SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número38La donación anónima de gametos para reproducción humana asistida en España: problemas y retosUm outro eu: o caso das quimeras humanas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Em processo de indexaçãoCitado por Google
  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO
  • Em processo de indexaçãoSimilares em Google

Compartilhar


Revista de Bioética y Derecho

versão On-line ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  no.38 Barcelona  2016

https://dx.doi.org/10.1344/rbd2016.38.17047 

ARTÍCULO

 

Cultura e ética na formação familiar: a poligamia e a sua repressão no ocidente

Culture and ethics in family formation: polygamy and its repression in the West

 

 

Ricardo Oliveira Rotondano

Advogado. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Gama Filho. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: oliveirarotondano@uol.com.br

 

 


RESUMO

A cultura cristã encontra-se edificada como modelo cultural predominante no ocidente. Tal assertiva produz efeitos nos mais variados campos sociais -como, por exemplo, na família. A família ocidental segue eminentemente o modelo monogâmico de vida, como típica entidade cristã. Entretanto, parcela significativa dos países ocidentais acaba cerceando as demais formas de entidade familiar, como ocorre em relação ao modelo poligâmico. Deve-se combater qualquer modalidade de supressão de culturas minoritárias, em respeito ao princípio da liberdade e aos preceitos de convivência plural dos Estados democráticos.

Palavras-chave: cultura; democracia; ética; família; poligamia.


ABSTRACT

Christian culture is built as the predominant cultural model in the west. This assertion take effect in various social fields -for example, in the family. The western family eminently follows the model of monogamous life, as typical christian entity. However, a significant portion of western countries just restricting other forms of family unit, as in relation to polygamous model. One should fight any form of suppression of minority cultures, in respect to the principle of freedom and plural coexistence principles of democratic states.

Keywords: culture; democracy; ethic; family; poligamy.


 

1. Introdução

O surgimento dos fatores culturais de uma sociedade ocorre dentro de um processo em que há influência de diversos elementos. Tais fatores, ao serem disseminados socialmente, impõem-se como um padrão de cultura específico da comunidade na qual foi adotada, servindo como parâmetro de civilidade e coesão entre os seus membros. O padrão cultural estabelecido passa a estar vinculado aos indivíduos como o modo correto de vida a ser seguido por eles, sendo praticado e mesmo exigido por seus próprios membros ante os demais.

Entre eles, a religião se constitui como um dos principais fatores de modelagem da mentalidade humana, direcionando o exercício apreensão do mundo físico pelo homem segundo determinados padrões morais e éticos. Assim sendo, o indivíduo passa a interpretar as práticas em suas relações sociais cotidianas segundo classificações de correção vinculadas ao modelo pré- estabelecido pela crença religiosa adotada. Adota, em consequência, um estilo de vida vinculado à sua consciência moral religiosa.

Na parcela ocidental do planeta, impera como padrão religioso o culto aos preceitos cristãos -seja na sua vertente católica, seja em sua modalidade evangélica. Com o Brasil, não é diferente: cerca de 85% da população brasileira atual declarou ser adepta de religiões cristãs. Como elemento cultural de grande força persuasiva, a religião cristã exerce a função de instituto modelador da visão de mundo do povo brasileiro, influenciando consequentemente a adoção de práticas ligadas à sua religião -e, consequentemente, a identificar como errôneas quaisquer atitudes que contrariem frontalmente o modo de vida cultural cristão.

Uma série de paradigmas cultural-religiosos passa, assim, a ostentar caráter obrigatório para toda a população, quando são adotados por uma parcela majoritária de determinado povo. Entre os inúmeros exemplos que poderiam ser destacados, o presente estudo dá ênfase ao caráter monogâmico obrigatório da família brasileira. Para entender o panorama em destaque, é preciso analisar com mais profundidade as bases teóricas acerca da força que a religião detém no meio social como elemento formador da cultura. Ademais, verificar-se-á se é correta a imposição social de determinado padrão cultural para toda a população -inclusive para as minorias, que tenham modos de vida diferenciados do modo de vida amplamente majoritário.

 

2. Cultura e ética na formação humana

Por certo, a carga genética do ser humano -recebida como consequente herança dos seus genitores- carrega uma série de disposições biológicas que irão influenciar a formação do indivíduo. Não obstante a crença acerca desse processo ser comumente disseminada como algo poderoso e definitivo, seguindo o ditado popular "tal pai, tal filho", a estrutura biogenética de cada sujeito reflete apenas uma pequena parcela do que este virá a se tornar.

