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Revista de Bioética y Derecho

versión On-line ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  no.44 Barcelona  2018

 

Sección General

Violência contra crianças na perspectiva de profissionais de saúde: reconhecimento e proteção em suas atividades hospitalares

Violence against child in the perspective of health professionals: protection and acknowledgment in their care activities

La violencia infantil en la perspectiva de los profesionales sanitarios: reconocimiento y protección en sus actividades profesionales

La violència infantil en la perspectiva dels professionals sanitaris: reconeixement i protecció en les seves activitats professionals

Gabriela Souza-Schumacher1  , Lucas França-Garcia2  , Márcia Santana-Fernandes3  , José-Roberto Goldim4 

1Advogada. Mestre em Medicina: Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil

2Sociólogo. Doutor em Medicina: Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil

3Advogada. Doutora em Direito. Professora Permanente do Mestrado Profissional em Pesquisa Clínica do HCPA. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Brasil

4Biólogo. Doutor em Clínica Médica. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Chefe do Serviço de Bioética Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Brasil

Resumo

O objetivo deste trabalho é verificar a percepção e a compreensão de profissionais de saúde sobre violência e proteção de crianças atendidas em um hospital geral universitário. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com dezoito profissionais de saúde. A abordagem relatada para as situações de violência varia desde o envolvimento até o descaso. Poucos entrevistados tiveram contato com o tema durante a sua formação profissional. A mãe foi identificada como a principal pessoa responsável pelas crianças, mas também como a principal agente de violência. Na perspectiva dos entrevistados, a criança só estará protegida se tiver uma família estruturada. A percepção e a compreensão dos profissionais em relação à violência e proteção de crianças são heterogêneas, modificando-se conforme a sua área de atuação.

Palavras chave: bioética; abuso infantil; violência doméstica; proteção à criança

Abstract

The aim is to verify the health professionals' perceptions, and understandings about violence and protection of children admitted in a Teaching Hospital. It was performed semi structured interviews with eighteen health professionals. The account on situations cited by the professional went since engagement until negligence. A few health professional had contact with the content along their professional education. The mother has been identified as a main person who is responsible for the care of the children, and with the person who is actively responsible for it. In the perspective of interviewed, the child will be protected just if he/she has a structured family. The health professionals' perceptions, and understandings are heterogeneous, and modified accordingly with the field of specialization.

Keywords: bioethics; child abuse; child advocacy; domestic violence

Resumen

El objetivo de este trabajo es verificar la percepción y comprensión de los profesionales sanitarios sobre la violencia y la protección de niños y niñas ingresados en un hospital universitario. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a dieciocho profesionales sanitarios. Los niveles de involucramiento de los profesionales en las situaciones de violencia van desde el compromiso a la negligencia. Algunos profesionales tuvieron contacto con estos temas durante su formación profesional. La madre ha sido identificada como la principal responsable del cuidado de niños y niñas y como la persona activamente responsable por ellos. Desde la perspectiva de los entrevistados, los niños sólo estarán protegidos si tienen una familia estructurada. Las percepciones y concepciones de los profesionales de la salud son heterogéneas y se modifican de acuerdo al campo de especialización.

Palabras clave: bioética; abuso infantil; defensa de niños y niñas; violencia doméstica

Resum

L'objectiu d'aquest treball és verificar la percepció i comprensió dels professionals sanitaris sobre la violència i la protecció de nens i nenes ingressats en un hospital universitari. Es van realitzar entrevistes semiestructurades a divuit professionals sanitaris. El nivell d'implicació dels professionals en les situacions de violència van des del compromís a la negligència. Alguns professionals van tenir contacte amb aquests temes durant la seva formació professional. La mare ha estat identificada com la principal responsable de la cura de nens i nenes i com la persona activament responsable dels mateixos. Des de la perspectiva dels entrevistats, els nens només estaran protegits si tenen una família estructurada. Les percepcions i concepcions dels professionals de la salut són heterogènies i es modifiquen d'acord amb la seva especialitat.

