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Enfermería Global

versão On-line ISSN 1695-6141

Enferm. glob. vol.19 no.58 Murcia Abr. 2020  Epub 18-Maio-2020

https://dx.doi.org/eglobal.379421 

Originais

Entre o pulsar e o morrer: a vivência de pacientes que esperam o transplante cardíaco

Cynthia de Freitas Melo1  , Nathalia Gabriella da Justa Mota2  , Annaline Luzia da Silva3  , João Lins de Araújo Neto4 

1Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Brasil. cf.melo@yahoo.com.br

2Psicóloga pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Brasil

3Graduanda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Brasil.

4Médico do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC). Brasil.

RESUMO

Introdução

O transplante é a abordagem padrão-ouro no tratamento da insuficiência cardíaca, resultando em maior sobrevida e qualidade de vida. Entretanto, a alta demanda e escassez de doadores geram longas filas, nas quais pacientes vivenciam sentimentos ambíguos de esperança e frustação, em meio a díade vida e morte.

Objetivo

Compreender a vivência na fila de espera do transplante cardíaco a partir da perspectiva do paciente e sua família.

Método

Pesquisa descritiva e exploratória, de abordagem qualitativa, realizada com 12 participantes: seis pacientes que estão em fila de espera para transplante cardíaco e seis familiares. Eles responderam um roteiro de entrevista semiestruturado, que foi avaliado por meio de análise textual no software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multimensionnelles de Textes et de Questionnaires).

Resultados

Evidenciou-se que a descoberta do diagnóstico e da necessidade de transplante é permeada por sentimentos de tristeza e medo, que demandam reorganização da estrutura familiar e uso de diferentes estratégias de enfrentamento. Entre as dificuldades vivenciadas na espera por um órgão contemplam-se o surgimento de intercorrências clínicas, que podem lhe tirar a vida ou impossibilitar a cirurgia, e a constante recusa da família de possíveis doadores.

Conclusão

A fila de espera para transplante cardíaco configura-se como um momento de “corrida contra o tempo pela vida”, permeada por ansiedade, esperança e frustração, na qual o apoio familiar é fundamental. Faz-se fundamental também o investimento em campanhas de doação de órgãos e capacitação de profissionais para fazer uma abordagem correta aos familiares de possíveis doadores, acolhendo o seu luto e esclarecendo suas dúvidas.

Palavras-chave: Transplante de Coração; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Pacientes; Família; Capacitação Profissional

INTRODUÇÃO

Um transplante (ou transplantação) é a transferência de células, tecidos ou órgãos vivos de uma pessoa (o doador) para outra (o receptor) com a finalidade de reestabelecer uma função perdida1. Mais especificamente, o transplante cardíaco é atualmente a abordagem cirúrgica definitiva padrão-ouro no tratamento da insuficiência cardíaca refratária, situação na qual o paciente apresenta grande limitação funcional e elevada mortalidade2 3.

Em muitos países esse procedimento se depara, todavia, com uma dificuldade similar: o número de órgãos à disposição é insuficiente para cobrir a demanda de pacientes que necessitam de um novo coração. As listas de espera crescem em todo o mundo, com quantidade abundante de pessoas necessitadas que sofrem e morrem esperando por um órgão que possa salvar sua vida4. Nesse contexto, no senso comum permanecem dúvidas sobre o processo de transplante: Quem deve receber um órgão? Quem possui prioridade? Quanto tempo leva para receber este órgão? Como se dá a lista de espera?

Em resposta, foram criadas regras de inclusão da lista de espera e critérios de prioridade5 6. No Brasil, é estabelecido que podem receber o órgão pessoas com problemas graves de saúde cuja função do seu órgão ou tecido esteja comprometida, não possa ser restaurada e apresente risco de morte ao paciente, como pessoas com doença cardíaca, para as quais o transplante representa uma terapêutica que melhora a qualidade de vida desses pacientes7. Fazem parte do critério de prioridade pacientes que apresentam insuficiência cardíaca refratária que precisam utilizar drogas vasoativas em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), recomendação de retransplante agudo e precisão de manutenção por coração artificial. Esses critérios obedecem ainda a quesitos como a compatibilidade dos grupos sanguíneos do doador e receptor, o tempo de espera do receptor, a idade e o peso do doador e receptor, e a gravidade do quadro do paciente5 7.