A bagagem genética, como fator intrínseco do ser humano, fornece apenas os caracteres básicos da formação humana. Em geral, contém as disposições físicas relativas ao processo evolutivo do indivíduo. A sua formação intelectiva -que compõe, para as ciências sociais, o aspecto mais importante da formação do sujeito- é claramente influenciada de modo majoritário pelas fontes de informação externas ao ser humano.1

Estas fontes externas são os elementos culturais. A estrutura social que compõe um modo de vida específico -imbuído de racionalidades e símbolos ímpares- atua inconscientemente na mentalidade humana, delineando a sua visão de mundo em determinado sentido. É desse modo que, desde o nascimento, as crianças têm a sua racionalidade moldada pelos aspectos culturais do local e do povo no qual vivem e mantém constante contato.2

Há, aqui, uma clara relação de complementaridade. A carga genética humana claramente não é capaz de definir com rigor os aspectos intelectivos do sujeito. Esse espaço vazio é ocupado pela cultura, atuando de modo a estabelecer a adequação do indivíduo ao meio em que vive, adotando práticas de determinado modo de vida a partir da sua vinculação não intencional à cultura na qual a sua mentalidade foi moldada.3

O viés cultural se traduz em uma série de modalidades diferentes que atuam na domesticação do indivíduo para a sua adequação ao sistema de símbolos de determinado modo de vida. A religião pode estabelecer o respeito às normas sagradas por intermédio do temor a entidades que impõem sanções em vida, ou por meio de uma suposta recompensa após a morte. A economia pode estipular um modo de vida individualista e consumista, ou estabelecer práticas sociais solidárias e distributivas. Aquele que convive sob cada um destes diferentes elementos tende naturalmente a seguir as práticas sociais estabelecidas em sua comunidade.

É justamente a partir da grande contribuição da simbologia cultural para a formação da mentalidade humana que influencia o campo valorativo do indivíduo. Os preceitos éticos e morais deste são elaborados mediante a visão de mundo cultural arraigada em sua vivência. A experiência cultural atua de modo tão profundo na formação da identidade coletiva e individual que o sujeito que somente aquele modo de vida faz sentido para seus membros.

Há a fixação de um conjunto dogmático acerca dos valores morais que perpassam determinado panorama cultural no juízo de validade do sujeito acerca das suas ações e das práticas de todos os demais indivíduos. O sujeito passa a pautar suas ações e a realizar um julgamento de valor acerca dos atos de outrem a partir das características que este internalizou do modo de vida coletivo ao qual está integrado. Identifica-se aqui a inerente ligação entre ética e cultura, em uma relação de simbiose atestada a partir da análise intelectiva humana.4

Como elemento modelador da visão de mundo do homem, a cultura influencia toda a construção social dos indivíduos. Não somente as ações humanas, mas igualmente as suas instituições sociais são criadas segundo critérios culturais. Dessa forma, a instituição familiar -como uma inequívoca instituição social- não está livre da intervenção cultural. Este é o tema ao qual se presta o próximo tópico, no qual analisaremos a força que detém a cultura em estabelecer certo parâmetro social de família a ser seguido.

 

3. A formação cultural familiar

De modo inequívoco, os fatores culturais encontram estreita relação com o plano familiar, como aponta Paulo Antonio de Menezes Albuquerque.5 Aduz o autor que seria um equívoco desprezar a intensa correlação existente entre o aspecto cultural e o familiar, tendo em vista que "além de manter tradições e valores vigentes e de responder pela reprodução física de seus membros, a família atua em relação próxima com o modo de organização da sociedade, refletindo-a em sua própria visão de mundo".

É justamente desse modo que ocorreu a edificação dos preceitos monogâmicos em território ocidental. Ao ser disseminada culturalmente, geração após geração, a monogamia tornou-se um dogma enraizado na população dos países ocidentais. Não poderia ser diferente: após milhares de anos sob o manto da família monogâmica, estabeleceu-se o senso comum de que os homens e as mulheres somente podem se amar sob a monogamia.

Está arraigado o entendimento de que as relações afetivas precisam de uma sagração social qualquer e que as crianças precisam das figuras materna e paterna, tais como hoje conhecemos Assim sendo, "amar se tornou sinônimo de constituir família -e constituir família se tornou sinônimo de monogamia".6 A edificação dos preceitos culturais religiosos cristãos na sociedade ocidental provocou a sua consequente obrigatoriedade social, exigida pelos próprios indivíduos.

