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Revista de Bioética y Derecho

versión On-line ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  no.55 Barcelona  2022  Epub 20-Ene-2023

https://dx.doi.org/10.1344/rbd2022.55.36655 

BIOÉTICA ANIMAL

Biopolítica multiespécie: animais dóceis e matáveis

Biopolítica multispecie: animales dóciles y matables

Multispecies biopolitics: Docile and killable animals

Biopolítica multiespècie: animals dòcils i matables

Higor Esturião*  , Marta Luciane Fischer* 

*Biomédico pela Univesidade Federale Fluminense. Mestre en Bioética pela Pontificia Universidade Católica do Paraná (Brasil)

*Bióloga, Artista Plástica, Mestre e doutora em Zoologia. Líder do grupo de Pesquisa Bioética Ambiental. Docente Pontificia Universidade Católica do Paraná. (Brasil)

Resumo

A partir de conceitos propostos por M. Foucault e G. Agamben, tais como biopolítica, disciplina, soberania e vida nua, realizamos uma discussão sobre os conflitos de interesse existentes na relação humano-animais contemporâneas, e apostamos na biopolítica como uma de suas chaves de leitura. A hipótese é de que os referenciais biopolíticos podem enriquecer a discussão sobre as relações humano-animais, ética animal e bioética. A partir de uma revisão bibliográfica exploratória, levantamos diversas pesquisas que apontam que, por um lado, a biopolítica não é um modo de governo exclusivo da vida humana, e se estende, antes, a toda uma série de viventes: de camundongos de laboratório a vacas leiteiras; por outro, se os animais estão imersos no paradigma da majoração da vida, seus corpos e vidas também são expostos ao poder soberano. Portanto, temos produção, administração e disciplina, mas também temos vida nua, soberania e mortes sem assassinatos. Os animais flutuam, ao menos em algumas relações, entre vidas dóceis e vidas matáveis.

Palavras-chave: bem-estar-animal; ética animal; bioética; especismo; experimentação animal

Resumen

Partiendo de conceptos propuestos por M. Foucault y G. Agamben, como biopolítica, disciplina, soberanía y vida desnuda, realizamos una discusión sobre los conflictos de intereses existentes en la relación humano-animal, y apostamos por la biopolítica como una de sus claves de lectura. La hipótesis es que las referencias biopolíticas pueden enriquecer la discusión sobre las relaciones humano-animal, la ética animal y la bioética. A partir de una revisión bibliográfica exploratoria, planteamos varios trabajos que señalan que, por un lado, la biopolítica no es una forma exclusiva de gobernar la vida humana, sino que se extiende a toda una serie de seres vivos: desde ratones de laboratorio hasta vacas lecheras; por otro lado, si los animales están inmersos en el paradigma de aumentar la vida, sus cuerpos y vidas también están expuestos al poder soberano. Entonces tenemos producción, administración y disciplina, pero también tenemos vida, soberanía y muerte sin asesinato. Los animales fluctúan, al menos en algunas relaciones, entre vidas dóciles y vidas que se pueden matar.

Palabras clave: bienestar animal; ética animal; bioética; especismo; experimentación animal

Abstract

Based on concepts proposed by M. Foucault and G. Agamben, such as biopolitics, discipline, sovereignty and naked life, we held a discussion about contemporaneous conflicts of interest present in human-animal relations and bet on biopolitics as one of its keys for reading. The hypothesis is that biopolitical references can enrich the discussion about human-animal relations, animal ethics and bioethics. From an exploratory bibliographic review, we raised several works that point out that, on the one hand, biopolitics is not a government exclusive of human life, and extends, rather, to a whole series of living beings: from laboratory mice to dairy cows; on the other hand, if animals are immersed in the paradigm of augmentation of life, of biopolitics, their bodies and lives are also exposed to sovereign power. Therefore, human-animal relations are constituted by production, administration, and discipline, but also bare life, sovereignty, and deaths without murder. Animals float, at least in some relationships, between docile land killable lives.

Keywords: animal welfare; animal ethics; bioethics; speciesism; animal experimentation

Resum

Partint de conceptes proposats per Michel Foucault i Giorgio Agamben -com biopolítica, disciplina, sobirania i vida nua-, desenvolupem una discussió sobre els conflictes d'interessos existents en la relació humà-animal i apostem per la biopolítica com una de les seves claus de lectura. La hipòtesi és que les referències biopolítiques poden enriquir la discussió sobre les relacions humà-animal, l'ètica animal i la bioètica. A partir d'una revisió bibliogràfica exploratòria, plantegem diversos treballs que assenyalen que, d'una banda, la biopolítica no és una forma exclusiva de governar la vida humana, sinó que s'estén a tota una sèrie d'éssers vius: des de ratolins de laboratori fins a vaques lleteres. D'altra banda, si els animals estan immersos en el paradigma d'augmentar la vida, els seus cossos i vides també estan exposats al poder sobirà. Llavors tenim producció, administració i disciplina, però també tenim vida, sobirania i mort sense assassinat. Els animals fluctuen, almenys en algunes relacions, entre vides dòcils i vides que es poden matar

Paraules clau: benestar animal; ètica animal; bioètica; especisme; experimentació animal

1. Introdução

De fato, os animais não foram o foco de Foucault. Eles aparecem como metáforas para se pensar a relação entre os homens. O autor se ocupava da investigação da arqueologia dos saberes e como ocupam certos posicionamentos táticos, decifrando os poderes que organizam o espaço, esquadrinham o tempo e articulam as forças do corpo. Bem como questionava o surgimento de uma política que tem no biológico sua superfície de inscrição. Realmente, seus problemas teóricos são eminentemente humanos (Taylor, 2013). Ou além, como bem nos informam diversas teóricas feministas e teóricos que pensam as questões de raça e colonialidade, seus textos dizem respeito a humanos particulares: homens europeus e citadinos. Loucos, pervertidos, prisioneiros, mas todos ainda demasiadamente brancos.

Os escritos de Foucault ainda permanecem extremamente vigorosos ao informar sobre como os exames, a norma e a vigilância nos formam, ou sobre como nossas vidas somáticas são o objeto central de disputa dos poderes políticos. Ainda além, percebemos como seus conceitos são profícuos mesmo nos problemas que não investigou: vemos crescer a envergadura dos estudos de gênero que tomam os textos foucaultianos como uma de suas bases. Concomitantemente, desponta Agamben cujos escritos sobre filosofia política, Estados modernos e direito tem ganhado notoriedade. É a partir da coletânea homo Sacer que Agamben delineia suas mais famosas ideias e permite dialogar com Foucault (Agamben, 2007). Nesse sentido, questiona-se por que não reconfigurar seus conceitos para pensar nossas relações com os animais? Afinal, se os poderes microfísicos se espalharam por toda a sociedade, não seriam os animais agentes/objetos fundamentais nesta trama? Por sua vez, para a biopolítica ser efetiva, em seus objetivos de majoração da vida humana, ela não precisaria dos corpos animais para atingir seus objetivos? Os espaços de criação dos "animais-de-fazenda", os laboratórios biomédicos, os zoológicos e mesmo os domicílios não seriam sítios biopolíticos onde o crucial é a relação entre vida e política? Faremos assim, primeiramente, uma rápida passagem por Foucault e Agamben para explicitar algumas ideias relevantes para esta pesquisa, para em seguida, realizarmos uma exposição de autores que têm discutido os conflitos de interesses nas relações humano-animais a partir de uma perspectiva biopolítica. Esperamos, assim, demonstrar a potência de se pensar os animais biopoliticamente.

2. Poderes microfísicos

Então, se para Foucault, a politização da vida começa em torno dos séculos XVII e XVIII, com as técnicas disciplinares, para Agamben, a biopolítica coincide com o nascimento do Ocidente na Antiguidade. Sua tese então "corrige" a de Foucault ao apontar que o traço é a indiscernibilidade entre fato e direito, entre zoé e bios, entre dentro e fora. Nos estados de exceção, um espaço onde a aplicação da norma está suspensa, mas também onde está em vigor, surgem duas figuras codependentes: o homo sacer e o soberano. Enquanto o primeiro, é concomitantemente insacrificável e matável; o soberano decide sobre o estado de exceção, uma vez que possui a força de desaplicar a norma e o poder de afastar a lei. Assim os corpos se tornam matáveis; vagueiam pelo campo sem rumo, sem proteção e sem uma bios qualificadora: são vida nua, que podem ser mortos sem que se cometa assassinato. A palavra campo para Agamben (2007) representam os campos de concentração nazistas que não permaneceram restritos à Segunda Guerra, mas constituem o paradigma da sociedade atual.

Ganhamos, assim, outras perspectivas para pensar as relações humano-animais. Se, por um lado, a biopolítica precisa dos corpos animais para aplicar seus efeitos e suas táticas, se precisa destas vidas para produzir saúde e conhecimento, por outro, a relação humano-animal não pode ser analisada tomando unicamente os efeitos positivos do poder. Mesmo no laboratório, onde tais efeitos talvez sejam mais visíveis do que em outros sítios e espaços políticos, como os matadouros, os animais, ainda sim, estão em pontos temporais específicos, expostos a uma violência bruta que os destitui de qualquer revestimento ético, jurídico ou político. Existe norma, vigilância, poderes da ordem do micro que visam um cuidado, uma administração populacional e individual, mas também existe matabilidade. Em suma, Foucault e Agamben parecem fornecer ferramentas teóricas úteis para se pensar a realidade ambivalente da relação entre humanos e animais: administração e disciplina de um lado, e violência e soberania, de outro. Docilidade e/ou matabilidade.

3. Entre espécies

Clare Palmer (2001), figura dentre as primeiras acadêmicas a utilizar uma perspectiva foucaultiana para pensar fenômenos sociais em que animais e humanos são protagonistas. A autora elaborou uma extensa preocupação com o uso dos conceitos de Foucault em contexto outro que o seu original, especialmente os de poder, dominação e resistência. Como ela descreve, para Foucault, relações de poder são, ao menos em certa medida, maleáveis e abertas a contra-efeitos: o poder não se exerce de forma unilateral, não é totalmente previsível em suas consequências e confere espaço para ações e respostas. Dominação, do outro lado do espectro, é um exercício em que a resposta de um dos polos da relação é quase inexistente; seu paradigma seria a do "escravo acorrentado impedido de se mover" (Palmer, 2001:345). O que diferencia, então, poder de dominação é a capacidade de resposta que elas engendram. Em alguns momentos do artigo a autora afirma que as relações entre humanos e animais ora se configuram como poder e ora como dominação, e que, não raramente, esse intercâmbio pode ocorrer no mesmo espaço, inclusive com o mesmo animal. É importante ressaltar que as relações nunca estão dadas de uma vez: elas são, em parte, de dominação e envolvem instrumentalidade, mas, também envolvem afeto, parentesco e trocas; trabalho conjunto e cuidado.

Dois pontos devem ser levantados, primeiro, existe sujeição de uma espécie a outra: os horizontes de possibilidade dos animais confinados, seja em biotérios, seja em fazendas-industriais que se tornam cada vez mais intensivas (Singer, 2010), é bruscamente reduzido pelas práticas e visões de mundo humanas. A opressão é estrutural - pois baliza uma cosmologia -, se estabeleceu historicamente e convém chamá-la de alguns nomes, sendo "especismo" apenas um deles. Mas o interessante, apesar da dominação e da presença de um poder que é negativo por excelência, é que nos ambientes em que humanos e animais interagem, existem táticas criadoras. No caso das práticas descritas por Palmer (2001), inúmeras são as positividades produzidas: os próprios animais, que tem seus corpos moldados e seu comportamento adestrado, novas formas de genoma, tecnologias, subjetividades, fármacos, mercadorias e diferentes tipos de saber. Em segundo lugar, é frutífero combinar a ideia de prática constitutiva - que, segundo Palmer (2001), é aquela prática em que os humanos modificam biologicamente certos animais - com a noção de corpo-self de Acampora (2006). O bioeticista chama atenção para a imbricada relação entre ambiente e indivíduo, ao afirmar que ambos se co-constituem mutuamente. No caso dos animais de laboratório, onde a gaiola é quase a totalidade de seus mundos, a constituição de seus corpos e individualidades se dá a partir de um ambiente carcerário ou, como ele coloca, "os roedores chegam a assimilar fenomenalmente o carcerário no carnal" (Acampora, 2006:99). É relevante pensar que - e isto é importante tanto para a bioética quanto para a ética animal -, ao considerar os objetos como entidades relevantes na análise, outros aspectos da relação humano-animal ganham notoriedade moral. Basta pensar no bem-estarismo: seus discursos realizam um recorte do fenômeno e nos direcionam para certos problemas éticos - por exemplo, o espaço da gaiola do animal, a falta de água ou comida, ou ainda, a falta de anestésicos; contudo, ao redimensionar os objetos como entidades significantes da relação humano-animal, outros problemas surgem: a caixa onde estes os camundongos vivem, independentemente do tamanho, não seria um ato de disciplina (e violência) por si só? Elas também não deveriam entrar no escopo ético? Nesse sentido, ao estudar as relações humano-animais não devemos partir do pressuposto de que os elementos dessa relação são, como implicitamente se sugere, somente os humanos e os animais. Ao contrário, participam em cena inúmeros outros atores inorgânicos, tão importantes quanto aqueles. Esturião e Fischer (2021) denominaram essa representação de dispositivo da cobaia, um conjunto de discursos e práticas que implicam tanto instrumentalidade quanto afetividade, e que, por meio de suas técnicas, transformam animais em cobaias.

De fato, os humanos e animais não estão prontos de antemão, mas são forjados dentro de uma imbricada rede que constroem entre si (o papel que cada um desempenha é, claro, assimétrico). Neste emaranhado, os objetos, as técnicas, ou a própria arquitetura são personagens tão centrais quanto os vivos. A jaula, os fármacos, os antibióticos, os anestésicos, o aparelho de debicagem, as novas tecnologias de modificação genética, o surgimento dos computadores, enfim, toda uma infinidade de objetos cruciais. Latour (2012) talvez seja um dos teóricos contemporâneos que mais insistiu na ideia de que os objetos têm agência, leia-se, poder de ação.

O modo como as novas tecnologias vem a desempenhar mudanças significativas numa rede interdependente é exposto no artigo de Holloway (2013), onde, conjuntamente com colegas, comenta sobre a introdução de máquinas leiteiras mecanizadas, e como elas são importantes para manter as vacas num regime disciplinar. Partindo das alegações feitas pelas empresas que fabricam estas máquinas - que enfatizam a liberdade que o animal obtém ao se utilizar o equipamento -, os autores mostram, pelo contrário, como as vacas são recapturadas para atender ao ordenamento sutil de poder. A partir dos robôs, elas se habituam a uma rotina e interiorizam comportamentos que são esperados por parte dos fazendeiros; sua subjetividade é construída em um pequeno regime de verdade; é efeito e objeto de aperfeiçoamento. Seus horários são regulados, assim como seus espaços: existe o local da ordenha, da alimentação e do descanso. Ao mesmo tempo, as máquinas coletam dados referentes ao leite e sua qualidade, dispondo assim de um discurso de verdade sobre o que as vacas são naquele local: produtoras de leite, que pode ou não estar saudável, que contém uma determinada quantidade de cálcio e outra de gordura. A máquina possui discursividade sobre os animais com os quais se relaciona. Produção de saber a partir de táticas pequenas de poder, portanto. Mas os efeitos também são sobre os fazendeiros: eles também precisam se adequar ao novo regime.

