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Revista de Bioética y Derecho

On-line version ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  n.57 Barcelona  2023  Epub July 24, 2023

https://dx.doi.org/10.1344/rbd2023.57.41221 

DOSIER DE TELEMEDICINA

A regulação jurídica brasileira do exercício da telemedicina no contexto da pandemia do COVID-19

La regulació jurídica brasilera de l'exercici de la telemedicina en el context de la pandèmia de COVID-19

La regulación jurídica brasileña del ejercicio de la telemedicina en el contexto de la pandemia de COVID-19

The Brazilian legal regulation of the exercise of telemedicine in the context of the COVID-19 pandemic

Beatriz Sena-Figueirêdo (orcid: 0000-0003-0506-3126)*    , Flávia de Paiva Medeiros-de Oliveira (orcid: 0000-0001-7806-5056)*   

*Mestranda em Direito e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE)

*Pós-graduanda em Direito Médico e Bioética na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE), Brasil

*Doutora em Direito pela Universidade de Valencia (Espanha). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora do Mestrado em Direito e Desenvolvimento do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE)

*Professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Brasil

Resumo

O presente artigo tem como tema central a regulação jurídica do exercício da telemedicina, especialmente a partir do contexto criado na pandemia do COVID-19. Neste sentido, o estudo aborda os mecanismos legais e as orientações dadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para adoção da prática. Surgem, em virtude disso, diversos questionamentos referentes à situação trabalhista dos profissionais de saúde que utilizam a telemedicina como mecanismo de trabalho. O artigo, portanto, explanará a importância da adoção da telemedicina, como também as problemáticas oriundas de sua utilização.

Palavras chave: telemedicina; direito trabalhista; pandemia; COVID-19; Brasil

Resum

L'article té com a tema central la regulació jurídica de l'exercici de la telemedicina, especialment des del context creat en la pandèmia COVID-19. L'article aborda els mecanismes legals i les directrius donades pel Consell Federal de Medicina (CFM) per a l'adopció de la pràctica. Com a conseqüència, sorgeixen diverses preguntes sobre la situació laboral dels professionals sanitaris que utilitzen la telemedicina com a mecanisme de treball. L'article, per tant, explicarà la importància d'adoptar la telemedicina, així com els problemes derivats del seu ús.

Paraules clau: telemedicina; dret laboral; pandèmia; COVID-19; Brasil

Resumen

El artículo tiene como tema central la regulación jurídica del ejercicio de la telemedicina, especialmente desde el contexto creado en la pandemia COVID-19. El artículo aborda los mecanismos legales y las directrices dadas por el Consejo Federal de Medicina (CFM) para la adopción de la práctica. Como consecuencia, surgen varias preguntas sobre la situación laboral de los profesionales sanitarios que utilizan la telemedicina como mecanismo de trabajo. El artículo, por tanto, explicará la importancia de adoptar la telemedicina, así como los problemas derivados de su uso.

Palabras clave: telemedicina; derecho laboral; pandemia; COVID-19; Brasil

Abstract

This article has as its central theme the legal regulation of the exercise of telemedicine, especially from the context created in the COVID-19 pandemic. In this sense, the study addresses the legal mechanisms and guidelines given by the Federal Council of Medicine (CFM) for the adoption of the practice. As a result, several questions arise regarding the work situation of health professionals who use telemedicine as a work mechanism. The article, therefore, will explain the importance of adopting telemedicine, as well as the problems that arise through it.

Keywords: telemedicine; labor law; pandemic; COVID-19; Brazil

1. Introdução

O ano de 2020 trouxe enormes desafios em diversas áreas da sociedade. A chegada repentina da pandemia do COVID-19 veio acompanhada de uma obrigatoriedade de adaptação nunca vista. Ao mesmo tempo em que o mundo parava, assustado com o desconhecido, viu-se a necessidade de remodelar as obrigações antes existentes, de modo que estas pudessem permanecer no novo contexto social.

Neste processo, a área da saúde teve destaque, sendo imprescindível a manutenção de seus serviços da melhor maneira possível. A telemedicina surgiu, então, como a melhor alternativa para continuidade dos serviços de saúde, evitando riscos de contágio, desafogando os ambientes médicos e dando prosseguimento aos tratamentos e consultas preventivas. A partir disto, mecanismos legais e orientações éticas precisaram irromper, a fim de assegurar a melhor maneira para execução da prática.