A ascensão monogâmica como modelo familiar predominante no mundo guarda estreita relação com dois principais fatores histórico-globais. O primeiro deles se refere à necessidade socioeconômica de acumulação de propriedade, tendo em vista que o modelo familiar anterior não correspondia a este objetivo.7 A partir do instante em que irromperam na sociedade elementos concernentes à uma estrutura individualista e patrimonial, exigiu-se a mudança do paradigma familiar anterior.

Isto porque, anteriormente, não havia o controle relacional afetivo das mulheres -e consequentemente, havia dificuldades na identificação da prole com exatidão. A imposição de um único parceiro sexual foi o instrumento utilizado pelas sociedades em transição para controlar a sexualidade feminina, de modo a visualizar com alto grau de certeza a ligação de parentesco entre os filhos- futuros herdeiros do patrimônio -e os seus respectivos pais- que deixariam determinada herança.

Mais adiante, inferimos que a modalidade monogâmica na parte ocidental do planeta teve a sua disseminação e edificação estimulada pelos preceitos cristãos. Não obstante a sociedade ter adotado o controle da fecundidade feminina, tal padrão estabeleceu-se somente em relação à mulher -e não ao homem, que em diversas culturas poderia ter mais de uma esposa. A poligamia ainda ocupava espaço dentro da sociedade, unicamente na modalidade da poliginia.

A proliferação de preceitos cristãos entre a população ocidental ocorreu apesar da intensa repressão institucional dos governos romanos da época. Preceitos estes que incluíam o modo de vida estritamente monogâmico, com a obrigatoriedade da unicidade de parceiros tanto para o homem quanto para a mulher.8 A adoção do cristianismo como religião oficial do vasto império romano foi o ápice do histórico cristão no ocidente -que, a partir daí, serviu como parâmetro religioso para os futuros Estados nacionais europeus e consequentemente para as suas colônias na América e na África.9

Ante esta breve explanação, podemos delinear os aspectos histórico-culturais que levaram à adoção do modelo monogâmico no ocidente. Mais do que isso, há não só a partilha majoritária de uma cultura monogâmica comum; existe o cerceamento social e institucional, em muitos dos Estados ocidentais, para o estabelecimento da entidade familiar poligâmica. O próximo capítulo se destina à análise acerca desta imposição cultural para a minoria que pretenda optar por um modelo familiar diverso.

 

4. A repressão à poligamia no ocidente

Curioso é notar que tal cerceamento cultural advém da parcela ocidental do globo, que constantemente discursa acerca da essencialidade dos esforços mundiais para a implementação de valores democráticos e liberais. Não é à toa que o discurso dos direitos humanos -uma construção europeia voltada, em verdade, para a consecução das necessidades próprias do seu povo10- assumem a roupagem de linguagem universal garantidora da liberdade humana.

É certo que muitas críticas destinadas ao trato de culturas diferenciadas em país orientais nas quais vigora uma maior influência religiosa têm fundamento. Uma série de práticas sociais que somente dizem respeito à esfera privada do sujeito são constantemente discriminadas e imputadas, por vezes, como crimes nos países com governos mais radicais. A prática da homossexualidade é uma delas, que vem enfrentando sérias represálias aos seus praticantes em nações por todo o mundo, em especial nas quais vigoram instituições islâmicas.11

Entretanto, muitos países ocidentais como o Brasil, adeptos de uma cultura democrática pluralista e respeitosa dos direitos humanos fundamentais, ainda estão vinculados a uma herança histórico-cultural dogmática e retrógrada. No Brasil, vigoram dispositivos legais que impedem a constituição de entidade familiar poligâmica, sendo esta claramente uma imposição cultural cristã sobre as demais modalidades de experiência cultural.

Ilustramos a referida assertiva a partir da análise do Código Civil brasileiro -que goza de claros preceitos religiosos cristãos em toda a sua extensão. O art. 1.521 do referido instituto jurídico deixa claro que "Não podem casar: (...) VI - as pessoas casadas", sendo este o denominado impedimento civil ao casamento poligâmico. Dessa forma, somente será legalmente válido e legítimo a união civil adquirida mediante o respeito à matriz familiar monogâmica.

Como se tal referência legislativa não fosse o suficiente para atestar a manutenção de dispositivos preconceituosos no ordenamento brasileiro, há ainda a proibição da entidade familiar poligâmica no âmbito penal. O Código Penal brasileiro estipula pena de reclusão, de dois a seis anos, para o fato de "Contrair alguém, sendo casado, novo casamento". Aquele que não é casado, mas têm ciência de estar se casando com alguém que já é casado, também será punido, com reclusão ou detenção, de um a três anos.