Nos termos desse trabalho, a morte é o espaço-tempo que se situa nos confins da biopolítica e entra mais profundamente no terreno da soberania, a qual, ao excluir a vida de toda sua significação possível, a captura como corpo matável. Os porcos prestes a morrerem, que chegaram ao "ponto final de uma vida dócil" (Thierman, 2010:103). São estes corpos descartáveis que devem ser transformados em um produto comercializável. São vida nua produzidas politicamente em um estado de exceção. Mas um ponto deve ser destacado: Thierman (2010) estava correto ao distinguir determinadas relações humano-animais de outras, com base no tipo de poder exercido e na possibilidade de reposta. De fato, os gatos domésticos - como Yuri, o gato discutido no artigo de Palmer (2001) - possuem mais liberdade para exercer suas vontades e, não raramente, podem resistir e entrar em confronto com seu responsável humano. Yuri, apesar do regime disciplinar que lhe é imposto, pode urinar fora do local esperado, pode arranhar, morder e eventualmente fugir. Os porcos, entretanto, estão muito mais constrangidos. Mas é importante frisar que ainda existe biopolítica mesmo no momento do abate e que, reversamente, a soberania marca sua presença ao longo da vida de muitos animais.

Estes modos de manejo da vida e morte são interpenetráveis e se confundem nos coletivos biossociais. Para que as galinhas sejam amontoadas em pequeníssimas gaiolas, a operação primária é a destituição de todo revestimento político, isto é, a transformação de indivíduos em meros corpos destinados a produzir ovos: a exclusão inclusiva possibilita a razão instrumental, e o galpão onde vivem as aves se constitui como um espaço da exceção, como escreveu Wadiwel (2002). Do outro lado, as mortes dos inúmeros animais de fazenda fazem parte de uma rede biopolítica maior, pois são integradas em um contexto de saúde da população humana - não são tão frequentes, afinal, as recomendações feitas pela medicina e nutrição sobre o benefício de carnes e outros derivados para o corpo humano? O mesmo ocorre ainda mais significativamente no mundo da ciência: a idônea justificava do uso de animais em experimentações é justamente o avanço do conhecimento e a potencial criação de novos fármacos e terapias que atenuem e, eventualmente, curem doenças humanas. As categorias da esperança e do progresso são aquelas que sustentam uma biopolítica que envolvem a morte das "cobaias": o mal menor que nos deixa saudáveis.

Animais e humanos estão inseridos em uma trama em que as tensões não cessam. Nos coletivos biossociais se entrecruzam forças soberanas com manejos disciplinares. Entre as hierarquias - a de humanos e animais sendo somente uma delas - os sujeitos e objetos (vivos ou não) são continuamente formados a partir das suas interações recíprocas, do poder produtivo e das trocas com o exterior do coletivo. O relevante aqui é entender a transição contínua entre estados, e nunca partir de uma definição a priori e final. Em momentos específicos, os animais têm mais individualidade; em outros, são commodities. Os humanos, por sua vez, também estão em constante formação, e sua verdade é produzida conjuntamente com os outros seres do seu mundo. Homens, máquinas e animais não são entidades prontas, mas processos em formação em um regime de verdade e poder. Podemos, então, falar de dispositivos (Esturião; Fischer (2021).

Foucault (2017b) define os dispositivos como aquilo que abarca relações entre práticas discursivas e instâncias políticas e econômicas ou, de outro modo, como o conjunto de instituições, tratados morais e filosóficos, saberes científicos, forças econômicas e como eles se articulam para responder a uma urgência social. Assim, ao falar de dispositivo da sexualidade, Foucault refere-se a toda trama discursiva e não-discursiva que captura e produz a sexualidade: os saberes médicos que recaem sobre a homossexualidade, a psiquiatrização das histerias, a família e as escolas. O conceito de dispositivo é útil pois evidencia que diferentes instâncias sociais ou diferentes tipos de saber podem estar relacionados na produção de objetos e sujeitos. Quer dizer, a noção de dispositivo diz respeito a estratégias. Costa e Castro (2016) discorreram sobre o dispositivo cardápio. Partindo do objetivo de desnaturalizar e politizar o ato de comer, os autores alertaram que o dispositivo cardápio não "se resume aos livretos que nos oferecem em padarias, lanchonetes, bares ou em restaurantes, mas sim, a toda malha discursiva que promove apologias sem parecer que assim as sejam" (2016:80). O dispositivo cardápio, então, é essa estratégia ampla que envolve diferentes saberes, instituições e sujeitos. Os saberes, como a medicina e filosofia, legitimam ou biologizam a alimentação baseada em derivados animais - é "natural"; instituições como a escola ou a família, por sua vez, são importantes para perpetuar visões de mundo, como o especismo; por fim, o produto (e objeto de disputa) final do dispositivo é um sujeito docilizado, que incorpora uma alimentação carnista em sua rotina como algo dado ou universal. Comer carne e consumir outros derivados animais torna-se um hábito quase inconsciente e distante de qualquer consideração moral. O dispositivo cardápio é o responsável pela produção em massa de sujeitos afastados - moral e sensivelmente, mas também geograficamente, visto que os matadouros estão longe dos centros urbanos - dos problemas e sofrimentos enfrentados diariamente pelos animais criados na pecuária, assim como das consequências ambientais atreladas ao consumo de carne. A dor sentida pelos animais de fazenda é o ponto cego do indivíduo que se entranhou no dispositivo cardápio.