Apesar de ter um papel de destaque na proteção de profissionais e da população em meio a pandemia do COVID-19, a telemedicina expôs problemáticas relevantes em matéria de direito trabalhista e desigualdade social. Sob a ótica do desenvolvimento, a tecnologia é a melhor ferramenta para todos, mas, ao mesmo tempo, a falta de acesso a ela é uma ferida aberta na sociedade brasileira.

Neste sentido, o presente artigo está dividido em três seções, além da introdução e das considerações finais. A primeira aborda a autorização legal para a prática da telemedicina, discorrendo acerca do processo histórico legislativo que envolve o tema e propondo um conceito jurídico. Em seguida, apresenta-se a regulamentação jurídica do exercício da telemedicina no Brasil, bem como expõe de que maneira o contexto da pandemia do COVID-19 influenciou a prática. Por fim, propõe-se uma reflexão acerca dos problemas trabalhistas e sociais que envolvem a adoção da telemedicina no Brasil, discorrendo sobre as vulnerabilidades que dela decorrem.

2. A telemedicina e a autorização legal para sua prática: proposta de um conceito jurídico

Apesar de bastante difundida a partir do ano de 2020, em virtude da pandemia do COVID-19, a telemedicina já vem sendo utilizada há alguns anos.

Em 1993 foi criada a ATA - American Telemedicine Association, uma organização sem fins lucrativos. Esta Organização, ainda em uma realidade de poucos recursos tecnológicos, visava reunir diferentes grupos, como a Academia, sociedades médicas e o governo, a fim de discutirem e planejarem juntos os possíveis avanços da telemedicina. Seu principal objetivo era, portanto, fazer com que esta área chegasse ao conhecimento da sociedade e dos governos para que fosse possível entender a telemedicina com uma parte necessária e eficaz do sistema de saúde.

Desta forma, a ATA iniciou seus trabalhos com um propósito educacional, mas, gradativamente, se tornou a principal responsável pela elaboração de diretrizes para a prática da telesaúde em diferentes áreas, como a patológica, doméstica e mental, por exemplo. Com o passar do tempo, as inovações dos meios de comunicação foram promovendo avanços na saúde, de modo que o atendimento remoto passou a ser uma realidade constante. Atualmente, a ATA permanece desenvolvendo diretrizes através de uma equipe formada por profissionais, membros e parceiros, e conta com mais de 400 organizações comprometidas a promover a adoção da telesaúde. (ATA, 2021, online).

Tendo em vista a crescente utilização dos meios de comunicação para a área da saúde, fez-se necessária uma regulamentação jurídica capaz de proteger, delimitar e incentivar esta prática. Neste sentido, em 1999, na cidade de Tel Aviv, em Israel, a 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial promulgou a "Declaração de Tel Aviv sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da telemedicina". A Declaração traz um conceito de telemedicina que serviu de base para o que conhecemos hoje, de modo que:

A telemedicina é o exercício da medicina à distância, cujas intervenções, diagnósticos, decisões de tratamentos e recomendações estão baseadas em dados, documentos e outra informação transmitida através de sistemas de telecomunicação. (Declaração de Tel Aviv, 1999, online)

O documento traz, ainda, uma visão bastante otimista em relação à adoção da tecnologia na prestação dos serviços médicos. Esta narrativa tem muita importância, considerando o contexto em que foi feita. Por se tratar de uma Assembleia realizada em 1999, as exposições feitas vinham carregadas de expectativas em relação aos avanços tecnológicos que o novo milênio iria trazer e de que forma a sociedade iria se organizar para promover o desenvolvimento e renovação esperados. Nesse contexto, ficou plasmado que:

A utilização da Telemedicina tem muitas vantagens potenciais e sua demanda aumenta cada vez mais. Os pacientes que não têm acesso a especialistas, ou inclusive à atenção básica, podem beneficiar-se muito com esta utilização. (...) Os contínuos avanços da tecnologia criam novos sistemas de assistência a pacientes que ampliarão a margem dos benefícios que oferece a Telemedicina a muito mais do que existe agora. Ademais, a Telemedicina oferece um maior acesso à educação e à pesquisa médica, em especial para os estudantes e os médicos que se encontram em regiões distantes. (Declaração de Tel Aviv, 1999, online)