Em que medida as duas práticas se distinguem? Existe repressão cultural tanto em países orientais referentes a práticas alheias à sua cultura religiosa predominante como nos países ocidentais. Se inferirmos o fato de que o estabelecimento de uma cultura monogâmica obrigatória nos países ocidentais decorreu da força institucional, social e cultural das religiões cristãs, concluiremos que a diferença entre tais práticas discriminatórias é mínima ou inexistente.

Não se pode obrigar os cidadãos a adotar práticas culturais de determinada cultura, ainda que tal prática seja recorrente e pertença à grande maioria daquela população. A liberdade de escolha do modo de vida que se pretende adotar e seguir pertence à esfera privada do cidadão: nem a sociedade nem o Estado podem interferir nesta seara. Sobre esta assertiva, cabe maiores reflexões, que realizaremos no capítulo a seguir.

 

5. Pluralismo e diversidade cultural: o direito à família poligâmica

A adoção de certos preceitos culturais por determinada comunidade não pode se impor sobre o desejo daqueles que não optarem por seguir tais regramentos sociais. Deve-se respeitar o direito de cada um adotar o modo de vida que melhor lhe aprouver, sem que haja a obrigatoriedade da adoção de quaisquer preceitos compartilhados pela comunidade. Em aspectos culturais, o valor liberdade goza de especial relevância, desobstruindo-se as barreiras que se configurem como impedimentos para que o sujeito possa expressar seus valores culturais.

A convivência social a partir do diferente convívio de ideias que perpassa a diversidade cultural inerente ao Estado democrático deve primar pela tolerância e respeito mútuos. O respeito à diversidade e à pluralidade de modos de vida é fator que enrique o espaço em comum, impedindo qualquer tentativa de sobrepor uma forma de vivência à outra. Nesse sentido, confere- se constantemente a opção para que o sujeito adote o modo de vida que desejar, sem que haja o estabelecimento de uma monocultura alienante e opressora pela comunidade e pelo Estado.12

É este o cerne da democracia: manter vivo o debate ideológico proveniente de um espaço cultural múltiplo, onde as divergências histórico-sociais estejam sempre em diálogo.13 O constante debate intelectivo entre os diferentes modos de vida serve para que, ante a convivência com aspectos culturais diferentes, o indivíduo possa refletir sobre suas práticas internalizadas, tendo a oportunidade de questionar os conceitos pré-estabelecidos e modificá-los, sempre que desejar.

Dessa forma, a inexistência de modelos culturais poligâmicos no território ocidental somente contribui para a continuidade da obrigatoriedade social e legal da família monogâmica. É preciso investir e estimular a construção de famílias plurais e diversificadas, para que se possa provocar uma reflexão profícua acerca das bases culturais que revestem a família monogâmica contemporânea. Mais do que isso, almeja-se conceder a efetiva possibilidade de adoção de preceitos familiares não cristãos para a população em geral.

O panorama em destaque conduz à discussão acerca dos direitos que as minorias detêm de terem os seus direitos resguardados ante as investidas da maioria em cerceá-los ou suprimi-los. O debate acerca da chamada ditadura da maioria14 é pautado pela utilização do princípio da maioria -instrumento que rege a condução de decisões democráticas- muitas vezes para fundamentar a imposição de certos preceitos majoritários ante as minorias dentro da sociedade.

O Estado, por sua vez, amparado pela correta utilização formal do procedimento democrático de decisão, acaba por reafirmar tais imposições, cerceando e suprimindo modos de vida minoritários. Tal prática acaba por corromper a essência democrática: o livre e pleno debate de ideias entre distintos modos de pensar.15 A composição social pluralista e diversificada passa a moldar-se em formatos únicos e dogmáticos.

Vê-se claramente que a composição majoritária da sociedade não pode impor o seu modo de vida para a parcela minoritária de modo arbitrário, especialmente no que diz respeito às decisões da vida privada dos cidadãos. Existem limites ao poder que a maioria detém de estabelecer comandos estatais por intermédio do princípio da maioria no regime democrático.16 Os direitos das minorias, nesse sentido, devem ser respeitados e mantidos incólumes.