Os animais, no caso, aqueles criados na agropecuária, também são produzidos neste dispositivo. Tanto no sentido literal da palavra, visto que seus corpos são modificados para atender as demandas do mercado, tanto no sentido simbólico. Os frangos por exemplo, crescem rapidamente, gerando lesões graves em seus membros; os bezerros, que são mortos para venda de vitela, passam por um confinamento cujo objetivo é deixar sua carne mais macia e branca; fora os usos ainda não totalmente desbravados da modificação genética destes animais. Os dispositivos possuem seu materialismo e se corporificam nas inúmeras técnicas e aparatos que maximizam atributos específicos do animal, como a quantidade de gordura, ou que regulam seus ciclos, como no exemplo da inseminação de vacas leiteiras. No caso do dispositivo cardápio, aquele elemento que une todo o coletivo biossocial é justamente a carne e todas as variáveis biológicas envolvidas. O poder do dispositivo é aquele que incide sobre a própria biologia: o sangue, os músculos, a gordura, a alimentação diferenciada, os antibióticos, todos são atores centrais desta trama. Muitas vezes (mas nem sempre, como iremos argumentar), estes atores são o "próprio animal". Isto é, o animal é entendido a partir de seus componentes biológicos que devem se harmonizar na produção da carne final, e não como um indivíduo que possui laços com outros da sua espécie, que vive emocionalmente ou como ser vulnerável. Esta é uma das consequências nefastas do dispositivo: reduzir seres sensíveis a simples variáveis.

Já no aspecto simbólico, o dispositivo tem suas inúmeras táticas, espalhadas canonicamente em saberes diversos, permitindo a compreensão de como a ciência, a filosofia, o direito e inúmeros outros saberes relegaram os animais ao lugar da falta. Simone de Beauvoir (1980) concebia a mulher como o grande "Outro" (aquela que não exerce política, não tem cultura, não tem desejo, e seu espaço é aquele do lar na reprodução da espécie), os animais, seriam o Outro do outro. Segundo a psicanálise, não possuem linguagem - atributo único dos homens e fundante da vida psíquica -, e por isso, estão condicionados por seu instinto; vivem assim, em estado mecanizado, em modo de estímulo-resposta. A antropologia estrutural, os situa ora como importantes para a economia de uma cultura, sendo assim, "bons para comer", ora como símbolos e representações, ou seja, "bons para pensar", como colocou Lévi-Strauss (1989). Os animais entram no debate antropológico como passivos e como intermediários nas questões propriamente humanas (Mullin, 1999). O que dizer então a respeito da filosofia? Como Singer (2010) já argumentou em Libertação animal, a filosofia, de Descartes a Heidegger (1987), são saberes mais eficazes quando o objetivo é reduzir ontologicamente os animais: no mundo cartesiano, eles são autômatos como os relógios; nos escritos de Heidegger (1987), diferente do homem, são "pobres de mundo".

Costa e Castro (2016) não chegaram a incluir os saberes das humanidades em seu dispositivo cardápio, mas com certeza eles fazem parte, ao produzir uma passagem dos animais ao reino da natureza, do instinto, do mecânico e biológico. Esses saberes são fundamentais para excluir inclusivamente os animais, sendo Agamben um dos primeiros a sistematizar a visão de que a cidade dos homens é construída a partir da exclusão dos animais. Então, para além de aparatos técnicos que administram os animais quando ainda estão vivos, dos rótulos das embalagens que os transformam em ingredientes e das propagandas de massa que associam o consumo de carne à felicidade e status, as ciências humanas são também atores indispensáveis no processo que Derrida (2002) chamou de carnofalogocentrismo. Uma operação real e simbólica que continuamente visa a constituição do humano através da redução e ingestão do animal. São indispensáveis também, naquilo que Melanie Joy (2014) cunhou como carnismo: um sistema que envolve diferentes instituições que tornam possível o consumo de carne de certos animais, e não de outros.