Paraules clau: bioètica; abús infantil; defensa de nens i nenes; violència domèstica

1. Introdução

A violência contra criança é um problema complexo, dinâmico e abrangente, uma vez que acompanha a história da humanidade, agregando diferentes significados conforme a época, o local e as circunstâncias. A Organização Mundial da Saúde reconhece que a violência, incluindo as crianças como grupo de risco, é um dos principais problemas mundiais de saúde. Isto é devido às consequências nocivas que este fenômeno gera na saúde individual e coletiva 1,2.

A criança é reconhecida como sujeito de direitos, no Brasil, desde 1988 com a promulgação da Constituição Federal. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, consolidou os direitos da criança e criou o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente é o responsável por promover, defender e controlar a efetivação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Os serviços de saúde integram este Sistema. Desta forma, a legislação confere aos profissionais de saúde a obrigatoriedade, sob pena de infração administrativa, de notificar a suspeita ou a confirmação de maus-tratos contra crianças. Da mesma forma, estes profissionais devem promover ações que busquem restabelecer a saúde da criança, afetada pela violência. A notificação, por si só, já é reconhecida como um meio de proteção à criança vítima de violência 3,4,5.

Partindo da consolidação legislativa de que toda criança é sujeito de direitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 5º, proclama que nenhuma criança será objeto de violência. Assim, remete-se ao entendimento de que a violência se materializa em qualquer ação ou omissão capaz de infringir o direito ao respeito, o qual se sustenta na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral das pessoas em desenvolvimento 3.

As situações de violência contra criança também têm reflexos nas atividades hospitalares. A violência pode ser a causa do atendimento ou estar associada a outras situações, menos evidentes, de agravos à saúde. Múltiplos fatores associados à violência, por vezes, representam dificuldades marcantes para a manutenção do atendimento das crianças. Estas dificuldades podem gerar frustração, ocasionando desgaste nos profissionais responsáveis pela assistência 6.

A característica multifatorial das situações envolvendo violência contra a criança exige uma abordagem multiprofissional. A estruturação de equipes ou programas institucionais de proteção à criança é uma estratégia para o enfrentamento desta realidade. Um exemplo disto é o Programa de Proteção à Criança do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) 7,8,9.

A Bioética, devido a sua característica interdisciplinar, possibilita compreender como as diferenças de percepção, compreensão e atuação dos profissionais afeta a proteção de crianças vítimas de violência. O objetivo da Bioética, na tentativa de solucionar problemas, não é identificar uma solução ideal, mas alcançar a melhor solução disponível nas circunstâncias reais 10.

O presente estudo teve como objetivo verificar a percepção e a compreensão de profissionais de saúde em relação à violência e à proteção de crianças atendidas em um hospital geral universitário.

2. Método

O estudo foi realizado no HCPA, que é um hospital geral público e universitário, de alta complexidade. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com uma amostra de conveniência de 18 profissionais de saúde dos Serviços de Pediatria e de Emergência Pediátrica, seis em cada uma das áreas ambulatorial, de internação e emergência. Os profissionais destas Unidades eram médicos (n=7), enfermeiros (n=2), técnicos de enfermagem (n= 8), e educador físico (n=1). As transcrições das entrevistas foram identificadas respectivamente como EA, EI e EE com relação a cada uma das áreas. O número de pessoas entrevistadas foi baseado no critério de saturação dos dados. A mostra incluiu quatorze mulheres e quatro homens. Todas as pessoas convidadas aceitaram participar das entrevistas.

As entrevistas foram realizadas pessoalmente e no próprio local de atuação do profissional, apenas com a presença do entrevistador e do entrevistado. Todas as entrevistas foram gravadas e conduzidas pelo mesmo pesquisador, que realizou anotações em um diário de campo. A duração das entrevistas variou de 20 a 60 minutos. Foram incluídas perguntas sobre a percepção de violência, o entendimento sobre proteção à criança e o conhecimento de recursos institucionais.