Há aqui um evidente conflito entre autoridade e liberdade, posto em tela. O Estado é usualmente reconhecido por estabelecer regramentos jurídicos em prol do bem-estar social, mantendo a ordem e a paz nas relações entre os sujeitos. Tais regramentos advêm da vontade do próprio povo -derivando desse preceito as lições acerca da liberdade positiva dos sujeitos: somente se submeter às leis às quais o próprio sujeito se impôs.

Entretanto, falar em poder do povo é falar, em verdade, acerca do poder de uma parcela majoritária do povo -e não da sua totalidade. É comum -e saudável- que não se estabeleçam consensos uníssonos entre a população sobre as mais variadas questões. Ocorre que a parcela majoritária pode desejar oprimir os grupos minoritários, impondo-lhes seu modo de vida. Para que isso não ocorra, é necessário adotar certos mecanismos a fim de proteger as minorias contra possíveis arbitrariedades da maioria.17

Desse modo, urge a necessidade de romper com os dogmas pré-estabelecidos que autorizam a segregação de práticas sociais minoritárias. É preciso investir em práticas jurídico- sociais pluralistas, tendo em vista que o direito deve ser construído conferindo a livre oportunidade de escolhas ético-culturais aos cidadãos. Crê-se, nesse ínterim, que o direito deve ser pautado pela pluralidade, constituindo e respeitando o direito à diferença e à identidade plural dos sujeitos.18

Um Estado democrático, que respeite e estimule as diferenças entre os sujeitos, não deve impor qualquer prática cultural como obrigatória, cerceando as práticas que divergem daquele modo de vida. Isto implicaria em um etnocentrismo completamente avesso à livre oportunidade e escolha de modos de vida.19 A teoria democrático-estatal deve implementar a ideologia do relativismo cultural como fonte das relações intersubjetivas entre as diferentes culturas, visto que não há um único e supremo modo de vida a ser seguido.

A segregação cultural e legislativa do modo de vida poligâmico, nesse ínterim, é injustificável. A supressão da possibilidade de instituir uma família poligâmica nos mais diversos Estados do ocidente se traduz como clara imposição da maioria cristã ante práticas de culturas minoritárias, constantemente subalternizadas. A abertura social e legal para as mais variadas formas de convivência familiar -incluindo-se a poligamia- é direito inerente ao cidadão, de optar pela forma de vida que melhor lhe aprouver.

 

6. Considerações finais

A predominância da cultura cristã na parte ocidental do planeta gera, em consequência, a prática de preceitos oriundos deste modo de vida pela maioria absoluta da população. A visão de mundo específica destes sujeitos, imbuído em um elemento cultural majoritário e compartilhado quase que consensualmente, faz com que o modo de vida cristão seja encarado como o único modelo socialmente aceitável e correto.

Dessa forma, os demais modelos culturais religiosos que não seguem os ensinamentos cristãos são encarados como estereótipos incorretos de vivência. Esta é uma das principais consequências da domesticação cultural: não somente adotar os preceitos de determinado modo de vida, mas igualmente encarar as formas de vivência alheias como desviadas e imorais. A ética humana detém, nestes termos, estreita ligação com o modelo cultural adotado pelo indivíduo.

A família não escapa aos delineamentos culturais e à consequente caracterização como correta/errônea. A família pregada pela doutrina cristã prevê a monogamia como única modalidade de convivência aceitável, renegando a possibilidade de coexistência com o modelo poligâmico. As entidades familiares avessas ao conceito cristão, dessa forma, encontram rigorosa resistência social e estatal -tendo em vista a inerente tendência da maioria tentar impor os preceitos compartilhados majoritariamente para as minorias culturais.

No entanto, os direitos de manter os aspectos culturais de diferentes culturas dentro da sociedade é um direito inato à democracia e aos cidadãos. A convivência entre os diferentes modos de vida diz respeito à manutenção, entre outros, do direito à liberdade -pilar da sociedade. O direito à diferença -ou seja, o direito que o sujeito detém de resguardar a sua individualidade privada, o modo de vida que desejar- é o limite interposto contra a arbitrariedade da maioria, ao usar o Estado e o princípio da maioria para tentar suprimir as culturas minoritárias.

Assim sendo, todo Estado democrático deve primar pelo respeito aos mais diferentes modos de vida. O ocidente, que comumente impõe aos sujeitos a forma monogâmica familiar como instituição obrigatória, acaba por cercear a pluralidade de convivências nas relações familiares que somente dizem respeito às escolhas dos próprios indivíduos. Prezar pela multiculturalidade e interculturalidade dentro da sociedade é tarefa essencial para proporcionar a realização plena do ser humano enquanto tal, devendo ser retiradas quaisquer barreiras que obstem tal objetivo.