Como já indicamos, nos dispositivos e coletivos biossociais existem relações instrumentais e de domínio, mas elas não se esgotam em si mesmas. Há afeto e trocas mesmo nestes espaços de violência (Esturião; Fischer, 2021), o que nos leva a crítica dos trabalhos que só afirmam a opressão. Sordi (2016), por exemplo, ao analisar o imaginário brasileiro da carne, afirmou que a criação dos bois passa por dois registros: em um deles, o boi é visto como um animal que demanda cuidados, sobretudo afetivos; no outro, ele é um produto, e sua vida é destinada a se transformar em carcaça. Uma zona de indistinção propriamente dita, pois ele é vivo e morto ao mesmo tempo, senciente e objeto. Sordi (2016) também argumentou que o mercado internacional, principalmente europeu, ao demandar uma carne de qualidade, criou o terreno para inserção de práticas de cuidado e manejo racional. Nesse sentido, O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e organizações de bem-estar-animal, promovem uma criação mais "consciente", prezando simultaneamente pela qualidade do produto e pela saúde física e psicológica do boi. Assim, ao invés do bem-estarismo ser pensado como um "avanço", como muitos defendem, ou só como um impedimento para abolição do uso de animais, como quer Francione (2015), pode ser pensado como uma das táticas componentes de um dispositivo mais amplo que captura e administra a vida dos animais e humanos em diferentes coletivos biossociais.

Iara Souza (2017), em seus estudos etnográficos, também comentou sobre as contradições existentes nestes espaços. Ela tomou o biotério em sua pesquisa, e daí partiu para conclusão que neste espaço - altamente disciplinado, em que animais e humanos tem suas rotinas e espaços organizados - duas forças operam conjuntamente: uma, aquela da instituição, que demanda os animais como corpo-fisiológico; e outra que atua a partir dos afetos. A primeira é completamente instrumental, e é o que permite o uso "científico" dos animais nos experimentos. A segunda, ao contrário, é aquela que demanda cuidado e sensibilidade por parte dos trabalhadores. E não que a segunda seja simplesmente o resquício da não completude da primeira; não significa que os trabalhadores possuem afeto simplesmente porque ainda não foram "colonizados" pela razão instrumental. Antes, o carinho, a troca e a sensibilidade são fundamentais para fazer o uso de animais sequer possível (Esturião;Fischer, 2021). Algo que vai na contramão da maioria dos estudos sobre esta prática, que categoriza a experimentação científica como desumana por desconsiderar a dor e vida dos animais. Isto acontece, mas a totalidade do laboratório-biotério está longe de ser simples instrumentalidade. O poder também se manifesta na atenção cuidadosa.

Como Souza (2013) escreveu em um artigo anterior, "é necessário não confundir o resultado (animais instrumentalizados, explorados como fonte de alimento e trabalho) com o processo. A preocupação com os resultados talvez esconda uma relação de cuidado na qual o animal não pode ser reduzido a objeto" (2013:246). Muitas relações entre humanos e animais são, de fato, perpassadas por um cuidado, mesmo que à primeira vista tudo não passe de exploração. Teixeira (2016), ao realizar etnografias dos circuitos de cinofilia no Brasil, levantou a ideia de que a criação de cães de raça pura não se resume a interesse econômico; ao contrário, como mostra através das falas dos sujeitos entrevistados, o afeto pelos animais talvez seja o primordial. Como explana Marco, criador da raça Lhasa Apso, e uma das pessoas que participou da pesquisa de Ivana: "[...] quem entra no ramo da cinofilia é porque se apaixona pelos cães, pois não dá dinheiro, só despesa" (2016:113).

Richard Twine (2007), por sua vez, ao pensar sobre as novas biotecnologias utilizadas em contextos de agropecuária, chamou a atenção para uma ambivalência. As relações humano-animais no Ocidente, pelo menos do século XX à atualidade, são marcadas, de um lado, por um valor instrumental, típico de um paradigma produtivista que oferece aos animais o mesmo tratamento das máquinas; do outro, em sintonia com mudanças culturais mais amplas, sobretudo no que tange as questões de sustentabilidade e valores humanísticos, os animais são considerados seres merecedores de uma qualidade de vida digna. Para o autor, é uma contradição entre valores modernos ou industriais, e pós-modernos ou pós-industriais. Saberes e práticas como o bem-estarismo, por exemplo, estariam situados no meio desta confluência entre valores, por objetivarem minimizar o sofrimento dos animais, sem, contudo, deixar de utilizá-los para produção de conhecimentos e produtos. Sua tese principal é que o uso de novas biotecnologias, derivadas principalmente da genética, podem ser encaradas como a solução para satisfazer os dois valores, industriais e pós-industriais: o paradigma da produção ainda se mantém, mas é revestida por valores de sustentabilidade naquilo que ele chama de "bioeconomia" (2007:101). O uso da genética e a nova preocupação com o meio ambiente se tornam novas fontes de aproveitamento e lucro no capitalismo tardio e pós-industrial.