Desta forma, a Declaração reconhece os benefícios trazidos pela telemedicina, expondo como a utilização dos meios de comunicação é capaz de promover um acesso difundido aos serviços médicos, alcançando mais pessoas e otimizando o trabalho dos profissionais. Entretanto, mais adiante, a Declaração também demonstra preocupação com os pontos negativos que acompanham a prática, nos seguintes termos:

A Associação Médica Mundial reconhece que, a despeito das consequências positivas da telemedicina, existem muitos problemas éticos e legais que se apresentam com sua utilização. Em especial, ao eliminar uma consulta em um lugar comum e o intercâmbio pessoal, a telemedicina altera alguns princípios tradicionais que regulam a relação médico-paciente. Portanto, há certas normas e princípios éticos que devem aplicar os médicos que utilizam a telemedicina. (Declaração de Tel Aviv, 1999, online)

Sua principal crítica é que possa haver a substituição dos serviços presenciais pelos serviços remotos. Assim, a Declaração deixa claro que a relação médico-paciente deve ser protegida e que o contato presencial entre ambas as partes deve ser priorizado, sendo a telemedicina uma alternativa excepcional. Além disso, fica claro que, seja qual for o meio utilizado para o exercício profissional, a ética deve prevalecer. Ou seja, a telemedicina engloba todos os princípios e diretrizes de éticas profissionais que são utilizadas na prática tradicional, pois os avanços tecnológicos e as adaptações cotidianas não devem ser capazes de minar o respeito das relações pessoais.

Já no ano de 2010, percebendo como os meios de comunicação contribuíam de forma positiva para a execução dos serviços de saúde, a Organização Mundial da Saúde adotou como definição da Telemedicina:

A oferta de serviços aos cuidados com a saúde, nos casos em que a distância é um fator crítico: tais serviços são providos por profissionais da área de saúde, usando tecnologias de informação e de comunicação para o intercâmbio de informações válidas para diagnósticos, prevenção e tratamento de doenças e a contínua educação de provedores de cuidados com a saúde, assim como para fins de pesquisa e avaliações; tudo no interesse de melhorar a saúde das pessoas e de suas comunidades (WHO, 2010, p. 9, tradução nossa)

Entende-se, portanto, que a telemedicina é uma prática que possui algumas características específicas. Possui destaque o fato de que a telemedicina é caracterizada por atendimentos, consultas e exames que são realizados através das tecnologias de informação e comunicação. Ou seja, os serviços são fornecidos por meio de videoconferências, mensagens instantâneas e e-mails, por exemplo.

Outro fator importante é o que motivou o surgimento desta forma de prestação da saúde. A telemedicina não surgiu com o intuito de se tornar a regra, mas sim a exceção. Por isso, outra característica da prática é que ela deve ser utilizada quando a distância entre o usuário e o fornecedor dos serviços seja um fator crítico. Na pandemia do COVID-19, por exemplo, a telemedicina ganhou força justamente por esse elemento. O distanciamento social se fez necessário e os serviços remotos se tornaram a opção mais segura para todas as partes, evitando a ida aos hospitais e o contato físico entre profissionais e pacientes, diminuindo as chances de contágio.

É preciso enfatizar que o principal objetivo da telemedicina, é sempre melhorar a qualidade da saúde das pessoas e das comunidades. Ela surge, então, como mais um instrumento que visa aperfeiçoar e desenvolver os serviços de saúde, cuidando sempre das adaptações necessárias ao contexto social.

Neste sentido, é sabido que os avanços tecnológicos compõem um processo contínuo e inevitável. Estes avanços atingem todas as áreas da sociedade, incluindo a área da saúde. A telemedicina vem, portanto, como uma ferramenta de promoção de serviços e atendimentos médicos que acompanha estes avanços, visando a melhoria e a universalização do direito a saúde. Esta prática já era esperada, mas sofreu grande influência da pandemia ocorrida no ano de 2020, que acelerou e difundiu a sua adoção. Desta forma, demonstrou-se necessário haver cuidados específicos que direcionassem a sua execução e protegessem os envolvidos. Nesse contexto, a regulamentação jurídica surge, então, tão necessária quanto à própria atividade.

3. A regulamentação jurídica do exercício da telemedicina no Brasil: contextos pré e pós pandemia do COVID-19

A utilização da telemedicina no contexto mundial teve início ainda no século XX e foi dividida em três fases. A primeira, ocorrida nos Estados Unidos na década de 60, tratava do monitoramento da saúde dos astronautas através sistemas de comunicação. A segunda, realizou um debate acerca da pesquisa feita com experimentos e, por meio de uma intervenção no Centro Nacional de Pesquisa em Serviços de Saúde, promoveu o seu financiamento. Por fim, a terceira fase começou na metade da década de 70 e foi marcada pelos avanços da comunicação à distância e do seu uso na saúde. (Ricci apud Binda, 2000, p. 233-245)

No Brasil, o uso da telemedicina passou por muitos caminhos até a estrutura conhecida atualmente. Em 1989, foi criado a Rede Nacional de Ensino e Pesquisas (RNP), idealizada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e institucionalizado pela Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (AsRNP). A RNP, hoje vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), foi criada com o objetivo de promover o uso das redes avançadas de comunicação. Neste sentido, o próprio MCTI propôs, em 2006, a criação da Rede Universitária de Telemedicina (RUTE), que passou a ser coordenada pela RNP. O projeto tem como objetivo promover a infraestrutura necessária para adoção da telemedicina nas instituições de ensino de saúde. Assim consta que:

A iniciativa provê a infra-estrutura de serviços de comunicação, assim como parte dos equipamentos de informática e comunicação para os grupos de pesquisa, promovendo integração e conectividade e disseminando atividades de P&D das instituições participantes. A utilização de serviços avançados de rede deverá promover o surgimento de novas aplicações e ferramentas que explorem mecanismos inovadores na educação em saúde, na colaboração a distância para pré-diagnóstico e na avaliação remota de dados de atendimento médico. (Rute, 2021, online)

Ainda no campo da associação entre Academia e promoção da Saúde, em 1997, o Núcleo de Informática Biomédica (NIB) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criou o Hospital Virtual Brasileiro (HVB) com o intuito de promover a interação entre profissionais e estudantes da saúde e auxiliá-los nos serviços de acompanhamento clínico e diagnósticos. (HVB, 2021, online)

Com o objetivo de prover um amplo repositório de informações e transferência do conhecimento através da Internet nas áreas de ciências biomédicas e da saúde (...) O Hospital Virtual é uma experiência pioneira do gênero no Brasil e tem como principal objetivo auxiliar profissionais da saúde de todo o mundo no diagnóstico e acompanhamento clínico dos mais variados casos. Propõe-se, ainda, a ser um centro referencial, oferecendo ao usuário uma extensa relação de recursos disponíveis na rede, categorizados por especialidade. (HVB, 2021, online)

Em 2002, o Conselho Federal de Medicina (CFM) trouxe o primeiro instrumento normativo acerca da telemedicina no Brasil. A Resolução nº 1.643/2002 do CFM definiu e disciplinou a prestação dos serviços realizados através da telemedicina (ABMES, 2002, online). Dentre as suas disposições, além de definir o que seria a telemedicina, o CFM considerou que o desenvolvimento dos meios de comunicação é benéfico para a prestação e educação na área da saúde e reconheceu que a prática da telemedicina possui tanto aspectos positivos quanto negativos.

CONSIDERANDO o decidido na sessão plenária de 7 de agosto de 2002, realizada em Brasília, com supedâneo no Parecer CFM nº 36/2002, resolve:

Art. 1º - Definir a Telemedicina como o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audio-visual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde. (ABMES, 2002, online)

Nos termos da Resolução citada, o CFM adotou, portanto, o entendimento de que a prática deve ser realizada através da utilização dos meios de comunicação. Esta característica foi, em 2010, reafirmada pela Organização Mundial da Saúde. Ainda assim, o conceito da Resolução nº 1.643/2002 se limitava à adoção da telemedicina para fins educacionais, visto que objetivava dar suporte nas áreas de educação e pesquisa em saúde, não mencionando o seu uso para prestação de serviços e atendimentos.

Com o passar dos anos, diversos instrumentos normativos foram sendo elaborados, a fim de regulamentar diversas áreas da saúde. Pode-se citar como exemplo a Resolução CFM nº 1.821/2007, que aprova as normas técnicas concernentes à digitalização e uso dos sistemas informatizados para guarda e manuseio dos documentos dos prontuários dos pacientes; Resolução CFM nº 1.958/2010, que define e regulamenta o ato da consulta médica; a Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013, que dispõe sobre o exercício da medicina; e a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.

Neste sentido, para que fosse possível acompanhar o desenvolvimento legislativo e tecnológico, a Resolução nº 1.643/2002 do CFM foi revogada pela RESOLUÇÃO nº 2.227/2018 do CFM. Esta Resolução foi responsável por complementar as disposições daquela, ampliando o conceito de telemedicina, acrescentando a prevenção de doenças e lesões e a promoção da saúde como características, saindo, portanto, dos limites da esfera educacional. Além disso, o conceito dispôs detalhadamente de que maneira deveriam ocorrer os serviços médicos realizados pela via remota e trouxe consigo a definição de teleconsulta, entendendo, assim, que seria possível realizar consultas através dos meios de comunicação e aproximando este entendimento do que conhecemos hoje. Sendo assim, a Resolução 2.227/2018 do CFM resolve, dentre outros aspectos:

Art. 1º Definir a telemedicina como o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.

Art. 4º A teleconsulta é a consulta médica remota, mediada por tecnologias, com médico e paciente localizados em diferentes espaços geográficos. (CFM, 2018).

Ocorre que apenas um mês após a sua publicação, a Resolução 2.227/2018 do CFM foi revogada pela Resolução nº 2.228/2019 também do Conselho Federal de Medicina. Esta restabeleceu a vigência da Resolução nº 1.643/2002 e justificou que a medida foi tomada em virtude dos inúmeros pedidos realizados pelas entidades médicas para que pudessem avaliar melhor o documento, a fim de participarem ativamente das alterações legislativas necessárias.

Consta que:

Em virtude do alto número de propostas encaminhadas pelos médicos brasileiros para alteração dos termos da Resolução CFM nº 2.227/2018 - a qual define critérios para a prática da telemedicina no País-, que já chegam a 1.444 contribuições, até o momento; em atenção, ademais, ao clamor de inúmeras entidades médicas, que pedem mais tempo para analisar o documento e enviar também suas sugestões de alteração; e, por fim, tendo em vista a necessidade de tempo para concluir as etapas de acolhida, compilação, estudo, organização, apresentação e deliberação de todo o material já recebido e do que ainda será recebido, possibilitando uma análise criteriosa de cada uma dessas contribuições, com o objetivo de entregar aos médicos e à sociedade em geral um instrumento que seja eficaz em sua função de normatizar a atuação do médico e a oferta de serviços médicos a distância mediados pela tecnologia, sendo sensível às manifestações dos médicos brasileiros e das entidades representativas da classe, solicito revogar a Resolução CFM nº2.227/2018. (CFM, 2019, online)

Desta forma, a Resolução de 2019 representou um retrocesso na regulamentação da telemedicina no Brasil, pois revogou a Resolução que ampliava o entendimento da telemedicina e os critérios que justificavam a sua adoção. Assim, o tema voltou a ser regulamentado pela Resolução de 2002, uma normativa do início do milênio, que ainda não conhecia o universo de recursos tecnológicos existentes atualmente. A Resolução, portanto, acabou ignorando todos os avanços ocorridos no decorrer dos anos, como os meios de comunicação cada vez mais desenvolvidos e as regulamentações específicas, que já entendiam a telemedicina como uma ferramenta de serviços médicos, não limitada às necessidades de pesquisa e educação.

Foi neste contexto e sob este regimento que, no final de 2019, o mundo começou a dar indícios do que viria ser um dos piores momentos da história: A pandemia do COVID-19.