 


1 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Tradução: Gilberto Velho. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 107.

2 LARAIA, Roque de Barros. Um conceito antropológico. 11a edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 17-18.

3 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Tradução: Gilberto Velho. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 113-114.

4 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 64.

5 ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes. In FERREIRA, Lier Pires; GUANABARA, Ricardo; JORGE, Vladimyr Lombardo (Orgs.). Curso de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 139.

6 LESSA, Sérgio. A atualidade da abolição da família monogâmica. Revista Crítica Marxista, n. 35, pp. 41-58, 2012, p. 41.

7 TEIXEIRA, Flávia B.; CARRIJO, Gilson G. Morgan e Engels: considerações sobre a coincidência entre as noções de evolução e de progresso. História & Perspectivas, Uberlândia, n. 29 e 30, pp. 327-353, jul./dez. 2003 e jan./jun. 2004, p. 340.

8 Faz-se aqui apenas referência ao casamento heterossexual, tendo em vista que esta era a única possibilidade afetiva vislumbrada pelo cristianismo.

9 CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2a edição. Campinas, SP: Papirus, 1995, p. 101.

10 BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 19, n. 1, pp. 201-230, jan./abr. 2014, p. 208.

11 CHADE, Jamil. Irã condena mais um a morte, por ser homossexual. O Estadão, São Paulo, ago. 2010, s/p.

12 FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, política e direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 215-216.

13 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 216.

14 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 6a edição. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 55.

15 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução: Luís Carlos Borges. 3a edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 412.

16 MILL, Stuart. Sobre a liberdade. Tradução: Ari R. Tank. São Paulo: Hedra, 2010, p. 37.

17 MILL, Stuart. Sobre a liberdade. Tradução: Ari R. Tank. São Paulo: Hedra, 2010, p. 41.

18 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, Florianópolis, n. 53, pp. 113-128, dez. 2006, p. 114.

19 MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Síntese - Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 27, n. 88, pp. 245-254, 2000, p. 248.

 

Referências

1. ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes. In FERREIRA, Lier Pires; GUANABARA, Ricardo; JORGE, Vladimyr Lombardo (Orgs.). Curso de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.         [ Links ]

2. BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2002.         [ Links ]

3. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 6a edição. São Paulo: Brasiliense, 2005.         [ Links ]

4. BOUDON, Raymond (Org.). Tratado de sociologia. Tradução: Teresa Curvelo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.         [ Links ]

5. BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 19, n. 1, pp. 201-230, jan./abr. 2014.         [ Links ]

6. CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2a edição. Campinas, SP: Papirus, 1995.         [ Links ]

7. CHADE, Jamil. Irã condena mais um a morte, por ser homossexual. O Estadão, São Paulo, ago. 2010.         [ Links ]

8. CHINOY, Ely. Sociedade: uma introdução à sociologia. São Paulo: Cultrix, 1999.         [ Links ]

9. FARIAS, José Fernando de Castro. Ética, política e direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.         [ Links ]

10. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Tradução: Gilberto Velho. Rio de Janeiro: LTC, 1989.         [ Links ]

11. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução: Luís Carlos Borges. 3a edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998.         [ Links ]

12. LARAIA, Roque de Barros. Um conceito antropológico. 11a edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.         [ Links ]

13. LESSA, Sérgio. A atualidade da abolição da família monogâmica. Revista Crítica Marxista, n. 35, pp. 41-58, 2012.         [ Links ]

14. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010.         [ Links ]

15. MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Síntese - Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 27, n. 88, pp. 245-254, 2000.         [ Links ]

16. MILL, Stuart. Sobre a liberdade. Tradução: Ari R. Tank. São Paulo: Hedra, 2010.         [ Links ]

17. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20a edição. São Paulo: Saraiva, 2002.         [ Links ]

18. TEIXEIRA, Flávia B.; CARRIJO, Gilson G. Morgan e Engels: considerações sobre a coincidência entre as noções de evolução e de progresso. História & Perspectivas, Uberlândia, n. 29 e 30, pp. 327-353, jul./dez. 2003 e jan./jun. 2004.         [ Links ]

19. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, Florianópolis, n. 53, pp. 113-128, dez. 2006.         [ Links ]

 

 

Fecha de recepción: 6 de febrero de 2015
Fecha de aceptación: 9 de septiembre de 2015

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons