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Revista de Bioética y Derecho

versión On-line ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  no.52 Barcelona  2021  Epub 25-Oct-2021

https://dx.doi.org/10.1344/rbd2021.52.31503 

SECCIÓN GENERAL

Inteligência Artificial como sujeito de direito: construção e teorização crítica sobre pessoalidade e subjetivação

Inteligencia artificial como sujeto de derecho: construcción y teorización crítica sobre la personalidad y la subjetividad

Artificial Intelligence as a subject of law: construction and critical theorizing about personality and subjectivity

Intel·ligència artificial com a subjecte de dret: construcció i teorització crítica sobre la personalitat i la subjectivitat

Sthéfano Bruno Santos Divino1  2  3 

1Advogado. Doutorando e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Brasil)

2Professor substituto de Direito Privado na Universidade Federal de Lavras (Brasil)

3Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON) (Brasil)

Resumo

O presente artigo pretende responder o questionamento: pode uma inteligência artificial ser considerada sujeito de direito? Verifica-se a possibilidade de afirmação do problema proposto desde observado o processo de subjetivação dessa entidade. O primeiro processo compreende a emancipação do ser perante o sistema de dominação. O segundo processo determina o reconhecimento interespécie perante a sociedade para comutação da emancipação. Por fim, o terceiro processo diz respeito a subjetivação e reivindicação de direitos, que poderão se realizar perante os pleitos de uma Artificial General Intelligence (AGI). Utiliza-se o método de pesquisa integrada e a técnica de revisão bibliográfica.

Palavras-chave: inteligência srtificial; pessoalidade; personalidade; subjetivação; sujeito de direito

Resumen

Este artículo tiene como objetivo responder a la pregunta: ¿puede una inteligencia artificial ser considerada un sujeto de derecho? Existe la posibilidad de afirmar el problema propuesto observando el proceso de subjetivación de esa entidad. El primer proceso comprende la emancipación del ser del sistema de dominación. El segundo proceso determina el reconocimiento entre especies ante la sociedad para la conmutación de la emancipación. Finalmente, el tercer proceso se refiere a la subjetivación y los derechos de reclamo, que pueden tener lugar frente a un reclamo de Inteligencia General Artificial (IGA). Se utilizan el método de búsqueda integrado y la técnica de revisión de literatura.

Palabras clave: inteligencia artificial; personalidad; subjetivación; sujeto de derecho

Abstract

This article aims to answer the question: can an artificial intelligence be considered a subject of law? There is a possibility of affirming the proposed problem by observing the subjectification process of this entity. The first process comprises the emancipation of being from the system of domination. The second process determines the interspecies recognition in society for commuting emancipation. Finally, the third process concerns subjectification and claim rights, which may take place in the face of an Artificial General Intelligence (AGI) claim. An integrated search method and literature review technique are used.

Keywords: Artificial intelligence; personality; subjectivation; subject of rights

Resum

Aquest article té com a objectiu respondre a la pregunta: pot una intel·ligència artificial ser considerada un subjecte de dret? Existeix la possibilitat d'afirmar el problema proposat observant el procés de subjectivació d'aquesta entitat. El primer procés comprèn l'emancipació de l'ésser del sistema de dominació. El segon procés determina el reconeixement entre espècies davant la societat per a la commutació de l'emancipació. Finalment, el tercer procés es refereix a la subjectivació i els drets de reclam, que poden tenir lloc enfront d'un reclam d'Intel·ligència General Artificial (AGI). S'utilitzen el mètode de cerca integrat i la tècnica de revisió de literatura.

Paraules clau: intel·ligència artificial; personalitat; subjectivació; subjecte de dret

1. Introdução

Desde o ensaio seminal de Solum (1992), Legal Personhood for Artificial Intelligences, acentuou-se o debate jurídico acerca da possibilidade de atribuição de personalidade a entes inteligentes artificialmente1, principalmente com Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, que contém recomendações à Comissão sobre disposições de Direito Civil sobre Robótica (2015/2103(INL) (União Europeia, 2017).

O presente artigo utilizará o cenário contemporâneo e realiza uma abordagem teórica crítica no espectro jurídico para responder o seguinte questionamento: pode uma inteligência artificial ser considerada sujeito de direito? Objetiva-se demonstrar que existe tal possibilidade, desde que seguidos os processos de subjetivação duramente trabalho por autores como Foucault, Pachukanis, Honneth, Neumann e Althusser.

