconhecida culturalmente como um processo de punição, e não como de assistência e auxilio, prejudicando o verdadeiro dimensionamento dos eventos violentos11.

Assim, os resultados aqui apresentados retratam apenas uma aproximação da realidade, já que a decisão de notificar não se restringe às determinações legais, mas, sim, às peculiaridades de cada caso, sendo influenciada por fatores de ordem pessoal, de exercício de liberdade para uma atuação ética, pelas especificidades do caso e pela própria estrutura dos serviços de saúde, que, na sua maioria, são deficientes, constituindo assim um dos principais desafios para a sociedade realizar a notificação.

Este fato tem exigido dos profissionais de saúde, que lidam com o fenômeno, a contribuição para o enfrentamento do problema, uma vez que tem sido uma das demandas mais alarmantes na rotina dos serviços que tem como foco a criança e o adolescente. Dessa forma, os espaços de saúde desempenham papel fundamental na implementação das estratégias necessárias frente a essa problemática, por se apresentarem como locais propícios à revelação e à notificação dos casos.

Destaca-se, assim, a relevância desses profissionais, e dentre esses, especificamente os de enfermagem, na identificação e notificação da violência, seja por sua maior permanência nos ambientes de cuidado, nas instituições de saúde, seja por sua maior aproximação com as vítimas e agressores desde sua inserção nesses ambientes institucionais.

No que se refere ao perfil das vítimas, o sexo feminino e a faixa etária de 7 a 12 anos prevaleceram entre as vítimas desse estudo em 64,7% e 44,1%, respectivamente, demonstrando similitude quando comparados com outras pesquisas14)-(15 que também identificaram a predominância do sexo feminino entre as vítimas, com 64% e 56% e a faixa etária dos oito aos 12 anos correspondendo a 38% e 36% respectivamente. O ensino fundamental incompleto ou completo prevaleceu em 53,9% dos casos, entre as vítimas dessa investigação, corroborando com outros estudos16)-(17. Em relação à cor, a predominância é a branca (82,3%), diferentemente de estudos nacionais18)-(19 e internacionais como no Canadá15),(20, que demonstram associação da vitimização infanto juvenil à cor, seguindo um padrão étnico, destacando-se pardos e negros. Portanto, diante desses achados, e da sua complexidade, ressalta-se a necessidade urgente de romper barreiras culturais e pré-julgamentos de uma possível associação da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes à baixa escolaridade e a negros.

Quanto à caracterização dos agressores, os resultados apresentam semelhanças com o estudo de Oliveira et al21, o qual apresentou maior número de casos de violência em agressores do sexo masculino em 63,7%. Os dados referentes à identificação da faixa etária e do grau de escolaridade apontaram falta de registro em 330 e 536 prontuários, respectivamente, dificultando a análise dessas variáveis. Entretanto, destaca-se que o ensino fundamental e a faixa etária de 20 a 40 anos prevaleceram entre os agressores desse estudo, corroborando com outras pesquisas6),(21.

O estudo identificou a mãe como a principal responsável pelas agressões, seguida do pai, similarmente a estudos nacionais6),(22 e internacionais3),(23, que identificam os pais como principais responsáveis pela violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes.

Este dado corrobora a reflexão de que muitos pais, ainda, consideram o uso da violência como medida disciplinadora e educativa, constituindo-se, possivelmente, na reprodução de práticas adotadas por seus pais e das quais já foram vítimas em sua infância e adolescência. Assim, por não reconhecerem os danos acarretados à saúde dos filhos não apenas físicos, mas na esfera emocional e social, os pais podem adotar o uso da violência como prática educativa, ensinando, também, aos seus filhos, o exercício da violência como uma prática culturalmente aceita, que pode se reproduzir de forma habitual.

O predomínio do abuso sexual, da violência física e psicológica, verificado no presente estudo coincide com outras investigações nacionais21)-(22),(24 e internacional3. Nos Estados Unidos, segundo Inquérito Nacional sobre a Exposição das Crianças à Violência (NatSCEV II), realizado em 2011, foram registradas taxas de vitimização sexual em meninas entre os 14 e 17 anos, em 35% dos casos3.

Na Suíça, um inquérito nacional, de 2009, dirigido a meninas e meninos com idades entre os 15 e os 17 anos, concluiu que 22% das meninas e 8% dos meninos, tinham vivido pelo menos um incidente de violência sexual, envolvendo contato físico3.

Em relação à violência física, como já abordado, pode-se considerar que um número elevado de crianças é submetida a situações de violência física sob a forma de disciplina. Em média, cerca de seis em cada 10 crianças em todo o mundo, entre dois e 14 anos, são regularmente submetidas a castigos físicos (corporais) pelas pessoas que delas cuidam. Em média, cerca de 17% das crianças em 58 países vivem situações de práticas severas. Em 23 países, os castigos físicos severos estão generalizados, afetando mais de uma em cada cinco crianças. No Chade, Egito e Iêmen, mais de 40% das crianças entre 2 e 14 anos de idade sofrem formas rígidas de punição física3.