Por outro lado, alguns pacientes são contraindicações absolutas para a realização de transplante cardíaco: pessoas com Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; câncer nos últimos três anos (exceto no colo uterino e de pele); hipertensão pulmonar fixa (resistência vascular pulmonar maior 6-7 unidades; wood não caindo abaixo de 4 u com vasodilatador); incompatibilidade na prova cruzada entre doador e receptor; falta de aderência ao tratamento; diabetes insulino - dependente com lesões significativas de órgãos alvo; doença com expectativa de vida menor que o transplante; doença cérebro vascular ou periférica grave; doença hepática ou renal irreversível (considerar transplante associado); perfil psicológico/psiquiátrico desfavorável, alcoolismo e/ou toxicomania ativos; doença pulmonar severa; e contraindicação à imunossupressão. Isso porque esses fatores de risco podem complicar a eficácia e o progresso do procedimento e a complicações decorrentes de comorbidades8.

Já a inscrição na fila de espera é feita a partir de equipes de referência credenciadas pelo Ministério da Saúde, via Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Quanto à prioridade, esclarece-se que, ao admitir que um paciente em estado extremamente grave tenha prioridade em ser receptor, não se fere o princípio da igualdade, mas sim, é preservado o direito à vida9. Por exemplo, pessoas com até 18 anos têm prioridade para receber órgãos de doadores na mesma faixa etária. Isso se deve à maior expectativa de vida desses pacientes10. Igualmente, os doadores que tenham alguma doença transmissível também podem doar para pacientes que tenham o mesmo vírus. Dessa forma, órgãos de um doador que tenha hepatite C, por exemplo, podem ser transplantados em pessoas que também sejam portadoras da mesma doença11.

Assim, o tempo de espera para receber o órgão varia para cada paciente, visto que a espera na fila não segue exclusivamente uma ordem cronológica onde o primeiro inscrito será, necessariamente, o primeiro a recebê-lo, mas sim, seguindo os critérios e regras estabelecidos, dependendo ainda do órgão ou tecido doado e do Estado onde o receptor está. Para facilitar a organização desse processo e agilidade de recepção da doação, já na lista de espera, os receptores são separados por órgãos, tipos sanguíneos e outras especificações técnicas. Esta lista única apresenta uma ordem cronológica de inscrição, sendo os receptores selecionados nessa ordem, mas de acordo com esses critérios especificados. Para assegurar a seriedade e a transparência do processo, os receptores que estão na fila de espera podem acompanhar sua posição na lista por meio do Portal do Ministério da Saúde12.

Trata-se de um processo complexo, cheio de regras, que invoca a constante tomada de decisão por parte dos profissionais que compõem a equipe interdisciplinar de transplante13. Decisões geralmente realizadas de forma imediata, respaldadas pelos critérios técnicos citados, mas também permeadas de subjetividade e, que refletem diretamente sobre aspectos psíquicos desses profissionais. Lembra-se, pois, que a maioria dos pacientes que está na fila do transplante é alguém que “correm contra a morte” e que têm o transplante como uma única alternativa de vida. Os profissionais sabem, portanto, que ao decidir pela inclusão ou exclusão do paciente na lista de espera, o seu posicionamento tem significado de vida ou de morte14.