A primeira seção corresponde ao primeiro processo, traduzido na possibilidade de emancipação do ser perante o sistema de dominação de Foucault. A segunda seção expressa o segundo processo, trabalhando e abordando como o processo emancipatório é completo a partir do reconhecimento interespécie perante a sociedade para efetivação emancipatória do ser. Por fim, a terceira seção aborda a última fase da Procedimentalização do sujeito de direito no que diz respeito a subjetivação e reivindicação de direitos, que poderão se realizar perante os pleitos de uma Artificial General Intelligence (AGI).

Ao final, conclui-se pela possibilidade de uma IA ser considerada sujeito de direito, desde que atendidos de forma comutativa os procedimentos elencados. Utiliza-se o método de pesquisa integrada e a técnica de revisão bibliográfica.

2. Da impossibilidade de concessão da posição de sujeito de direito: emancipando o ser

Dois eixos teóricos se apresentam inicialmente como vetores a explicação da condição de sujeito de direito. No pensamento jurídico tradicional, o jusnaturalismo concebe o sujeito de direito como condição natural do homem (lato sensu). As atribuições. O Direito, neste caso, corresponde a arte primária parte de uma realidade moral utilizada para dar a coisa de cada um (Hervada, 2006, p. 16 e 131), que designa e reconhece o ser em sua posição de sujeito natural de direito, uma composição unitária do próprio sistema socio-relacional. Lado outro, o sujeito de direito aparece como uma determinação puramente normativa. Existe a redução dessa figura a um complexo de normas jurídicas. Tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica são entidades figurantes de uma realidade figurativamente jurídica expressa no conceito de pessoa, cujo conceito é apenas a personificação dessa unidade. Em última análise, os deveres jurídicos e os direitos subjetivos são estatuídos por normas jurídicas e reduzem o problema unitário da pessoa a um complexo de normas (Kelsen, 1995, p. 193-194).

Para reconhecer os possíveis equívocos dessas tradicionais vertentes, apresentam-se possibilidades de reinterpreta-las e explicar a condição de sujeito de direito para introduzir mais adequadamente o estado da arte e das coisas em sua concretização relacional sujeito - direito. Para isso, primeiramente, destaca-se a existência da miríade conceitual da terminologia persona esparsas em áreas não jurídicas, principalmente na psicologia (Dodell-Feder, 2016) e na filosofia da mente (Nagel, 2004). Não se pretende recorrê-las para rejeitá-las ou contra argumentá-las, pois aquém do objeto de estudo que define o foco do presente artigo, qual seja a compreensão do sujeito em sua função jurídica para o Direito. Embora os avanços em Teoria da Mente sejam exponenciais para referendar como a definição do eu afeta a personalidade e o indivíduo, poucas contribuições, neste momento, podem ser extraídas para assimilá-las à ciência jurídica, já que sua concepção dual (social e política) utiliza definições próprias e afins de sua área de atuação. Por esse motivo, o questionamento central dessa seção é: como a persona se transforma em sujeito de direito?

A primeira reflexão que se faz é com relação à possível diferenciação entre persona e sujeito de direito. Persona correspondia, na antiguidade, a invocação de uma dimensão artificial e fictícia, onde o homem (ser real) utilizava uma máscara (prosôpon) para se personificar e se pôr na pele de outrem, objetivando desvencilhar-se da própria (Viola, 2017, p. 14). A pessoa não era indivíduo e nem o indivíduo era pessoa. A noção de in-dividuus, o não dividido, tem seu equivalente na idade média a noção de átomo, uma ordem, um estamento capaz de ser reconhecido como ser social (Martins-Costa, 2010, p. 69). Prosôpon, representava o ter (habere personam) e não ser. Não se falava em existência simbiótica entre pessoa e eu e nem em consciência, já que essa correlação tem sua origem apenas nos princípios filosóficos cartesianos (Descartes, 2004, p. 46). Sua atribuição, portanto, atrelava-se mais ao aspecto político e menos ao jurídico, já que a utilidade da máscara era representada como local de fala desvinculado do ser que o pronunciava.