Os dados foram transcritos na sua integralidade. A avaliação dos dados obtidos foi feita com a utilização da Análise de Conteúdo 11. O tratamento dos dados foi realizado com o auxílio do programa QSR NVivo (r), versão 11.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA (CAAE 56819916.1.0000.5327). Os participantes da pesquisa foram informados sobre os objetivos do projeto, as formas de abordagem e os interesses dos pesquisadores sobre o tema. Todos consentiram formalmente com a sua participação e uso dos seus dados.

3. Resultados

A partir dos dados coletados e analisados, quanto ao seu conteúdo, foi possível identificar um conjunto de termos que melhor descreviam as entrevistas realizadas. Os principais termos comuns às três áreas de atuação foram: mãe, família, Assistente Social, Médico, profissional, hospital, fazer, Programa de Proteção, violência física e retorno de informações.

Os entrevistados referiram o convívio que têm com a questão da violência contra crianças no seu dia-a-dia laboral. A violência física foi única citada por todos os profissionais das três áreas. No Ambulatório, parte dos entrevistados menciona que é comum presenciar situações de violência, entendida como violência física, de pais sendo agressivos com os filhos, tanto na sala de espera, quanto no próprio consultório. A negligência foi mais evidenciada pelos profissionais do Ambulatório e da Internação. Na Internação, foram mencionados casos de abandono de crianças, que ficam sozinhas, sem acompanhante no hospital. Foram também citadas as violências psicológicas e sexuais. Na Emergência, parte dos profissionais relatou saber o que é violência, mas afirmaram que nunca se depararam com uma situação no atendimento deste setor. Os entrevistados mencionaram que a violência é um risco para o desenvolvimento da criança, pois afeta diretamente a sua saúde.

"Violência, eu entendo assim, violência é aquela que deixa marcas, hematomas" (E. I. 3).

"Algumas mães, muitas descem para fumar e deixam as crianças dormindo e somem. Vão fumar, conversar e somem. (...) Esses tempos a mãe deixou a criança sozinha, no quarto, no carrinho, não tinha ninguém". (E. I. 5).

"Eu nunca tive nenhum problema. Assim, não é muito comum, vou te dizer que assim, é bem raro a gente ter uma situação assim". (E. E. 6).

"Violência é tudo o que prejudica a criança em todo o desenvolvimento dela, a vida dela em si". (E.I. 4).

Poucos entrevistados tiveram contato com o tema da violência contra crianças durante a formação profissional. Dentre os dezoito entrevistados, quatorze afirmaram que não tiveram contato com esta temática.

"Se teve alguma coisa, acho que foi pouco. Meio que faltou. Se teve, eu não consigo lembrar. Foi muito pouco". (E. I. 6).

"Não. Minha formação foi há trinta anos, não tive".(E. E. 3).

Os profissionais mencionaram que os casos de violência são complexos, necessitando de um olhar abrangente para identificação e abordagem adequadas. Entretanto, relataram sobre a dificuldade de perceber e abordar tais situações, influenciada pela falta de formação adequada. Destacaram que o volume de trabalho assistencial também torna complicado acolher a criança e a família.

"Tem que ter um olhar abrangente. (...) precisa ter uma rede bem formada, de pessoas comprometidas, que realmente olhem. (...) Aqui é emergência, não tem como olhar". (E. E. 1).

"Eu queria fazer mais, as vezes tentar identificar casos, mas a gente tem tanta coisa para fazer, que às vezes acaba passando". (E. I. 6).