No outro extremo desse processo, os pacientes desvelam no caminho percorrido para ingressar na lista e na espera nessa fila, em meio a distintos sentimentos. No preparo pré-transplante, realizado por meio de exames de rotina e atendimento da equipe interdisciplinar, ocorre a torcida para que tudo seja resolvido o mais rápido possível e também para que não haja contraindicação para o transplante15. Já após a entrada na fila, a espera é marcada pela idealização de uma nova realidade, com expectativa de liberdade e esperança de que a qualquer momento possa ser agraciado com um telefonema informando que foi identificado um doador compatível. Em contrapartida, com o passar dos meses e anos, surge a decepção, por não receberem a ligação com a notícia sobre um doador, fazendo a espera por um órgão compatível parecer infrutífera. Além disso, durante a espera na fila, alguns pacientes vivenciam o chamado para realizar o transplante e, após um dia de preparação e espera, esse não pode ser realizado por algum motivo - quadro clínico do paciente, ou ainda a incompatibilidade ou a negação da família do doador, gerando sentimentos de decepção, frustração ou renovação de esperança16 17. Momentos que desafiam o paciente, demandam reorganização da estrutura familiar e uso de diferentes estratégias de enfrentamento18.

Isso ocorre porque para esses pacientes e seus familiares o transplante de coração não é somente uma simples cirurgia que visa à qualidade de vida de pessoas portadoras de insuficiência cardíaca (IC), mas sim, um procedimento que tem sinônimo de vida e que requer muitos ajustes, pois a preparação para o transplante e os cuidados necessários no pós-operatório são complexos e repercutem sobre a vida do paciente e de seus familiares20 21. O receptor se vê frente a alterações em seus hábitos e em seu estilo de vida, nas atividades do seu cotidiano, no trabalho, na vida social e familiar. Em vista disso, o transplante não é um ato individual, pois, qualquer disfunção que afeta algum membro da família, irá, em algum aspecto, afetar frequentemente toda a família. Desse modo, é de extrema importância o apoio e a colaboração dos familiares antes, durante e após o processo de transplante, pois o êxito do transplante está diretamente relacionado às condições ambientais e emocionais adequadas no contexto familiar. Assim, o processo de transplante é representado pela tríade: pessoa transplantada - família - equipe multiprofissional22 23; envolvendo mais dois atores ocultos, porém essenciais - o doador e sua família, que decide sobre a doação24 25.

Diante do exposto, a presente pesquisa objetivou compreender a vivência na fila de espera do transplante cardíaco para o paciente e sua família. Reconhece-se, pois, que o conhecimento dessas vivências pode auxiliar aos gestores, no acompanhamento das dificuldades existentes na fila de transplante, e à equipe interdisciplinar, na assistência voltada às reais necessidades de quem está à espera por um órgão compatível.

MATERIAL E MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa do tipo exploratória e descritiva, de abordagem qualitativa. A partir de um critério de saturação, contou-se com a participação de 12 participantes - seis pacientes em fila de espera e seis familiares (ver Tabela 1):

Tabela 1. Caracterização dos participantes (n = 12) 

Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado contendo as seguintes categorias: (1) a vivência do paciente em lista de espera por um transplante cardíaco; e (2) a repercussão da doença sobre os familiares. Considerando os aspectos éticos referentes a pesquisas envolvendo seres humanos, a pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa, por meio do parecer Nº 1.666.751. Foram contatados participantes previamente conhecidos pelo pesquisador, e a partir desses, foram indicados novos participantes, utilizando a técnica da bola-de-neve26. As entrevistas foram realizadas pessoalmente, de forma individual e com auxílio de gravador, em local escolhido pelos participantes, em concordância com os padrões éticos estabelecidos pelas Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde.

As análises dos dados ocorreram em três etapas, utilizando-se o programa IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Foram realizadas análises lexicográficas clássicas para verificação de estatística de quantidade de evocações e formas. Obteve-se a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), para o reconhecimento do dendograma com as classes que surgiram. Emitiu-se a Nuvem de Palavras, a fim de agrupar as palavras em função da sua frequência27.