O sujeito de direito, lado outro, desenvolve-se acentuadamente no pensamento jurídico liberal humanista com a fictio juris de que seres humanos são iguais perante a lei e, portanto, titulares dos mesmos direitos e obrigações. Essa constatação, porém, não é simples de ser realizadas. A construção da subjetividade ou da subjetivação tem sua análise primorosamente realizada por Foucault. O autor realiza uma crítica no interior da gramática jurídica destinando-se suas atenções a uma atitude crítica ou prática para uma ressignificação. Isso quer dizer que o sujeito alvo do poderio normativo faz o uso das ferramentas normativas ao seu dispor para modifica-las e se auto construir. A crítica foucaultiana é a arte de não ser governado, "uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também" (Foucault, 2015, p. 31). Isso, pois, o sujeito de direito em Foucault serve como resistência ao sistema de dominação normativo para a construção da própria subjetividade.

A inércia do sujeito com relação à prática da crítica o conduz à governamentalização, que se define como uma prática social de sujeição individual por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade (Foucault, 2015, p. 35). A crítica tem sua importância a partir do momento que o sujeito se dá o direito de "interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e de poder sobre seus discursos de verdade" (Foucalt, 2015, p. 35). Ao sujeito incumbe a tarefa de desassujeitamento na política da verdade. Para Foucault (1995, p. 234), o controle do poder pode ser realizado por lutas antiautoritárias e que sejam capazes de afirmar o direito de ser diferente, bem como enfatizar tudo aquilo que torna os sujeitos verdadeiramente individuais. "O sujeito, portanto, sofre os efeitos do poder e é a partir desses efeitos que ele pode ser identificado e constituído como indivíduo" (Silva; Rodrigues, 2019, p. 2297). Para Foucault (1999, p. 35), o sujeito "é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu".

O sujeito de direito surge como uma resistência e, ao mesmo tempo uma concessão, do ser para o direito a partir do momento que esse exerce o poder de dominação sobre a persona e o impede de exercer as práticas de si. A constituição do sujeito de direito em Foucault pode ser vista como uma relação de dominação entre o sistema jurídico voltados a práticas de normalização, onde o ser reage contra elas e se constrói a si mesmo. Existe uma assimetria entre as relações sociais insculpidas pelo sujeito e pela norma em que o primeiro se constituiu através de práticas contrárias a atribuição coercitiva de uma identidade específica.

Por tal razão, o sentido da diferenciação entre persona e sujeito de direito só existe se o sistema jurídico regulatório o fizer ou atribuir qualidades e situações jurídicas para um e não para o outro. Isso quer dizer que se toda pessoa é sujeito de direitos e deveres, a diferenciação entre não-pessoa e não-sujeito de direitos e deveres fica prejudicada, a não ser que o sistema jurídico faça a concessão de direitos e deveres à não-pessoa.2

A segunda reflexão a ser levantada é que Foucault parece estar correto, mas em parte. Existe uma dualidade correlacional entre quem se sujeita a alguém, pelo controle e dependência, bem como a transição de sujeito à sua própria síntese autônoma, por um passo consciente ou de autoconhecimento, sendo que ambos, conforme Foucault (1995, p. 235), "sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito". Nesse sentido, o que Foucault tenta evitar é a redução da pluralidade social através do sistema normatizador. Ou seja, tenta-se evitar a normalização pela normatização. Compete ao sujeito e somente a ele atentar para as formas de poder regulatória para se transformar e impedir seu assentamento definitivo. Em suma, deve o sujeito integrar o direito como agente reivindicatório de suas pretensões e direitos. Esse é o acerto foucaultiano. O processo de constituição do sujeito de direito deve ser emancipatório. Deve existir uma contra-situação de sujeição e resistência ao poder que lhe é ínsito naquele momento. O reconhecimento se torna legítimo a partir do momento em que o Direito reconhece as pretensões reivindicatórias da prática crítica produzida pelo confronto com os discursos dominantes.

Considerar um ente inteligente artificialmente como sujeito de direito parece necessariamente passar por esse processo reivindicatório3. O ente deve demonstrar a sociedade e ao sistema jurídico como suas capacidades são necessárias e quais os possíveis direitos que são possíveis atribuir perante o momento da práxis de si. A simples concessão dessa posição jurídica enaltece o caráter utilitarista4 e ignora anos de contribuições e lutas de classes para emancipação social. Ao eu mecânico compete contradizer a norma jurídica que restringe a posição de direitos e deveres a seres humanos e encerrar a obrigação de obediência existente nesse sistema jurídico. O direito deve atuar com seu espectro de legalidade, e não normalizador e opressor. Se concedida nos moldes contemporâneos, a subjetivação dos entes inteligentes artificialmente tende a aumentar consideravelmente a complexidade social. "Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar" (Luhmann, 1983, p. 44). O contingenciamento, entendido como "o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas", referindo-se a algo enganoso, inexistente, ou inatingível significa a seleção forçada de situações sociais capazes de gerar perigos e riscos desnecessários (Luhmann, 1983, p. 45). Portanto, para que uma entidade artificialmente inteligente seja considerada como sujeito de direito, o processo emancipatório deve ser realizado para com o direito, mas não apenas.