Aqui, é importante entender que Twine está evidenciando uma dupla relação com os animais, que ora são "código informacional" (2007:110), ora são seres sencientes susceptíveis a mal-estar e sofrimento. Isso fica nítido quando um de seus entrevistados fala sobre como as doenças dos animais têm impacto negativo sobre os negócios, e aposta, como forma de resolução do problema, em alterações genéticas: através da produção de novos tipos de animais, poder-se-ia diminuir os impactos no meio ambiente, tornar obsoleto o uso de antibióticos, melhorar a condição de vida dos próprios animais e a dos humanos. No caso de Twine (2007), o actante do coletivo biossocial é a promoção de saúde para todos os envolvidos: animais, humanos e meio ambiente. Um tipo de poder que ultrapassa em muito uma lógica de dominação pura. E ele alerta: a visão da vida como código informacional, que leva o uso do genoma animal como fonte biológica a ser explorada e modificada livremente, é o que permite o uso de humanos para os mesmos propósitos. Usualmente, nas discussões sobre modificações genéticas em humanos, ignora-se todas as operações realizadas em animais e outros organismos. Mas não deveríamos voltar nossa atenção a eles, e perceber que é partir deles que todo o paradigma genético se constrói? Os porões da biopolítica dos genes - esta que traz ou promessas milagrosas para saúde ou apocalipses eugênicos para a humanidade - não seria no mundo extra-humano?

A preocupação com o bem-estar dos animais, por sua vez, também é tópico explorado por Cole (2011). O autor considerou os discursos bem-estaristas como a contraparte acadêmica da preocupação da sociedade civil sobre o modo como animais são tradados, e os situa como parte de uma mudança ampla dos valores culturais dos últimos anos. Esta nova era, assim, condena a ideia de animais como máquinas, e não à toa usa a obra clássica de Ruth Harrison, Animal Machines, de 1964 (Harrison, 2013), como exemplo da abertura de um novo paradigma. Mas diferente de Twine, Cole (2011) usou a noção de poder pastoral de Foucault (2014b) para pensar a tríplice relação entre animais de fazenda, produtores e consumidores.

O poder pastoral, para Foucault, é aquele que se dá entre pastor e seu rebanho, e ele utiliza esta categoria para pensar a construção das subjetividades envolvidas na confissão do cristianismo. Diferente do cuidado de si da Antiguidade, o poder pastoral opera sob uma lógica do cuidado dos outros - tarefa que recai principalmente sobre o líder espiritual. E, como escreve Nascimento (2004), "o si mesmo é justamente o que temos que renunciar, recusar, punir, purificar para cuidar do outro (2004:39). O poder pastoral, então, é composto por quatro elementos. 1) Responsabilidade: o pastor precisa cuidar dos crentes, aconselhá-los sobre suas ações e guia-los à boa vida aos olhos de Deus; 2) submissão: os crentes devem ser obedientes ao seu pastor, e isto deve partir deles mesmos; 3) conhecimento individual: não só o pastor precisa conhecer o coração e mente de cada uma de suas "ovelhas", como elas mesmas devem se autoconhecer através da confissão (é na confissão aliás, onde a verdade é produzida); 4) mortificação: os indivíduos devem renunciar este mundo carnal em vista de uma eternidade espiritual.

Cole (2011) salientou que, ao contrário do poder pastoral ter ficado no passado monástico do cristianismo, se reconfigura nos discursos contemporâneos bem-estaristas e de produção de ''happy meat", isto é, uma carne que veio de animais que não sofreram maus-tratos. As organizações bem-estaristas, a exemplo da Welfare Quality que Cole (2011) analisou brevemente, almejam melhorar as condições de vida dos animais através de mudanças de ambiente e, para verificar seus efeitos, utilizam diferentes métodos de avaliação e monitoramento. Para Cole (2011), são estes métodos que, segundo seus promotores, permitem aos animais "dizerem" como se sentem (2011:92). Os programas de bem-estar-animal e suas técnicas de monitoramento permitem que os animais se engajem em uma dinâmica onde sua verdade é produzida: se está com medo, ansioso ou irritado. É uma confissão que só pode ser compreendida por pessoas capacitadas (como os pastores), que têm experiência no ramo e que conhecem os comportamentos particulares de cada espécie. Também devemos notar que o bem-estarismo é normalizador: o objetivo é que os animais sejam os mais calmos e dóceis possíveis. Temos então, confissão e saberes sobre o indivíduo.

A responsabilidade também é um dos elementos marcantes nas organizações bem-estaristas. Sordi (2016) mesmo, como já apontamos alertou para o MAPA e como a questão da qualidade de vida dos animais vem ganhando destaque em suas diretrizes. A produção deve ser cuidadosa, por conta da senciência dos animais, mas também por conta da qualidade do produto e dos questionamentos dos consumidores que exigem melhores formas de tratamento. Isto é um dos pontos elucidados por Cole (2011): o pastor responsável não é representado somente pelo produtor de carne ou pelas organizações bem-estaristas, mas também pelo consumidor; eles assumem a forma de pastores preocupados com a vida de seu rebanho, mesmo que este já esteja morto; fazem isso ao comprar os alimentos derivados de animais que contenham um selo de qualidade, um selo que lhes conta a verdade sobre a vida e morte dos bois, galinhas e porcos. De fato, como Cole (2011) argumentou, é um modo de amenizar os desconfortos morais trazidos pela visibilidade das condições de vida dos animais de fazenda. O poder pastoral é um modo de formar subjetividades consumidoras que se sentem com "dever comprido" por comprar produtos "éticos".