Os resultados da UNICEF reforçam a ideia de que a violência física culturalmente aceita está presente em todas as classes sociais, sendo ainda percebida como um método eficaz para regular o comportamento dos filhos e seu uso defendido como algo benéfico. Entretanto, o uso da agressão corporal, seja leve ou pesada, deseduca a criança e o adolescente, pois embora seu uso possa interromper um comportamento inadequado, de forma instantânea, a médio e a longo prazo, pode levar a um ciclo vicioso25. Ainda, outro ponto a ser considerado para o grande número de casos de violência física notificados, possivelmente, esteja associado a que a agressão física pode produzir lesões corporais mais facilmente observáveis, favorecendo as denúncias.

A violência psicológica, que mais recentemente tem chamado a atenção dos pesquisadores, aparece como a terceira mais notificada, embora seja considerada de mais difícil identificação em decorrência do seu alto grau de tolerância por parte da nossa sociedade26. Associada à violência física, essa modalidade colabora ainda mais para o aumento das estatísticas, corroborando com estudos que mostram essa realidade21),(26.

A violência psicológica não envolve um ataque corporal, pois é expressa por palavras, gestos, olhares que humilham, desrespeita e promove uma baixa autoestima nas vítimas. No entanto, pode-se confirmar, através dos achados, que a violência física é sempre acompanhada da violência psicológica, uma vez que o ato de agredir física ou sexualmente uma criança provoca-lhe medo e pavor, dificultando, por isso, sua reação27.

Embora a negligência tenha sido a modalidade de violência menos notificada, diferentemente de outros estudos28, como o realizado abordando a violência contra crianças no Canadá que identificou, até, 78,3%, quando associada a outras formas de violência, sua frequência tem aumentado, conforme dados da Tabela 3. Esse achado permite concluir que a violência psicológica e a negligência permeiam praticamente todas as situações de violência contra crianças e adolescentes, porém não se constituem, frequentemente, no principal motivo de notificação, seja por sua dificuldade de detecção, seja pela não produção de lesões visíveis ou, ainda, pela difícil suspeita e confirmação.

CONCLUSÃO

O estudo possibilitou destacar que a violência intrafamiliar é um problema complexo, uma vez que os agressores não são pessoas desconhecidas, mas adultos, pais, mães, membros de famílias que mantêm relações próximas com as crianças e adolescentes. Além disso, concepções arraigadas sobre as práticas de educação dos filhos e a banalização da violência, tratada como um problema de âmbito privado, corroboram tanto para dificultar seu enfrentamento e denúncia, quanto para o entendimento da sua notificação como um exercício necessário de poder e resistência.

O enfrentamento do problema da violência é, também, complexo, requerendo medidas protetivas imediatas, ações de atendimento psicossocial destinadas às crianças e aos adolescentes em situação de violência, bem como daqueles que são identificados como os agressores e, principalmente, ações preventivas por meio de grupos de pais, educadores, profissionais da área da saúde, que possibilitem a troca de experiências e reflexões sobre as relações familiares.

Apesar de o estudo ter focalizado a análise das notificações realizadas, tendo em vista conhecer o perfil das vítimas, dos agressores e das modalidades de violência, cabe salientar a relevante necessidade de prevenção da violência, ou seja, de atuar antes que a criança e ou adolescente se tornem justificativa para um boletim policial, um processo judicial ou notícia de jornal.

Como indicativos para a prática de Enfermagem, os achados aportam subsídios que pode contribuir para a elaboração de estratégias de intervenção e de controle desse agravo, com vistas a evitar que novos casos de violência aconteçam ou mesmo que continuem sendo perpetrados em um círculo vicioso de impunidade e injustiça contra as crianças e adolescentes. Pode, ainda, oferecer informações para a avaliação da situação local, subsidiando a identificação de problemas, a proposição de soluções e a tomada de decisões como, por exemplo, a criação de políticas públicas de saúde direcionadas para o perfil pesquisado.

Assim os resultados desse estudo demonstram a importância do conhecimento do perfil da violência contra crianças e adolescentes para intervenção e elaboração de políticas públicas que promovam a saúde e a qualidade de vida nesta região do Brasil.

Quanto às limitações do estudo, os resultados apresentados dizem respeito somente aos registros de casos denunciados nas instâncias de referência, possivelmente não retratando sua real incidência no município como um todo, considerando o repertório de dificuldades, mundialmente conhecidas, para a identificação e a notificação de cada caso de violação perpetrada em crianças e adolescentes. No entanto, tal limitação não impossibilitou a efetivação desse estudo, cujas características o tornam contributivo para o repensar das práticas profissionais, e para a pesquisa em enfermagem/saúde, já que o perfil de crianças e adolescentes identificadas nos 800 registros apresentam similitudes daquele descrito na literatura, corroborando, assim, para a necessidade da criação de políticas públicas direcionadas para o perfil pesquisado.

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Recebido: 07 de Agosto de 2015; Aceito: 15 de Novembro de 2015

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