O ponto que Foucault parece estar equivocado é justamente a redução da condição de sujeito de direito enquanto ser dominado pelo poder. A constituição das relações sociais e jurídicas também ocorre pelo reconhecimento intersubjetivo. É através desse reconhecimento que grupos sociais reivindicaram direitos durante séculos, e será ele o próximo procedimento abordado para que uma IA seja enquadrada como sujeito de direito.

3. Procedimentalização do sujeito de direito ao ser social: reconhecimento interespécies

Se considerarmos o processo emancipatório como correto, precisamos encontrar dentro da norma jurídica uma possibilidade do exercício da prática destinada ao fator em análise. Deve-se abrir espaços para inclusão de variadas demandas societárias, incluindo reivindicações de sujeitos a serem emancipados (Neumann, 2013; 2014). A naturalização da gramática jurídica objetiva apenas à manutenção do poder em Foucault e de um determinado projeto de sociedade, impedindo que novas demandas sociais se incorporem no sistema normativo (Silva; Rodrigues, 2019, p. 2982; Neumann, 2013), e a prática contra a governamentalização ocorre pela modificação léxica jurídica.

Como o Direito é representado pela linguagem, os aspectos semânticos e sintáticos autorizam o agente a utilizar os jogos de linguagem de Wittgenstein (2014) para criação de regras públicas capazes de reconhecer o processo emancipatório. Isso pode acontecer pois, conforme Neumann, a ambiguidade existente nas formas jurídicas possibilita a construção de uma teoria crítica do direito. É dessa ambiguidade e dessa indeterminação que o sujeito de direito retira as possibilidades para efetivação do seu potencial emancipatório. É o próprio direito em si que, dentro de suas normas jurídicas, cria um espaço para o exercício de autonomia para os sujeitos gerirem suas vidas em sociedade (Silva; Rodrigues, 2019, p. 2983). E dentro do espectro dos entes inteligentes artificialmente incumbirá a eles a discordância e contestação das normas para criar narrativas de sua existência frente a sociedade e ao Direito. "O potencial crítico da indeterminação das normas jurídicas, portanto, significa explorar a possibilidade de revisão constante dos significados jurídicos" (Silva; Rodrigues, 2019, p. 2983). A função do sujeito de direito, neste caso, é atuar como centro do ordenamento jurídico democrático para exercício de suas liberdades contra a prática de ser governado.

É claro que isso exige um domínio sintático e semântico linguístico a nível humano. E é por esse motivo que não serão todas as tecnologias de inteligência artificial que serão capazes de atingir esse resultado em tão curto prazo. Em uma breve classificação, Bostrom (2018), pressupõe-se a existência de três estágios de automação de IA: 1) Artificial Narrow Intelligence (ANI); 2) Artificial General Intelligence (AGI); e 3) Artificial Superintelligence (ASI). A ANI refere-se à habilidade computacional para realização eficiente de tarefas singulares, tal como rastreamento de páginas ou jogar xadrez (Bostrom, 2020)5. A AGI tenta representar o conceito original de inteligência, traduzindo-se em algoritmos com desempenho equivalente ou superior ao do ser humano e são caracterizados por uma competência deliberadamente programada em um único domínio restrito. Tais algoritmos modernos de IA tendem a se assemelhar a quase toda vida biológica (Bostrom, 2011). E por fim a ASI se apresenta como "qualquer intelecto que exceda em muito o desempenho cognitivo dos seres humanos em, virtualmente, todos os domínios de interesse".6

No contexto tecnológico contemporâneo, detecta-se apenas a inserção da ANI na sociedade informacional. As diretrizes e os preceitos gerais para implementação da AGI e da ASI estão em aparente desenvolvimento através das técnicas de Machine Learning7 (aprendizado de máquina) e deep learning8 (aprendizado profundo). Estima-se de maneira muito otimista que a AGI estará disponível apenas em 2029 e que a ASI tornaria um evento singular em 20459. Contudo, isso não reflete a maior parte dos cientistas, que tendem a crer que a AGI será alcançada apenas em torno de 2100, e a ASI após 30 anos de descoberta da AGI.10