O fazer está presente em diferentes manifestações e contextos, tais como a identificação, a comunicação e a intervenção em situações de violência. Diante da identificação da violência, seja por suspeita ou confirmação, os entrevistados apontaram como principal alternativa de intervenção, acionar um profissional capaz de encaminhar este tipo de situação, com destaque para os Médicos, os Assistentes Sociais e as Enfermeiras. Outras intervenções também são realizadas, conforme a área de atuação. Na Emergência e no Ambulatório, referiram que outra alternativa seria a internação do paciente, pois identificam o hospital como um local de proteção capaz de retirar a criança do ambiente de risco. No Ambulatório, destacam que durante as consultas procuram orientar sobre os cuidados à saúde, prevenção, entre outros aconselhamentos que promovam o desenvolvimento saudável dos pacientes. Na Internação é dada ênfase para a atuação de equipe, ao compartilhar informações, que podem ser também obtidas com a própria criança e com familiares de outros pacientes que compartilham a mesma área assistencial. Um profissional relatou que não compartilha situações de violência com qualquer outro membro da equipe, pois isto configuraria, na sua concepção, uma "quebra de sigilo", isto é, uma falta com o dever de confidencialidade.

Outra alternativa citada foi a comunicação do caso ao Programa de Proteção à Criança, com a possibilidade de contar com a colaboração de outros profissionais mais qualificados para lidar com este problema e capaz de fazer os encaminhamentos necessários. Foram citadas algumas barreiras associadas a esta comunicação, tais como o distanciamento do Programa das áreas de atuação assistencial, o acesso ao próprio Programa e o seu relacionamento com as famílias.

"Eu só ouvi falar do Programa de Proteção à Criança, mas não sei quem faz parte" (E. E. 4).

"Eu sei que tem, mas não sei como funciona" (E. E. 3).

"É uma ordem que vem muito acima dos pais, parece que eles estão sendo acusados constantemente por alguma coisa, eu tenho essa impressão. (...) A mãe se sentiu totalmente sem autonomia. (...) os pais se sentem assim e referem isso. (...) as ideias tomadas foram sem pensar, sem conversar com a mãe, pensaram o melhor para a família, mas sem conversar com a mãe". (E. A. 4).

Os entrevistados destacaram que deveria haver uma intervenção mais efetiva entre os diferentes setores, equipes e recursos do hospital envolvidos no atendimento de pacientes vítimas de violência. Este processo deveria ser integrado. Um dos destaques nas entrevistas foi a referência à falta de retorno das informações sobre as situações de violência encaminhadas.

"A gente não fica sabendo de mais nada. (...) A equipe não é engrenada, não existe uma união, não há um trabalho continuado". (E. E. 1).

"A gente até sugere, encaminha a criança para internação, mas a gente não sabe o que é feito depois, esse retorno a gente não tem". (E. E. 2).

"É relatado tudo, mas eu não sei a continuidade". (E. I. 4).

A abordagem das situações de violência varia desde o envolvimento até o descaso. Uma das possíveis explicações para o não envolvimento frente a situações de violência é o receio dos profissionais associado às consequências de suas ações. Os entrevistados relataram que já sofreram ameaças de supostos agressores, assim como de pais e outros familiares. Especificamente no Ambulatório, o medo também se associa à possibilidade da criança não ser trazida, pelos seus familiares, na próxima consulta.

"O médico tem medo da reação do familiar. (...) eles têm muito medo de serem agredidos, porque, realmente, o familiar perde o controle, às vezes é culpado e não aceita". (E. I. 1).

"Conforme tu falas, o paciente não volta mais, quem sai prejudicada é a criança. (...) tu tens que falar com cuidado para não perder o paciente e possibilitar que ele faça o vínculo contigo". (E. A. 5).

A desconsideração do problema também foi relatada. Desconsiderar é não valorizar, é não dar continuidade às ações tidas como necessárias para proteger a criança. Alguns entrevistados mencionaram que muitos casos não são levados a diante, mesmo quando alguma situação de violência é identificada.

"Muito por falta de interesse. (...) eu fico aqui seis horas, oito horas, às vezes doze horas, e eu estou vendo, eles não levam para frente". (E. E. 1).

"Já aconteceram coisas que foram encaminhadas e outras a gente viu que não foram. (...) Aqui é muita hierarquia, as pessoas não dão atenção para o que tu falas, entendeu? Tu podes até falar, eu falo, mas sei que aquilo vai ficar 'palavras ao vento'. Por tu não ter um respaldo e não ir pra frente, tu acaba ficando sem ação, não tem o que fazer, não tem como fazer". (E. E. 4).

