Introdução
A desonestidade académica pode ser praticada sob diversas formas, como o plágio, alteração do registo de presenças de uma aula, falsificação de assinaturas, entrega de trabalhos de outros como se fossem seus, copiar ou ajudar outros a copiar durante um exame, obtenção de acesso ilegal a questões do exame, pagamento para a aprovação num exame e utilização de ‘cábulas' ou telemóveis que permitam a consulta e/ou transmissão de informação [1].
Sabe-se também que vários fatores podem ser preditores destes tipos de comportamentos. Hrabak et al [1] indicam que tanto fatores individuais como contextuais estão envolvidos. Exemplos disso são a idade, o género, fatores relacionados com a instituição, o stress, a autoestima, o tipo de personalidade, ou a pressão pelos pares [1,2]
Apesar da má conduta académica ser globalmente inaceitável, há estudantes que a consideram como um comportamento admissível [3] e a maioria dos estudantes de medicina admite ter cometido algum tipo de fraude académica, pelo menos uma vez durante os seus estudos [1]. Desta forma, surge a preocupação crescente com este tema, pois além de a desonestidade entre os estudantes de medicina poder ser um preditor de desonestidade, no futuro, na prática médica [4], esta pode igualmente resultar em falta de conhecimento médico e dano ao paciente [5].
Este trabalho teve como objetivos avaliar a conduta académica dos estudantes de medicina da FCS-UBI, a sua perceção sobre comportamentos académicos desonestos e analisar fatores que podem influenciar aquela conduta.
Materiais e métodos
Durante o ano letivo de 2014-2015, foram distribuídos questionários a todos os estudantes do Mestrado Integrado em Medicina (MIM) da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior (FCS-UBI), do 1º ao 6º anos (n = 849), que mostrassem disponibilidade para responder ao questionário proposto. Questionários parcialmente preenchidos foram excluídos. Foi assegurado a todos os envolvidos a confidencialidade das suas respostas e a sua participação foi feita de forma voluntária e anónima. O presente trabalho foi também submetido e aprovado pela Comissão de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde.
Foram recolhidos os dados sociodemográficos (género, idade, ano curricular, média do curso, frequência anterior do ensino superior, tipo de frequência/estatuto, envolvimento em atividades extracurriculares). Os dados sobre a frequência da prática de comportamentos desonestos pelos estudantes foram recolhidos através de um questionário traduzido e adaptado de um estudo de Hrabak et al [1] e onde são analisados 11 tipos de comportamentos passíveis de serem considerados como prática de desonestidade académica, classificados utilizando uma escala de Likert de 5 pontos: de 1 (‘nunca') a 5 (‘sempre'). Para avaliar a perceção dos estudantes sobre a gravidade daqueles comportamentos foi usado um questionário traduzido e adaptado de Monica et al [6] com uma escala de Likert de 4 níveis: de 1 (‘não grave') até 4 (‘muito grave').
Foram calculadas médias e desvios padrão relativamente a cada um dos comportamentos descritos, quer no que diz respeito à prática como à perceção da sua gravidade. Para verificar a relação entre estes dois aspetos foi usada a correlação de Pearson. A comparação de médias foi feita através dos testes t de Student e ANOVA. Foram considerados significativos valores de p < 0,05.
Resultados
Na população alvo de 849 estudantes, 580 (68,3%) completaram o questionário. Na tabela I encontram-se os dados que permitem caracterizar a amostra.