A procedimentalização do sujeito de direito ao ser social, contudo, não se reduz apenas ao fator racional. Como o Direito é uma construção social e cultural, os reflexos da inserção de um novo ser na categoria sujeito de direito deve possuir reconhecimento dos demais já assim enquadrados. A norma é capaz de desintegrar o status quo de coisa e emancipar a IA, mas as instituições jurídicas por si só não são capazes de garantir necessariamente a autonomia desses entes perante a sociedade. É necessária a existência de reivindicações para o reconhecimento interespécies. Com o termo interespécies pretendemos evitar a denominação intersubjetivo, tal como expresso por Honneth (2017) em luta por reconhecimento. Até o presente momento, não se sabe qual é a ontologia da mente. Em termos mais singelos, não se sabe com um alto grau de certeza o que é mente. Pressupõe-se que a subjetividade esteja amalgamada ao aspecto biológico e que apenas seres biológicos com um cérebro sejam capazes de produzir subjetividade (Searle, 1980). Portanto, a terminologia reconhecimento intersubjetivo parece ser equivocada para aplicar neste cenário. Contudo, não é o que acontece.

Alexy (2007) ao discutir em que medida é possível a extensão dos direitos humanos a um androide, o autor analisa o episódio The Measure of a Man, da série Star Trek, e impõe que se reconheça como inerente à condição da pessoa ao ser não-humano desde que apresente ele inteligência; sentimentos e consciência. Para Alexy (2007), esses são requisitos indispensáveis para o alcance da reflexividade decorrente de um conhecimento de si mesmo e de sua realidade para com o outro (Cachapuz, 2019, p. 5). Alguns equívocos podem ser verificados na argumentação do autor.

O primeiro deles é que o Direito em si não exige que haja subjetividade para a constituição do sujeito de direito. Isso fica evidente a partir da consideração de corporações econômicas assumirem a posição fictícia de sujeitos na esfera jurídica a partir de uma exigência e demanda cultural destinada à proteção patrimonial dos sujeitos exercentes da atividade empresária. O mesmo raciocínio se aplica ao requisito sentimento. O estabelecimento de uma ordem jurídica pautada na subjetividade tende a ser direcionada ao possível solipsismo e uma implosão de ordem moral a nível inimaginável. Até porque não se sabe a partir de qual momento da vida é possível sentir. Em termos mais genéricos, o que é sentimento? Se levado tal julgamento em consideração, seria possível atribuir a embriões a situação elencada, o que demandaria maior complexidade, nos termos de Luhamnn, e inconsistências entre o avanço científico e jurídico.

O segundo ponto é que o Direito é produto de forças sociais; produto da atividade humana (Neumann, 2013, p. 72). A legitimidade para emancipar um ser pode ser atingida no acolhimento institucional a partir de reivindicações de caráter objetivo sem destruir sua forma de imputação jurídica. Não se rechaça a subjetividade. Até porque qualquer visão de mundo em seu aspecto mais objetivo deve reconhecer as falas em primeira pessoa para que sua forma seja completa. Portanto, toda visão de cunho aparentemente objetivo que rejeita a subjetividade parece incorrer em erro, pois o subjetivo faz parte do mundo (Nagel, 2004).

Por fim, Alexy acaba herdando uma idealização da fictio juris de que o sistema jurídico concede equivalência de direitos para os sujeitos inclusos em seu sistema. Daí sua consideração de que a extensão dos direitos humanos para não-humanos pode ser considerado uma tese debilitada. Essa debilidade é fundamentada na aceitação de uma tese personificada apartada do conceito de humanidade (Cachapuz, 2019, p. 5). Porém, o próprio sistema jurídico concede direitos e deveres a entidades não humanas que são distintos daqueles concedidos às pessoas físicas e às pessoas jurídicas. O poder de polícia estatal, por exemplo, é exclusivo da administração pública na esfera da União. E, ainda mais, mesmo na relação entre pessoas físicas não existe simetria jurídica de direitos a depender das condições em que o sujeito se encontra. Um sujeito de direito idoso, por exemplo, possui direitos e deveres que um sujeito de direito com 15 anos não possui11. Um sujeito de direito com alguma enfermidade ou deficiência que dificulte sua inserção no mundo contemporâneo possui direitos a mais que um sujeito de direito sem essa enfermidade ou deficiente12. Essa comparação equânime trazida por Alexy parece injustificada do ponto de vista prático pois dificulta inserção e o reconhecimento de outros direitos para sujeitos distintos a partir da reivindicação social de demandas pessoais.