RESULTADOS

O corpusgeral foi constituído por 596 segmentos de texto (ST), com aproveitamento de 442 STs (74,16%). Configuraram-se 20.477 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 2.494 palavras distintas e 1.674 com uma única ocorrência.

O corpus total em análise organizou-se em três classes, divididas em duas ramificações (A e B). O subcorpus A, “A doação de órgãos, o diagnóstico e o papel da família”, é composto pela Classe 1 - “A aceitação da descoberta do diagnóstico e da necessidade de transplante cardíaco e as estratégias de enfrentamento durante a fila de espera”, com 111 ST (228,98%); e Classe 3 “A importância e a conscientização da doação de órgãos para salvar vidas e o cuidado familiar”, com 123 ST (32,11%). O subcorpus B, “A vivência na fila de transplante e a necessidade de assistência multidisciplinar para o paciente e sua família”, contém os discursos correspondentes à Classe 2 “Intercorrências clínicas e atenção integral ao paciente na fila de transplante cardíaco”, com 149 ST (38,09%), como pode ser visto na Figura 1.

Figura 1. Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente 

A Classe 1 - “A aceitação da descoberta do diagnóstico e da necessidade de transplante cardíaco e as estratégias de enfrentamento durante a fila de espera” foi constituída por 28,98% (f= 111 ST) do corpus total analisado. Apresenta palavras como “Força” (x2> 35,54), “Fé” (x2> 22,58), “Tentar” (x2> 14,92), “Chorar” (x2> 13,59), “Ajudar” (x2> 13,59), “Deus” (x2> 10,41), “Aceitar” (x2> 9,91) e “Esperança” (x2> 9,91).

São apresentados os discursos dos pacientes sobre a descoberta do diagnóstico do problema cardíaco e a forma como reagiram à notícia sobre a necessidade do transplante cardíaco e as estratégias de enfrentamento. O discurso é marcado pela tristeza, medo, ansiedade e espiritualidade.

Logo quando eu soube do transplante, fiquei muito abatida no começo. No dia que ela falou, eu juro pra ti, abriu um buraco assim. Aí eu fui pedindo força a Deus, fui tentando me reestruturar por ela, porque ela não tinha desistido. Então, eu tinha que ter força pra tá do lado dela. E aí eu fui levando e eu fui passando a aceitar melhor (P1).

Verificou-se que pacientes e familiares utilizam estratégias de enfrentamento para lidarem com as dificuldades que surgem na fila de espera, que contribuem para a manutenção do estado físico, psicológico e social estável. Se destacam na fala de todos os participantes a espiritualidade; emergindo também a busca de conhecimento e informação sobre a doença, a aceitação, o apoio da família ao paciente e a necessidade dos familiares de não se permitir chorar e sofrer na frente do paciente.

Ah meu Deus será que hoje vai dar certo? Já fui chamada 7 vezes, será que hoje vai ser? Mas ai eu lembro logo: ‘Tá nas mãos de Deus. Deus sabe todas as coisas. Eu entrego logo. Se for pra ser, que seja bem-vindo (P7).

Tinha vez que eu me jogava no chão e dizia: Senhor, como é que meu filho tá nessa situação? Não melhora, ele não melhora. Ele foi desenganado, mas o milagre é de Deus. Se não tiver uma base, uma estrutura de uma família que esteja ali dando um suporte, dando força: ‘Eu tô aqui. A gente vai vencer'. A esperança, a fé, também é muito importante (P3).

A Classe 2 - “Intercorrências clínicas e atenção integral ao paciente na fila de transplante cardíaco” representa 38,09% (f= 149 ST) do corpus total analisado. Essa classe é composta por palavras como “Exame” (x2> 40,57), “Consulta” (x219,46), “Internação” (x2> 14,47), “Acompanhar” (x2> 13,49), “Hospital” (x2> 11,71), “Cirurgia” (χ2> 11,09) e Psiquiatra” (χ2> 9,57).