São reconhecidos como familiares: a mãe, o pai e as avós. A mãe é identificada como a principal pessoa responsável pelas crianças, mas também como a principal agente de violência. As avós são familiares que assumem determinadas responsabilidades em relação aos seus netos. Por outro lado, o pai é um membro da família que não é reconhecido pelos profissionais como alguém que assuma responsabilidades, pois é uma figura habitualmente ausente.

"O problema das crianças são as mães. (...) a mãe tinha que ser tratada, tinha que ser visto a mãe, o problema dela". (E. E. 1).

"Me preocupa, porque a gente está aqui, claro, para fazer toda a medicação, todos os cuidados, mas assim, se a mãe não está aqui para trocar uma fralda, para dar um colinho, um carinho, em casa muito menos". (E. I. 3).

A família, na perspectiva ideal dos profissionais, representa o principal fator de proteção às crianças. Assim, uma criança só estará protegida se tiver uma família estruturada, que assegure os devidos cuidados para que a ela cresça e se desenvolva de forma saudável. As medidas de proteção, na visão dos profissionais, devem envolver a família, pois, para proteger o paciente, deve-se agir no entorno dele, relacionando-o às principais pessoas às quais ele está vinculado.

"Proteção à criança, a base de tudo é a família para mim. Tem que ter uma família bem estruturada psicologicamente, não falo nem financeiramente. (...) Não adianta trabalhar com a criança sem estar com os pais. (...) Família tem que estar junto, mas às vezes é o mais difícil de tudo". (E. E. 4).

Paradoxalmente, os profissionais da área de internação, em alguns depoimentos referem o abrigamento como o principal fator de proteção. Mencionam em suas falas que "sentem raiva" das famílias algumas vezes que, em função deste sentimento, a principal intenção é afastar a família da criança, inclusive nas atividades intrahospitalares. Igualmente, estes profissionais manifestam um sentimento de frustração e decepção em relação ao sistema de proteção social externa quando as crianças não são retiradas do seu convívio familiar, pois entendem que estes agentes não garantem um ambiente seguro para os pacientes após a alta hospitalar.

"Às vezes a gente fica meio frustrado, não é nem pelo hospital, às vezes é coisa da Justiça. Claro, a gente sabe 'será que é melhor a criança ir para um abrigo, ficar lá sozinha?'tem várias situações, de repente ficar com outro familiar. Fica uma confusão na cabeça. (...) Fica um tempo internada, no fim demora para se resolver, porque a gente sabe que a Justiça demora, e daí vai embora com a mãe". (E. I. 6).

"O Conselho [Conselho Tutelar] é demorado também né, essa questão de notificar, de tomar uma providência. (...) Esses abrigos também não têm uma estrutura boa. A criança vai continuar vulnerável, vai continuar sofrendo, talvez seja pior". (E. I. 1).

4. Discussão

A principal manifestação de violência identificada pelos profissionais foi a violência física. Isto pode ser devido ao fato de ser a mais evidente, apesar de não ser a mais frequente na população. A violência física tem uma frequência aproximada de 22% dos relatos notificados às autoridades. A negligência e a violência psicológica são mais frequentes, com 38% e 24%, respectivamente. A violência sexual é responsável por 12% dos casos 12. Uma revisão integrativa de estudos publicados com violência contra crianças no Brasil reitera a negligência como a forma de maus tratos mais frequente 13. Todavia, o Ministério da Saúde afirma que a violência física é subnotificada, mas que é a violência mais identificada nos serviços de saúde 8. A violência se associa a intencionalidade, como forma de diferenciá-la do dano acidental. A intenção vinculada a uma ação que gera um dano a outra pessoa é que dá a conotação de inadequação ética a ela associada 14.