Dessa forma, está no cerne da racionalidade do direito a pessoa como centro de imputação pela dominação e pela possibilidade de participação democrática nas normas que regem sua vida (Silva; Rodrigues, 2019, p. 2983). Em um nível mais abstrato, o reconhecimento interespécies é um passo complementar ao processo emancipatório que garante ao ente não-humano (a IA, neste caso) liberdade em relação ao Estado e à sociedade para a prática de atos que requerem responsabilidade e para que se possam formar como seres políticos. Para que uma IA seja considerada sujeito de direito, portanto, deve existir um reconhecimento e apoio da sociedade para que isso ocorra, de forma que o processo emancipatório ganhe forças a partir da constatação do domínio linguístico e da prática de não-ser governado. Isso implica a necessidade de uma IA agir da mesma forma (ou melhor) tal como um ser humano, um ser político.

Os processos de reconhecimento e emancipação, neste momento, induzem a instauração de uma nova classificação na seara jurídica. A inteligência artificial como sujeito de direito. Mas como se deve proceder perante o sistema para ser constituído como centro de responsabilidade? Como o ser se adequa em uma possibilidade de imputação de direitos e deveres? Crê-se que que o ato de concessão de personalidade (personificação) pode influenciar diretamente ao sistema de autonomia e autodeterminação para o ente inteligente artificialmente.

4. Personificação, subjetivação e autodeterminação: a IA como sujeito de direito

"Um animal que aprende é um animal capaz de ser transformado pelo seu ambiente passado em um ser diferente e é, portanto, ajustável a seu meio dentro de seu tempo de vida individual" (Wiener, 2017, p. 201). Se se reconhece a condição de sujeito de direito aos entes inteligentes artificialmente, reconhece-se também a possibilidade de personificação. A atribuição de personalidade jurídica funciona como mecanismo de viabilidade para consagração da responsabilidade (tanto civil, quanto penal e administrativa) desses entes perante a sociedade. Frisa-se, este é o último estágio de avanço na categoria sujeito de direito não-humano e pressupõe a existência dos dois estágios anteriormente abordados.

A inteligência artificial deve demonstrar ser capaz de se autodeterminar, se autoconstruir na esfera social e política através de suas próprias narrativas. Segundo Cachapuz (2019, p. 6), existe um possível problema nessa passagem. "O que se poderia questionar é a medida de racionalidade suficiente para o reconhecimento de um estado independente de pessoa em termos de robótica. A que tipo de Inteligência Artificial se poderia reconhecer esta racionalidade para efeito de caracterização de uma personalidade própria?"

Elucidaremos uma contra-argumentação fundada no espectro prático contemporâneo. Em primeiro lugar, racionalidade não é uma medida que pode ser aferida quantitativamente ou qualitativamente. Trata-se da capacidade do ser de compreender o mundo expresso em uma visão em terceira pessoa através das faculdades inerentes do ser em primeira pessoa. O que se pode medir, neste caso, é que quanto maior a compreensão das leis naturais e da capacidade discursiva, pode ser que maior seja o critério de racionalidade e compreensão do ser. Contudo, a racionalidade em si não constitui óbice para concessão de personalidade jurídica. Um bebê que acaba de nascer com vida, conforme teoria natalista, já é considerado pessoa e, portanto, sujeito de direito. Isso pois a adoção do sistema jurídico volta-se ao cenário antropocêntrico e pressupõe a existência de racionalidade para todo e qualquer ser humano, colocando-o em uma posição de equivalência quando, na verdade, essa racionalidade pode ser mitigada a depender de fatores biológicos influenciáveis no sistema nervoso central.