Quando os primeiros casos positivos do Coronavírus foram constatados, medidas de controle sanitário se fizeram necessárias. Em 3 de fevereiro de 2020, baixou-se a Portaria nº 188, declarando a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e em 6 de fevereiro de 2020, a Lei nº 13.979. Esta Lei foi a primeira a buscar direcionar as medidas que deveriam ser tomadas para conter o contágio do vírus que se alastrava rapidamente. Os direcionamentos objetivavam proteger a coletividade e, em seu artigo 3º, medidas como isolamento, quarentena e uso de máscaras foram estabelecidas.

Neste contexto, o Projeto de Lei nº 696 de 2020 foi criado, tendo como intuito permitir o exercício da telemedicina no período da pandemia do COVID-19. Esta alternativa surgiu com o objetivo de manter o distanciamento social e dar continuidade aos serviços médicos de uma maneira mais segura para a ocasião. Posteriormente, citado projeto foi sancionado e, assim, se tornou a Lei 13.989 de 2020.

4. Os problemas trabalhistas e sociais do exercício da telemedicina no Brasil

O direito do trabalho tem como cerne a proteção da relação trabalhista e de seus envolvidos. Todos os âmbitos de uma relação de trabalho precisam de atenção e a origem positivista do Direito brasileiro faz com que haja a necessidade de prescrição legal para os diversos complementos desta relação.

A pandemia do COVID-19 trouxe à tona a capacidade do ser humano de se reinventar e se adaptar, mas também expôs vulnerabilidades sociais que viviam escondidas sob o véu do desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que a sociedade, num mais completo grau de darwinismo, adapta-se para sobreviver ao meio, acaba por demonstrar também que, numa sociedade globalizada e desigual, o mais fraco não é aquele que não consegue se adaptar, mas sim aquele que não tem mecanismos suficientes para tal.

A utilização dos meios digitais para execução do trabalho foi acelerada e incentivada pela pandemia do COVID-19. No campo da saúde, a telemedicina contou, além da segurança dada pelo distanciamento social, com o fator econômico vinculado à atividade. Os atendimentos realizados pela via remota diminuíram a necessidade de haver gastos com aluguéis de consultórios, contratação de funcionários e meios de transporte, fazendo com que esta forma de prestação de serviços se tornasse mais econômica neste sentido. Ocorre que este processo acabou incentivando os profissionais a entrarem no mercado de trabalho de maneira individual, sem nenhuma formalização. A este cenário de autonomia, flexibilidade e riscos, dá-se o nome Uberização.

O termo utilizado decorre na empresa Uber, que é caracterizada pela liberdade dos motoristas no que diz respeito à atuação conforme à demanda de clientes e a flexibilidade no horário de trabalho. A Uberização se baseia nestas características aplicando-as a qualquer relação de trabalho, assim, quando analisada sob a ótica da autonomia, tem seus pontos positivos. Por outro lado, o modelo pode acarretar uma precarização do trabalho, visto que a falta de uma relação de emprego formalizada faz com que o profissional esteja desprovido de algumas garantias legais. Questões relativas às horas-extras, às jornadas exageradas e ao ambiente de trabalho, por exemplo, são riscos que o profissional terá que arcar sozinho.

No que diz respeito aos profissionais de saúde, a telemedicina veio acompanhada da Uberização. Muitos profissionais passaram a atender de casa e de maneira autônoma, fazendo com que não possuíssem qualquer vínculo empregatício ou formalização da sua atividade. Desta forma, fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas, dentre outros profissionais, começaram a exercer sua profissão sem o amparo e proteção jurídica devidos. Como explana Flávia Manuella Uchôa de Oliveira:

Se compreendemos que a uberização é uma forma de organização do trabalho, a saúde do trabalhador será afetada diretamente por ela. Quando 6/8 Rev Bras Saude Ocup 2020;45:e22 a organização do trabalho se altera, a relação saúde-doença no trabalho é também alterada. No processo de transformações profundas nos mundos do trabalho nestes últimos cinquenta anos, podemos afirmar que houve a reconfiguração e o "redesenho" do mapa de acidentes e adoecimento no trabalho. As "novas" modalidades de trabalho que surgem da fragmentação da cadeia produtiva viabilizam a superexploração do trabalhador, principalmente daqueles que estão nas pontas dessa cadeia, a partir de jornadas mais extensas, maior insegurança e vulnerabilidade. (Oliveira, 2020)