Na análise realizada, verificaram-se aspectos que se referem às vivências clínicas dos pacientes em seu período antes da inscrição e durante a lista de espera para o transplante cardíaco. São ressaltados os internamentos constantes, o tratamento medicamentoso, psicológico/psiquiátrico e as complicações decorrentes da doença e da necessidade de um transplante. Relatam ainda que quando esses problemas de saúde ocorrem podem interferir e adiar a recepção de um novo coração, ocasionando mais dor, angústia e prolongando a espera.

Marcou a consulta na quarta feira, quando foi na quarta feira eu já tava mesmo nas últimas. Ai o doutor me internou, eu fiquei internada do dia 24 de Agosto até dia 19 de Setembro (P5).

Quando eu soube que eu tinha que fazer um transplante foi na minha última internação. Foram nove internações. Em outubro foi a última, foi quando eu saí de lá dessa internação, que eu me internei no hospital do coração mesmo (P7).

Para evitar essas intercorrências e mitigar as chances de o paciente não estar apto ao transplante quando aparecem doadores, faz-se necessário o cuidado integral do paciente, por meio de equipe interdisciplinar de profissionais - médicos, enfermeiros, psicólogos e nutricionistas.

Só tenho a agradecer, agradecer os médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas, toda a equipe, é muito bom os atendimentos. Só tenho que agradecer a Deus e a todos. Me dão força também. Os psicólogos conversam comigo, senta, explica. Tenho que agradecer a eles (P5).

A Classe 3 - “A importância e a conscientização da doação de órgãos para salvar vidas e o cuidado familiar” representa 32,11% (f= 123 ST) do corpus total analisado. É composta por palavras como “Morrer” (x2> 24,89), “Vida” (x2> 17,61), “Cardíaco” (x2> 12,88), “Querer” (x2> 12,11), “Depender” (x2> 10,71), “Cuidar” (x2> 9,04), “Doação” (x2> 8,81) e “Família” (x2> 6,69).

Nessa classe, os participantes relatam sobre a importância da conscientização das pessoas acerca da relevância da doação de órgãos para os pacientes que estão em fila de transplante cardíaco. Aqui se destaca a necessidade de autorização da família do potencial doador e o sofrimento do receptor quando ocorre a negação da doação e/ou alguma alteração encontrada nos exames que impede a realização do transplante.

É importante às pessoas terem consciência de quanto é importante uma doação, não só aquelas pessoas que estão lá na fila do hospital, porque um dia qualquer pessoa pode vir a precisar. São sete vidas que podem ser salvas com uma doação [...] É a família que tem que autorizar, por mais que a pessoa seja doador, se a família negar, não doa os órgãos. O importante é ter esse diálogo, dizer pra família à importância da doação (P2).

A recusa da família do potencial doador é um aspecto bastante impactante na vida dos receptores em espera por um transplante cardíaco para viver. Estes possuem uma grande expectativa, na espera de receberem uma ligação informando uma generosa ação de doação por parte dos familiares que perderam um membro. Quando ocorre a ligação, eles são chamados para o hospital para fazerem a bateria de exames; há toda uma preparação durante o dia inteiro; há toda uma expectativa até saber se de fato a família irá aceitar ou não; e muitas vezes, a família nega. A exemplo, dos doze participantes entrevistados, 11 tiveram a experiência de receber a ligação sobre um possível doador, ir para o hospital, passar o dia se preparando para a cirurgia e, ao final receber a notícia de que a família não aceitou doar o coração.

Corre pro hospital, apareceu um potencial! Aí vem aquela aflição. Você tem aquele momento de esperar. Aí no final a família não doa. Aí volta tudo pra estaca zero! Tudo isso é muito sofrimento! Você vai naquela expectativa, aquele medo, aquela ansiedade! Tudo isso mexe muito com a pessoa, o psicológico dela (P4).