A submissão e a mortificação são, para Cole (2011), os elementos menos visíveis nos discursos bem-estaristas. Mas ainda sim estão presentes. Para ele, os animais se mortificam diariamente ao se engajarem em práticas e tarefas que só tem significação em contexto de exploração. Sem as amarras dos humanos, as vacas de Thierman por exemplo, não precisariam ser disciplinadas quanto ao local de ordenha, alimentação ou descanso, e as porcas de Novek não viveriam em baias para não esmagarem seus filhotes. Uma observação, no entanto, é que diferente dos cristãos que escolhem se mortificarem e viverem almejando o mundo transcendente, os animais não possuem esse privilégio espiritual. A questão é que, nos discursos das organizações bem-estaristas, que Cole (2011) analisou, se passa uma ideia de que os animais "escolhem" participarem de determinadas tarefas, visto que a eles é concedida "liberdade". Mas estas escolhas e liberdades são visões dos humanos interessados em continuar explorando-os para os mais diversos fins. Na melhor das hipóteses, é uma "liberdade" restrita aos galpões, cercas e gaiolas. E como Cole (2011) comentou, o poder pastoral produz certas verdades, mas nega outras, como aquela fundamental de que os animais desejam continuar vivos e sem sofrimento - e verdadeiramente livres.

E por mais que existam métodos de enriquecimento ambiental, avaliações e monitoramento do comportamento animal e cuidados com seu sofrimento, eles ainda continuam em situação de submissão. Como Cole (2011) apontou, o poder pastoral, antes de ser uma solução para os dilemas éticos - como os consumidores de happy meat podem acreditar- é, primeiramente, a ferramenta que permite a contínua hierarquia entre humanos e animais: é através deste discurso que se entende que os animais devem ser "protegidos". A proteção nesse sentido, é a legitimação de um poder. E podemos perguntar: toda a produtividade discursiva, técnica e material do bem-estarismo, toda sua administração e disciplinarização dos corpos, fariam sentido em outro contexto que não de exploração especista? Os imperativos de saber como os animais se sentem, afinal, como escreve Cole, estão situados na "lógica da produtividade" (Cole, 2011:87). Não existira bem-estar sem domínio, e não há sinais visíveis de que o bem-estarismo seja o caminho que leva a abolição, muito pelo contrário.

4. Conclusão

Os textos explorados e comentados evidenciam que os conflitos de interesses nas relações humano-animais podem ser lidos a partir da perspectiva, não só da biopolítica, mas igualmente, da tensão. Nunca são unicamente repressivas, ou seja, não existe só dominação e opressão estrutural. O especismo é efeito e condição de determinadas relações, mas elas não se esgotam sob este signo. Entre humanos, animais e máquinas, existe espaço para operação de poderes mais minuciosos que objetivam o funcionamento, a organização, o aproveitamento do tempo e a majoração das forças e da vida. Ou seja, as relações entre humanos e animais são, ao mesmo tempo, perpassadas por soberania e disciplina; poderes negativos e positivos; violência e administração. A dualidade, entretanto, não se dá apenas nestes termos. As relações igualmente flutuam entre a instrumentalidade e os afetos, já que os animais não são inteiramente tratados como objetos. Nos laboratórios, nos canis e na pecuária, os animais são sujeitos e objetos, receptáculos de violência e afeto. Tais contradições são importantes de serem levadas em conta, não somente devido a sua importância analítica, mas sobretudo porque fornecem um mapa mais sutil e complexo da realidade de muitos animais.

Reforçamos, também, que áreas de estudo como a bioética, a ética animal e zoologia podem se enriquecer a partir da leitura de obras de autores da biopolítica como Michel Foucault e Giorgio Agamben. Especialmente para a bioética e a ética animal que se apoiam quase inteiramente em autores do direito ou da filosofia moral, o tema da biopolítica pode em muito acrescentar ao fornecer novos conceitos, problemas e perspectivas sobre relações humano-animais antes invisíveis. Por fim, esta pesquisa sublinha a necessidade de analisar os problemas sutilmente, aberto e localizado. Isto é, não estabelecer categorias tão rígidas, que estancariam as entidades e impossibilitariam a discussão de certos processos e aspectos do fenômeno. As relações humano-animais são diversas e complexas demais para serem todas classificadas da mesma forma - ainda que certos aspectos se repitam. É tarefa ética nos debruçarmos sobre a sutileza, ambiguidade e multiplicidade que compõem as relações humano-animais, pois só assim poderemos entender profundamente a realidade destas relações, e só a partir desta compreensão que poderemos combater as inúmeras injustiças as quais os animais são submetidos.

Agradecimientos

À bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) durante os anos de mestrado (2018-2020) no Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR.

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Recebido: 05 de Outubro de 2021; Aceito: 04 de Março de 2022

Correspondencia. Higor Esturião. Email: higorsturiao@gmail.com Marta Luciane Fischer. Email: marta.fischer@pucpr.br

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