n | % | ||
---|---|---|---|
Género | Masculino | 410 | 70,7 |
| |||
Feminino | 170 | 29,3 | |
| |||
Idade | 16-18 anos | 578 | 9,6 |
| |||
18-20 anos | 150 | 25,9 | |
| |||
20-22 anos | 210 | 36,2 | |
| |||
22-24 anos | 112 | 19,3 | |
| |||
24-26 anos | 26 | 4,5 | |
| |||
26-28 anos | 16 | 2,8 | |
| |||
> 28 anos | 9 | 1,6 | |
| |||
Ano curricular | 1º ano | 89 | 15,3 |
| |||
2º ano | 137 | 23,6 | |
| |||
3º ano | 105 | 18,1 | |
| |||
4º ano | 102 | 17,6 | |
| |||
5º ano | 93 | 16,0 | |
| |||
6º ano | 54 | 9,3 | |
| |||
Média de curso | < 10 valores | 7 | 1,2 |
| |||
10-12 valores | 74 | 12,7 | |
| |||
12-14 valores | 218 | 37,6 | |
| |||
14-16 valores | 207 | 35,7 | |
| |||
16-18 valores | 67 | 11,6 | |
| |||
18-20 valores | 7 | 1,2 | |
| |||
Frequentou anteriormente o ensino superior | Nunca | 362 | 62,4 |
| |||
Sim, mas sem grau académico | 175 | 30,2 | |
| |||
Licenciatura | 32 | 5,5 | |
| |||
Mestrado | 9 | 1,6 | |
| |||
Doutoramento | 2 | 0,3 | |
| |||
Tipo de frequência/ estatuto | Normal/ordinário | 563 | 97,0 |
| |||
Trabalhador estudante | 17 | 3,0 | |
| |||
Atividades extracurriculares | Sim | 266 | 45,6 |
| |||
Não | 314 | 54,1 |
Verificou-se que, em média, a atitude mais frequente que os estudantes declaram praticar é ‘2. Pedir a um colega que assine por si (presença numa aula)', seguida de ‘1. Alterar o registo de presenças de uma aula' e ‘5. Copiar respostas por um colega durante um exame'. No entanto, a média da prática de qualquer destes comportamentos nunca ultrapassa o nível 3 (‘algumas vezes'), pelo que, globalmente, os comportamentos académicos desonestos são praticados poucas vezes ou nunca (Gráfico 1).
Relativamente à perceção da gravidade dos comportamentos desonestos por parte dos estudantes, verificou-se que as respostas ‘muito grave' e ‘grave' predominam em quase todos os comportamentos avaliados, à exceção de ‘1. Alterar o registo de presenças de uma aula' e ‘2. Pedir a um colega que assine por si (presença numa aula)', em que predominam as respostas ‘não grave' e ‘pouco grave'. De salientar que, apesar de ser uma minoria, mais de 15% dos estudantes classifica todos os comportamentos avaliados como ‘não graves' ou ‘pouco graves' (Gráfico 2).
Verificou-se que as atitudes consideradas mais graves são ‘11. Pagar a um examinador para passar num exame', ‘9. Usar contactos privados para passar num exame', ‘4. Falsificar a assinatura de um professor' e ‘10. Conseguir ter um examinador menos exigente através de ‘negociação' com um intermediário' (Gráfico 2). Correlacionando as médias dos comportamentos praticados com a gravidade percecionada pelos estudantes, verificou-se uma correlação muito forte negativa de –0,96.
Os estudantes que praticam mais comportamentos desonestos são do sexo masculino, frequentam um ano curricular mais avançado, têm menor média de curso e estão envolvidos em atividades extracurriculares (p < 0,05) (Tabelas II, III, IV, V). Não existe associação entre a idade, a frequência anterior do ensino superior e o tipo de frequência do curso/estatuto, e a prática ou a perceção da gravidade dos comportamentos desonestos (p > 0,05).
Género | n | Média | Desvio padrão | t | p | |
---|---|---|---|---|---|---|
Atitudes | Masculino | 170 | 1,49 | 0,426 | 3,358 | 0,001 |
| ||||||
Feminino | 410 | 1,38 | 0,298 |
Ano que frequenta | n | Média | Desvio padrão | F (ANOVA) | p | |
---|---|---|---|---|---|---|
Atitudes | 1.º ano | 89 | 1,30 | 0,480 | 3,219 | 0,007 |
| ||||||
2.º ano | 137 | 1,41 | 0,346 | |||
| ||||||
3.º ano | 105 | 1,40 | 0,318 | |||
| ||||||
4.º ano | 102 | 1,45 | 0,317 | |||
| ||||||
5.º ano | 93 | 1,45 | 0,250 | |||
| ||||||
6.º ano | 54 | 1,50 | 0,255 |
Discussão
De acordo com os nossos resultados, o aluno de medicina da FCS que mais adota uma conduta académica desonesta é do género masculino. Sabendo que o género feminino comporta, geralmente, traços de personalidade que levam as raparigas a pensar de forma mais assertiva sobre as consequências dos seus atos, nomeadamente sobre os efeitos e os riscos de atitudes académicas desonestas [7], não se tornou surpreendente que, no nosso estudo, o género masculino apresentasse maior propensão para essas atitudes.