Cabe salientar que alguns profissionais da internação relacionavam, como negligência, a falta de condições econômicas, caracterizando-a como uma violência intrafamiliar, gerada principalmente pela mãe. Esta situação se caracteriza, de fato, como uma violência estrutural, e não como negligência familiar 1.

A maioria dos entrevistados não teve contato com o tema da violência na sua formação profissional. Este tema é reconhecido como ausente na formação de profissionais de saúde. Isto acarreta uma fragmentação e uma limitação na própria percepção do que é e das possíveis repercussões associadas à violência15. Por não conhecerem adequadamente o problema e sua gravidade, uma suspeita de violência, por vezes, é minimizada ou até mesmo descartada diante de outros aspectos presentes no atendimento do paciente.

Em relação ao encaminhamento do problema para outro profissional ou para o Programa de Proteção à Criança presente no hospital em que foi realizada a pesquisa, os profissionais afirmaram que, ao compartilhar a informação, poderão realizar uma abordagem mais qualificada e com diferentes perspectivas. Assinala-se que tal Programa é composto por profissionais das áreas de medicina, enfermagem, direito, psicologia e serviço social, que analisam as situações de violência contra crianças e buscam realizar os primeiros encaminhamentos para a sua segurança, acionando o Conselho Tutelar, Ministério Público e o Judiciário, também integrantes da Rede de Proteção 9. O próprio Ministério da Saúde preconiza o atendimento multiprofissional para crianças vítimas de violência 8. Dispor de um Programa de Proteção à Criança em um hospital qualifica esta discussão e indica aos profissionais alternativas de encaminhamentos para as situações de violência constatadas 9.

Duas situações merecem ser comentadas: a obtenção de informações por meio de familiares de outros pacientes e o não compartilhamento de informações entre os membros da equipe por questões de sigilo. Questionar familiares de outros pacientes na busca de informações sobre uma determinada situação envolvendo outra família pode ser questionado desde o ponto de vista da privacidade. Este questionamento pode estimular a curiosidade, pode gerar um estigma associado ao paciente e seus familiares. É diferente de ouvir relatos espontâneos de outras pessoas que convivem no mesmo ambiente hospitalar. A inadequação está em estimular uma revelação que gera informações nem sempre verídicas. O uso de câmeras de vídeo pode ser adequado, desde que não sejam ocultas. A utilização de monitoramento por vídeo pode ser útil e recomendável, desde que haja uma discussão prévia e individualizada, quanto a sua utilidade e finalidade. O critério de adequação é a proteção associada à obtenção das imagens.

Um único profissional alegou o sigilo como um impedimento para compartilhar informações com seus colegas. Desde o ponto de vista ético, o profissional tem o dever de confidencialidade para as informações que tem acesso em suas atividades. Confidencialidade é o dever de preservar as informações, que podem ser compartilhadas com outros profissionais, que também têm este mesmo dever de proteção, desde que reconheçam que eles necessitam ter acesso, a estas mesmas informações, para atender aos melhores interesses de seu paciente 16.

O receio associado ao ato de revelar uma situação de violência é também descrito em relatos obtidos em outros locais. O medo de ser agredido ou de que a criança seja negligenciada em seu tratamento é igualmente descrito 17. Estas duas justificativas devem ser diferenciadas desde o ponto de vista ético.

A não revelação de uma situação de violência, apenas por medo de ser agredido, pode refletir uma falta de coragem profissional. Coragem que deve ser entendida como a virtude de fazer o que tem que ser feito: nem destemor, que expõe o profissional a riscos demasiados; nem covardia, quando o profissional se exime de suas responsabilidades 18. A beneficência, ou seja, fazer o bem, é um dos princípios norteadores da conduta dos profissionais de saúde 19.

Por outro lado, não revelar para evitar que os pais ou responsáveis abandonem o tratamento da criança, pode ser entendido como uma responsabilidade prospectiva do profissional com o bem-estar futuro de seu paciente. A não revelação poderia estar associada a perspectiva de responsabilidade retrospectiva, que se refere a situações já ocorridas. O profissional ao optar pela responsabilidade prospectiva assume a sua decisão baseado na precaução 20.