Tal fenômeno é um claro exemplo da insegurança jurídica que o trabalhador da saúde experimenta, especialmente, no contexto da pandemia do COVID-19. A uberização dos profissionais traz sérias consequências. A necessidade obrigou a adaptação da forma como os serviços de saúde seriam prestados e trouxe consigo um cenário que a proteção total de direitos, tanto de profissionais, quanto de pacientes. É necessário, portanto, promover debates que busquem identificar os impactos que tais movimentos acarretam e propor soluções. Desta forma, a sociedade poderá caminhar da melhor forma ao lado das inovações tecnológicas.

Outro problema recorrente é a desigualdade social e a dificuldade de acesso à saúde no Brasil. A desigualdade social pode apresentar diversas facetas e todas as suas manifestações são, há muito tempo, pontos que precisam ser superados. As relações sociais se desenvolvem paralelamente ao desenvolvimento tecnológico, entretanto, nem todos são atingidos da mesma maneira. Um exemplo disso é a desigualdade presente no acesso à internet no Brasil. Neste sentido, Elder P. Maia Alves dispõe que:

Significa que as privações experimentadas por esse contingente no mundo off-line serão reforçadas e acentuadas, uma vez que o processo de digitalização da vida torna imperativo - especialmente após a pandemia da COVID-19 -, o acesso e o uso da internet para, por exemplo, receber auxílios econômicos emergenciais, para realizar o cadastro em programas de auxílio e para obter a primeira via de documentos oficiais, como carteira de trabalho e o R.G - Registro Geral. Esses aspectos não autorizam, entretanto, sugerir que o Brasil não se digitalizou. A digitalização, assim com a industrialização, ocorreu de maneira desigual e concentrada, foi institucionalizada e consolidada às expensas de novas desigualdades, privações e o recrudescimento da subordinação de muitos grupos, classes e camadas sociais. (Alves, 2021)

Percebe-se que um mundo conectado e globalizado requer recursos para se manter. Infelizmente, esses recursos muitas vezes são restritos à uma parcela específica da população. O Brasil possui áreas de difícil acesso à internet e este fato compromete a adoção da telemedicina para muitas camadas da sociedade. Desta forma, fica claro que a desigualdade social é uma problemática central e que precisa de especial atenção. Tal situação precisa ser superada de maneira a acolher toda a sociedade, nas suas mais diversas parcelas, e incluí-las em todos os avanços que o mundo moderno dispuser.

5. Considerações finais

A pandemia do COVID-19 trouxe consigo a aceleração da adoção de diversos mecanismos tecnológicos. A sociedade precisou se adaptar e a prática foi uma alternativa essencial para proteção de profissionais e da sociedade e permitiu a continuidade de serviços e atendimentos da saúde.

Ocorre que o Brasil ainda possui legislações muito recentes e que, portanto, possuem muitas lacunas a serem preenchidas. Neste sentido, o Conselho Federal de Medicina desempenha um importante papel na orientação ética para as práticas que envolvem o uso da telemedicina. Apesar de ocuparem um lugar importante, as orientações do CFM não são suficientes para regulamentação de todas as questões. Existe, assim, uma insegurança jurídica muito grande e que precisa ser superada.

O uso da telemedicina é uma realidade. Profissionais e sociedade precisarão, ao longo do tempo, adaptar-se de modo a utilizarem esta prática, que será cada vez mais presente no cotidiano. Neste sentido, mecanismos legais precisaram ser criados e sempre atualizados, a fim de acompanhar o desenvolvimento tecnológico e social presente em todas as comunidades. O papel do Direito é, dentre outros, proteger a sua população. Tal proteção variará conforme o contexto e a adaptação será sempre a alternativa mais recomendada.

Referências

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Recebido: 15 de Setembro de 2022; Aceito: 30 de Setembro de 2022; : 14 de Fevereiro de 2022

Correspondencia: Beatriz Sena Figueirêdo figueiredosbeatriz@gmail.com

Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira flaviadepaivamedeirosde@gmail.com

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