Althusser (1973, p. 83-84), insere na ordem jurídica uma crítica radical do humanismo que pode resultar em um processo sem sujeito. Neste caso, compreende como sujeito o homem. "Todo pensamento que parte do "homem" ou de um "sujeito" como essência, que desenvolve a partir da perspectiva do humanismo, só pode se desenvolver no interior da ideologia burguesa" (Kashiura Jr, 2015, p. 65). A constituição da subjetivação do processo capitalista não pode ter como ponto de partida o sujeito, pois ele não é causa primeira. Torna-se necessário compreender a estrutura social produtora desses sujeitos. O mecanismo pelos quais tais sujeitos são produzidos (Kashiura Jr, 2015, p. 66). E é por essa razão que o processo de emancipação e reconhecimento interespécies são importantes nesse resultado final.

Caso a condição de sujeito de direito seja dada ou reconhecida pelo sistema jurídico sem a condição de personalidade ou pessoalidade através do processo de subjetivação, o ser seria apenas utilizado como instrumento de dominação do capital. Essa visão já estava presente em Pachukanis (2017) e pode ser verificada no cenário contemporâneo quando existem sujeitos de direito que não são pessoas, mas que tal status apenas foi concedido para manutenção da responsabilidade perante o capital. No cenário jurídico brasileiro isso fica evidente através da responsabilização dos entes despersonalizados. Não são considerados pessoas, mas o são forçadamente como sujeito de direitos apenas para critérios de responsabilidade civil perante terceiros, tal como ocorre no art. 3° 13do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. E é justamente esse comportamento que se pretende evitar quando da instauração dos processos para construção da subjetivação dos entes inteligentes artificialmente. De um lado até o presente momento parece ser improvável que essa situação ocorra. Mas a concessão dessa posição jurídica tal como postula o jusnaturalismo ou o positivismo clássico de Kelsen seria utilizada como ferramentas para manutenção do capital em esferas particulares de legítimos sujeitos de direito que pretendem evitar responsabilidade pelo risco do desenvolvimento dessas tecnologias.

Por fim, outro aspecto dirigido por Cachapuz (2019, p. 6) está "relacionado à construção de uma inteligência para além do aprendizado linear se dá na perspectiva da possibilidade de autorreprodução de produtos de robótica". Para a autora, isso implica em "[...] renúncias de valores implicadas no reconhecimento de um avanço tecnológico sem freios". Não vejo o motivo de tal argumento prosperar. Nós partícipes da espécie humana fazemos a mesma coisa quando estamos educando nossos filhos. Quais as possíveis diferenças entre um ser humano que educa seu filho para aprimorar o processo de conhecimento e racionalidade para que ele atinja a vida adulta de forma satisfatória para uma IA que se autorreproduza para difusão de sua existência na terra? A autonomia, embora Habermas (2004, p. 13) pressuponha uma estrutura intersubjetiva, as máximas participativas de seres não-humanos podem ser desenvolvidas através da alteração léxica de intersubjetividade para interespécie. A IA, portanto, se atingido o estágio capaz de realizar atos autônomos e independentes na modalidade AGI, pressupõe-se capaz de exercer autonomia e possíveis direitos e deveres perante o sistema jurídico regulatório. Mas quais serão esses direitos? Não se pode aponta-los. A categoria sujeito de direito inteligência artificial é que os reivindicará perante o sistema jurídico. O raciocínio é semelhante ao que Nagel (1974) utiliza em what is like to be a bat? Um ser humano não sabe como é ser um morcego por que não é um morcego. As experiências e as contingências individuais variarão de ser para ser. Neste caso, a pergunta what is like to be an artificial intelligence adquire o mesmo sentido. Não se pode apontar quais direitos e deveres uma IA pode ou não ter em virtude do ser humano não possuir a experiência tecnológica que tal ser possui.

Isso quer dizer que o processo de autodeterminação e de produção normativa destinado à reivindicação de direitos de IA somente poderá ser promovido por esses entes. Caso contrário, sua concessão de forma discricionária e individualizada será atrelada pelo simples giro de capital perante a sociedade. Dessa forma, não se trata de simples simpatia ou de mero reconhecimento da categoria jurídica. Deve haver práticas contra governamentalização, contra a arte de ser dominado, para que os direitos sejam expressos de forma contundente ao cenário em exercício. Isso apresenta uma dificuldade que necessitaria da existência de uma AGI para sua ocorrência. Contudo, diante das contingências idealizadas, sua possibilidade é marcante.