Alguns profissionais entrevistados consideram que a relação do hospital com os demais recursos, como o Conselho Tutelar e a Rede de Proteção, é mais um encargo, pois poderá demandar uma sequência de acontecimentos, aos quais não querem se envolver. O não envolvimento também está presente em outros locais e dificulta o encaminhamento adequado deste tipo de demanda social 21,22. Este não envolvimento pode ser caracterizado como falta de alteridade, ao não incluir o outro como objeto de sua consideração, como alguém que tenha importância. Reconhecer o outro, ou seja, assumir a alteridade, gera a noção de corresponsabilidade 23.

O reconhecimento de que as mães têm a dupla característica de proteger e agredir é frequente em múltiplos locais e culturas 24. Os pais não receberam o reconhecimento nem de protetores, nem de agressores. O não reconhecimento dos pais como protetores pode ser creditado a sua baixa frequência no ambiente hospitalar. É incomum o pai ser o acompanhante principal do paciente pediátrico. A ausência do pai como agressor pode ser devida à valorização da violência física nos relatos dos profissionais. Na área da violência, os homens da família são reconhecidos pela sua atuação como agressores sexuais 25,26.

A mesma relação de proteção e agressão estabelecida pelos profissionais em relação à mãe dos pacientes, se reitera em relação às famílias. Existe o reconhecimento que uma família estruturada pode proteger adequadamente uma criança. Por outro lado, o convívio familiar também pode ser um risco tão alto para a criança que a alternativa de afastá-la de seus familiares, ou seja, abrigá-la, pode ser a mais adequada 5.

Necessário referir, todavia, que o abrigamento, ou acolhimento institucional, é uma determinação extrema, de caráter provisório e excepcional, haja vista que o Estatuto da Criança e do Adolescente indica outras medidas de proteção, as quais devem ser implementadas com base em um diagnóstico do caso concreto. Tais medidas se materializam a partir do Sistema de Garantia de Direitos, formador da Rede de Proteção, que desempenha ações que objetivam fortalecer o núcleo familiar, com base em orientações e serviços de proteção social, tornando-o organizado e autônomo, capaz de exercer as funções de proteção básica. A Lei nº 8.069/90, entre os artigos 98 a 102, estabelece que as medidas de proteção podem ser executadas conjuntamente, observando cada situação 3.

Constata-se que a percepção e a compreensão dos profissionais de saúde em relação à violência e proteção de crianças são heterogêneas, modificando-se conforme a sua área de atuação.

Verifica-se que as diferenças identificadas podem ser o resultado de múltiplos fatores, envolvendo, por exemplo, os sentimentos pessoais; as experiências pessoais e profissionais; a dinâmica e as condições de trabalho; as relações e a comunicação entre os profissionais; as diferentes formas de contato, aproximação e vínculo com os pacientes e suas famílias; além do conhecimento sobre os recursos que auxiliam na proteção de crianças vítimas de violência. Ocorre que tais diferenças acabam por interferir diretamente na reflexão e no processo de tomada de decisão diante das situações de violência, atingindo, consequentemente, a vida e o viver das crianças.

Referências

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Recebido: 09 de Novembro de 2017; Aceito: 07 de Março de 2018

Correspondencia: Gabriela Souza Schumacher. Advogada. Mestre em Medicina: Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil. E-mail: gschumacher@hcpa.edu.br. Lucas França Garcia. Sociólogo. Doutor em Medicina: Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Brasil. E-mail: lgarcia@hcpa.edu.br. Márcia Santana Fernandes. Advogada. Doutora em Direito. Professora Permanente do Mestrado Profissional em Pesquisa Clínica do HCPA. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Brasil. E-mail: msfernandes@hcpa.edu.br. José Roberto Goldim. Biólogo. Doutor em Clínica Médica. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Chefe do Serviço de Bioética Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Brasil. E-mail: jgoldim@hcpa.edu.br.

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