A família não autorizou, isso já no final do dia, depois que você passa o dia todinho ali esperando! Aí depila o corpo todinho! Não pode ficar um pelo... e ai você passa por tudo aquilo, ai quando chega no final do dia: ‘Oh, a família não autorizou'. É um baque muito grande! (P2).

Nesta classe, também emerge a importância da família, os cuidados e adaptações na estrutura da casa e na dinâmica familiar para acolher esse paciente doente. Aqui se destaca a estrutura familiar, a presença de todos os membros da família (mãe, pai, avó e amigos), atitude positiva, a adaptação à rotina do paciente, mudanças na rotina familiar, pesquisas sobre a doença do paciente, e colaboração para seguir indicações do tratamento - medicações, higiene e alimentação.

A gente tem que se adaptar à rotina da criança e não ela a da gente. O tradicional é a criança que se adapta a dos pais, mas a gente se adapta à rotina dela. Teve que comprar ar condicionado. Foi muita coisa que a gente teve que adaptar, toda uma mudança. Transporte, a gente teve que comprar um carro pra caso apareça um coração a gente não tá dependendo de ninguém, bala pra Messejana! E qualquer outra emergência também (P1).

Por fim, por meio da Nuvem de palavras verificou-se que as palavras mais evocadas foram: “Coração”, “Dia”, “Transplante”, “Querer”, “Dar”, “Vez”, “Internar e “Filho”, como pode ser visto na Figura 2. Confirma os discursos apresentados, refletindo que o “transplante” do “coração” é marcado por uma longa espera pela sua “vez”, do seu “dia”, no qual alguém vai lhe “dar” aquele órgão. Até lá, vive-se as intercorrências clínicas e diversos chamados, de possíveis doadores, em meio a “internações” e “exames”. Um processo que demanda reestruturação e apoio da “família”.

Figura 2. Nuvem de palavras 

DISCUSSÃO

Receber um diagnóstico não esperado causa forte impacto na vida dos indivíduos e pode alterar fortemente a dinâmica da família. A necessidade de transplante de órgão obriga a percepção da finitude da vida, sendo frequente a circulação de pensamentos fantasiosos e sentimentos negativos entre os pacientes acerca da doença e seu respectivo tratamento13.

Para lidar com isso, as estratégias de enfrentamento funcionam como ações singulares de cada sujeito, que encontram alternativas próprias de lidar com o problema que, embora não modifique a realidade vivenciada, altera a forma pela qual a pessoa passa por esse processo15, destacando-se a espiritualidade16 17 21. Isso porque o estado psicológico e emocional em que o paciente se encontra interfere diretamente na maneira como ele irá passar pela fila de espera. Igualmente, os aspectos emocionais da família podem fazer bem, ou não, ao paciente, pois, para esses, a família é geralmente sinônimo de força17 19.

Essas estratégias ajudam também a lidar com as intercorrências clínicas que podem ocorrer em pacientes cardíacos que esperam para fazer cirurgia, como por exemplo, complicações respiratórias que findam na necessidade de cuidados intensivos para o paciente, como o suporte ventilatório por tempo prolongado. Aspectos que, além de dolorosos, podem gerar desesperança, pois prolongam o tempo de permanência do paciente na fila de espera, uma vez que, ao aparecer um potencial doador, ele só estará apto à realização do transplante se estiver em condições saudáveis16 18. Além disso, o prolongamento do tempo na fila pode ser um fator considerável em causas de mortalidade e morbidade20.

Esses problemas podem ser prevenidos por meio de cuidado de equipe interdisciplinar16 18 20. O médico e o enfermeiro poderão acompanhar a causa principal do problema; o nutricionista orientará sobre a restrita dieta e alimentação de pacientes na espera para transplante; e o psicólogo poderá oferecer um espaço de fala e escuta ao paciente, auxiliando-o na adaptação à essa nova condição que se apresenta e até mesmo como um meio de sublimação de todos esses sentimentos que permeiam o processo de espera na fila para transplante cardíaco6 14.