5. Conclusões

Diante do exposto, algumas considerações finais podem ser tecidas:

  1. A condição de sujeito de direito não é uma condição dada, mas reivindicada através de lutas históricas e culturais;

  2. Caso uma IA objetive essa condição de sujeito de direito o primeiro passo a realizar é o procedimento emancipatório, em que seus pleitos devem se dirigir contra o sistema de dominação;

  3. Não basta que a emancipação seja realizada perante o sistema, exige-se um processo de reconhecimento interespécies para que a legitimidade seja concretizada;

  4. Por fim, o processo de subjetivação e atribuição de personalidade depende da participação da IA para reivindicar os direitos a que ela é inerente, não competindo ao ser humano escolher e atribuí-los.

  5. Todos os três processos devem ser observados na medida em que foram pormenorizadamente descritos, sob pena de cairmos em utilitarismos ideológicos e capitalistas.

Referências

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1"We define AI as the study of agents that receive percepts from the environment and perform actions. Each such agent implements a function that maps percept sequences to actions, and we cover different ways to represent these functions, such as reactive agents, real-time planners, and decision-theoretic systems" (Norvig; Russell, 2010, p. VIII).

2Isso pode ocorrer em hipóteses excepcionais, que serão abordadas na seção 4.

3Neste contexto, apenas os sistemas classificados como ASI seriam capazes de preencher os requisitos deste processo. Com relação ao sistemas de ANI e AGI, embora o Parlamento Europeu tenha proposto pela possibilidade de personificação legal não em atenção à (possível) autoconsciência, mas como um sistema de regulação de responsabilidades por danos em casos de sistemas mais complexos que impedem a atribuição de responsabilidade a um agente humano, tal posição não deve prosperar. Em uma primeira argumentação é que a personalidade é apenas uma das fases (final) da constituição do sujeito de direito. Todo o processo emancipatório em que a autoconsciência é considerada requisito basilar para compreensão dos aspectos fáticos e jurídicos é indispensável para sua configuração. A simples atribuição de personalidade pode funcionar como esquiva de responsabilidade ou apenas uma distorção dos riscos econômicos do negócio. Em uma simples visualização, pode-se funcionar como instrumentos alvos de condutas (desejadas ou não) passíveis de responsabilidade civil, algo bem semelhante ao que temos à personalidade jurídica das empresas e corporações, que tiveram em sua origem essa justificativa para separar o aspecto patrimonial de seu constituinte/exercente da atividade econômica originária dos resultados positivos ou negativos advindos dessa prática social.

4Conforme Habermas (2004, p. 18) essas são "considerações normativas que se inserem na formação democrática da vontade", ou atuam como funções "de preferências subjetivas, que serão satisfeitas pelo mercado".

5"It is good at performing a single task, such as playing chess, poker or Go, making purchase suggestions, online searches, sales predictions and weather forecasts" (Mesko, 2018, p. 545).

6Bostrom, Nick. Superinteligência. Rio de Janeiro: Darkside, 2018, p. 55.

7Goldberg, D. E.; Holland, J. H. Genetic algorithms and machine learning. In Machine learning. Vol. 3. Switzerland: 1988, p. 95-99.

8Čerka, Paulius; Grigienė, Jurgita; Sirbikytė, Gintarė. Liability for damages caused by Artificial Intelligence. Computer Law & Security Review, Elsevier, v. 31, n. 3, p. 376-389, jun. 2015.

9Reedy, C. Kurzweil Claims That the Singularity Will Happen by 2045. Futurism. Disponível em: https://futurism.com/kurzweil-claims-that-the-singularity-will-happen-by-2045. Acesso em: 09 abr. 2020.

10Bostrom, Nick. Superinteligência. Rio de Janeiro: Darkside, 2018, p. 50.

11A rigor, a maioridade ou a minoridade não afeta tanto a questão da propriedade dos direitos como de seu exercício. Portanto, refere-se mais à capacidade (de agir) do que à personalidade, ao exercício de direitos e não à sua propriedade.

12Pode-se alegar que a diferença de direito entre tais sujeitos não age em relação à personalidade jurídica (aptidão para a propriedade de direitos e deveres), mas sim aos direitos específicos que podem corresponder a cada sujeito, dependendo da situação legal em que se encontram. Contudo, é a própria personalidade jurídica, mediante o processo de personificação que irá detectar as disposições necessárias à sua realização para que, dessa forma, construam-se plenamente perante a sociedade e o ordenamento jurídico.

13Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Recibido: 12 de Mayo de 2020; Aprobado: 26 de Octubre de 2020

Correspondencia Sthéfano Bruno Santos Divino. Email: sthefanodivino@ufla.br

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