A frequência da prática destes comportamentos aumenta com o avançar do ano curricular dos estudantes, à semelhança do descrito por outros estudos para estudantes de medicina [1,8], verificando-se que nos anos clínicos há maior prevalência de conduta desonesta, o que pode estar associado a uma formação pouco eficaz quanto a princípios éticos e morais e consequente falta de aquisição, por parte dos estudantes, ao longo do curso, de atitudes profissionais adequadas.
A média de curso é também um determinante importante em vários estudos, verificando-se, à semelhança do nosso trabalho [9,10], que os estudantes com média de curso mais elevada são aqueles que têm uma conduta académica menos desonesta. No entanto, alguns autores não encontraram uma associação significativa [1].
Tal como se verificou em investigações anteriores [11], os estudantes envolvidos em atividades extracurriculares praticam mais atitudes desonestas; uma possível explicação para esta ocorrência pode basear-se no facto de este tipo de ocupações poder interferir no tempo dedicado ao estudo. Uma má gestão dos horários ou o estabelecimento de prioridades que subestimam a importância das responsabilidades académicas pode tornar-se um grande estímulo à prática de comportamentos desonestos.
Por outro lado, o nosso estudo revelou que as práticas académicas desonestas, embora existam, têm uma baixa expressão nos estudantes de medicina da FCS-UBI. Ao contrário do que se verificou no trabalho de Mortaz Hejri et al [12], em que a prevalência de copiar em exames ou ajudar os colegas a copiar chega aos 67%, ou nos trabalhos de Hrabak et al [1] e Ferreira [8], em que mais de 90% dos estudantes afirma já ter copiado pelo menos uma vez durante o curso, os estudantes de medicina da FCS afirmam que praticam os comportamentos avaliados ‘poucas vezes' ou ‘nunca'.
Verificou-se que o tipo mais comum de desonestidade académica é ‘pedir a um colega que assine por si', indo ao encontro dos estudos de Hafeez et al [10], Hrabak et al [1], Mortaz Hejri et al [12] e Ferreira [8], que é também aquele que os estudantes consideram como moralmente menos reprovável.
A existência de uma correlação forte negativa entre os atos praticados e a gravidade a eles atribuída indica que, apesar das atitudes académicas desonestas existirem, estas não assumem os seus aspetos mais graves, segundo a perspetiva dos estudantes. Assim, os comportamentos considerados de maior gravidade a nível moral, a referir: ‘pagar a um examinador para passar num exame', ‘usar contactos privados para passar num exame', ‘falsificar a assinatura de um professor', ‘conseguir ter um examinador menos exigente através de ‘negociação' com um intermediário' ou ‘entregar para avaliação um trabalho de outro estudante como se fosse seu', são também aqueles que os estudantes declaram que menos praticam, com a resposta ‘nunca' a atingir valores perto dos 100%, o que está de acordo com os resultados de Ferreira [8], em que também os atos considerados mais reprováveis são os menos praticados.
Há, no entanto, que evidenciar a existência de uma percentagem de estudantes (superior a 15% para todos os comportamentos) que considera as atitudes como ‘não graves' ou ‘pouco graves', constituindo um grupo de estudantes particularmente propensos à prática de uma conduta académica desonesta para a qual será especialmente importante dirigir medidas de combate e prevenção.
Os resultados encontrados permitem concluir que a prevalência de comportamentos desonestos que os estudantes de medicina declaram praticar é baixa. De qualquer forma, esta constatação não invalida que seja discutida uma estratégia que evite que estas práticas ocorram, nomeadamente pela verificação de que a prática de comportamentos desonestos é mais prevalente naqueles que a consideram como menos grave; assim, torna-se importante adotar medidas de combate e prevenção especialmente dirigidas a este grupo de estudantes que não atribui gravidade a estas práticas.
A adoção de um código de conduta pelas escolas médicas poderá ser um bom ponto de partida para a consciencialização desta problemática pelos estudantes, respeitando as suas características específicas e a sua cultura, tendo em conta a sociedade em que estão inseridos.