Os participantes retratam ainda a falta de programas voltados para facilitar a compreensão dos indivíduos acerca da importância da doação de órgãos, fortalecendo os mitos, dúvidas e preconceitos em relação à temática25. Pode-se deduzir que, devido essa falta de repasse de informação e divulgação, o número de doadores seja tão inferior ao número de pacientes que aguardam a doação na fila de espera, o que gera grande carga de sentimentos e emoções em quem aguarda para ter de volta, a vida1.

Por fim, é retratada a atuação determinante da rede familiar no cuidado à saúde do paciente em lista de espera para transplante cardíaco, em auxiliar as variadas mudanças adaptativas na rotina e nos hábitos cotidianos de todos os envolvidos. A literatura contempla que o ideal é que nessa fase do aguardo para ser transplantado, a família afete o paciente de forma benéfica e positiva. Aspectos como a autoestima, atividades de lazer possíveis de se realizar com o membro da família para tirar o foco da espera pelo coração e cuidados com a saúde são fundamentais e trazem benefícios para a saúde do paciente, pois estimula o sujeito e o prepara para dar continuidade à vida1 7 19 21 24

CONCLUSÃO

Pode-se constatar que pacientes em fila de espera para o transplante cardíaco, e seus familiares, são perpassados por alterações em seus hábitos, em seus estilos de vida, nas atividades do seu cotidiano, no trabalho e na vida social, levando consigo uma grande carga emocional que permeia todo o percurso do processo de espera. Esse processo não é individual ao paciente, pois qualquer disfunção que afeta algum membro da família, irá, em algum aspecto, afetar toda a família. Igualmente, o êxito do transplante também está relacionado com as condições emocionais adequadas no contexto familiar. Para lidar com essas dificuldades, os envolvidos utilizam-se de diferentes estratégias de enfrentamento: a espiritualidade, fé, esperança e força para conseguirem passar pela espera e sustentar seus entes.

Pode-se concluir ainda que há a necessidade de realização de campanhas que ofereçam informação e diálogo para a população sobre a importância da doação de órgãos, pois ainda há mitos, dúvidas e preconceitos. Sugere-se, portanto, um investimento em prol da informação. As pessoas precisam saber que as listas de espera por órgão crescem com quantidade abundante de pessoas necessitadas que sofrem, ficam internadas e morrem em fila esperando por um órgão que possa salvar sua vida. As pessoas precisam saber sobre o sofrimento daquele que recebe uma ligação sobre um possível doador, corre para o hospital, passa um dia inteiro de preparação, e no final do dia é informado que a família do doador não autorizou a doação. Igualmente, há necessidade de pensar sobre a abordagem à família do possível doador, para apoiá-la antes sobre a aceitação da morte do paciente, para posteriormente auxiliá-la sobre a tomada de decisão sobre a doação de órgão, tirando suas possíveis dúvidas.

Reconhece-se como limitação da presente pesquisa a coleta de dados transversal, sem acompanhar as variações de humor e quadro clínico do paciente do diagnóstico ao transplante e por não ter abordado uma quantidade maior de sujeitos a fim de realizar comparações entre diferentes características sociodemográficas. Afirma-se, no entanto, que, por meio de abordagem qualitativa, objetivou-se aqui aprofundar-se sobre o tema, e sobre a vivência de cada realidade, reconhecendo a experiência dos sujeitos, suas angústias, esperanças, sofrimento e frustrações. Como forma de enriquecer a literatura sobre o tema, sugere-se a realização de mais estudos sobre o tema, com outras abordagens metodológicas, inclusive longitudinais e de larga escala, visto que a produção literária acerca desta temática ainda é escassa. Defende-se, pois, que ao descortinar a realidade vivenciada por estes pacientes, é possível gerar conscientização, e mitigar o problema das filas de espera para transplante cardíaco.

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Recebido: 21 de Maio de 2019; Aceito: 09 de Agosto de 2019

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