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Cirugía Plástica Ibero-Latinoamericana

On-line version ISSN 1989-2055Print version ISSN 0376-7892

Cir. plást. iberolatinoam. vol.47 n.1 Madrid Jan./Mar. 2021  Epub Aug 02, 2021

https://dx.doi.org/10.4321/s0376-78922021000100001 

EDITORIAL

Suzanne Noël (1879-1954) - Pioneira na prática da Cirurgia Estética e na defesa dos Direitos das Mulheres

José Manuel Amarante2 

2Cirurgião Plástico; Professor Catedrático Emérito da Universidade do Porto

Em 11 de novembro de 1878 nasceu em Laon, no noroeste de França, no seio de uma família da classe média, Suzanne Gross, três anos depois da primeira francesa se ter diplomado em Medicina.(1)

Casou-se aos 19 anos com Henri Pertat, dermatologista, oito anos mais velho, a exercer clínica em Paris, local onde em 1897 Suzanne iniciou os estudos secundários. Terminou o bacharelato em 1903 e cinco anos mais tarde o curso de medicina, tendo na altura frequentado como estudante estagiária o Serviço de Dermatologia no Hôpital Saint-Louis.(1,2) Dessa experiência publicaria anos mais tarde um artigo científico.

Já licenciada é colocada no serviço do professor HyppoliteMorestin, dos primeiros médicos a praticar exclusivamente Cirurgia Plástica e Reconstrutiva, cirurgião com enorme reputação internacional ao ponto do conhecido Al Capone o ter contactado, solicitando-lhe a deslocação a Chicago com a finalidade de o operar com vista a disfarçar a sua famosa cicatriz na face.(4) Susanne Pertat era nessa época uma das três únicas médicas Internes des Hôpitaux, tendo nessa altura efetuado a sua primeira intervenção cirúrgica em 1912.

Entretanto tem início a Primeira Guerra Mundial que ceifaria um milhão e meio de pessoas e desfiguraria centenas de milhares de soldados, os Gueules Cassées, recordados nos filmes The House of Officers e Goodbye e no livro A Moveable Feast, traduzido em português: Paris é uma festa, de Ernest Hemingway. Alguns destes mutilados usavam mascaras, outros apresentavam faces grotescas devido às lesões. Eram figuras muito prestigiadas, mas com aspeto assustador.(1,2) Durante a guerra, Suzanne Pertat foi autorizada, tal como todos os médicos estagiários, a praticar Medicina sem ainda ter concluído a tese. Junta-se à equipe do professor Moréstin, no Hôpital Militaire Val-de-Grâce, onde colaborará em reconstruções da face de soldados feridos. Assim, Suzanne ao lado de Moréstin participou no esforço de guerra, tratando centenas de homens.(1,2)

Por esta altura, o marido Henri Pertat, apesar de dispensado das obrigações militares, solicitou a colocação na frente de combate. Participou em 1915 na Bélgica em testes com dispositivos com a finalidade de evitar os efeitos deletérios dos gases asfixiantes que, entretanto, tinham sido introduzidos como arma letal. Acidentalmente inalou gás, o que lhe desencadeou uma grave e progressiva insuficiência respiratória. Nunca mais retomaria a atividade clínica normal, tendo falecido no final de 1918, aos 49 anos de idade. Pelos seus feitos heroicos foi condecorado com a Cruz de Guerra Francesa e Belga.(1,2) Suzanne Pertat, para sobreviver nessa época, viu-se obrigada a exercer Medicina em condições materiais bastante adversas, cuidando da filha e da mãe que se refugiou em Paris devido à ocupação pelos alemães da sua propriedade em Laon.(1,2).

Em 1920 volta a casar com um colega que conheceu na faculdade, mais novo sete anos, André Noël, assumindo o seu nome, e pelo qual ficou conhecida.(5) Passada a tragédia da guerra viverá uma série de dramas pessoais. Pouco tempo depois (1922), perde tragicamente, em poucos dias, com a gripe espanhola, a filha única de treze anos, Jacqueline.

O marido, André Noël, entra em profunda depressão e a 5 agosto de 1924, na sua presença, próximo do Châtelet, na Pont-au-Change, às 10 da manhã, estaciona o carro e precipita-se do parapeito da ponte para o rio Sena, morrendo afogado. O escândalo motivado por este trágico acontecimento foi considerável, particularmente no meio médico, razão pela qual ao submeter finalmente (1925) a tese, aos 47 anos, Suzanne Noël não a assinou com o seu nome clínico, tendo antes optado pelo nome de solteira.(1,2,4)

Sobrevivendo aos dramas familiares, tenta recompor-se, dedicando-se intensamente à prática da Cirurgia Plástica, efetuando face liftings, remodelando narizes e mentos, ou efetuando revisões de cicatrizes e reconstruções da face com enxertos dérmicos, ampliando as potencialidades e o âmbito desta nova especialidade a outras situações e regiões anatómicas, muito para além da maxilo-facial, área à qual inicialmente se confinava a Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética. Ao remodelar seios, coxas ou nádegas, contribuiu decisivamente para a expansão desta especialidade cirúrgica, juntando-lhe uma nova diferenciação, a Cirurgia Estética.(2.4)

Na petit operation, que desenvolveu e assim apelidou, estabeleceu os princípios técnicos fundamentais utilizados atualmente nas ritidectomias, nomeadamente no mini-lift, praticando incisões e cicatrizes mínimas e camufladas com o cabelo.(3) Inovou ainda praticando novas técnicas,(5) como por exemplo a remoção de gordura por aspiração (a lipoaspiração, hoje largamente divulgada e praticada), e inventou ou melhorou muitos dos instrumentos cirúrgicos que utilizava.(1,4)

A par da cirurgia, interessou-se sempre pelas repercussões psicológicas das mesmas, analisando ao pormenor as reações nas doentes e nos maridos. Com humor, aconselhava às mulheres francesas que se submetessem a cirurgias mesmo se sobre o assunto não tivessem previamente falado com os maridos.(2) Muitos das suas pacientes eram oriundas dos bairros elegantes e ricos de Paris, mas tratava igualmente com gosto e empenho pessoas humildes como vendedoras ou secretárias, muitas vezes gratuitamente, em consonância com as suas convicções filantrópicas e progressistas.(5) A Cirurgia Estética era encarada por Suzanne Noël como uma alavanca para a emancipação social, particularmente feminina, acreditando que o aspeto resultante do rejuvenescimento facial ajudaria as mulheres a encontrar mais facilmente trabalho.(4)

No ano de 1926 publica La Chirurgie Esthétique et son rôle sociale,,(6) mais tarde editado na Alemanha como forma de divulgar e explicar a importancia da sua actividade, numa época em que submeter-se ou mesmo practicar Cirurgia Estética não só não era bem aceite, como era até estigmatizado e considerado "pecado". Atente-se que esta área da Cirugía Plástica, a Cirurgia Estética, só recentemente foi despenalizada pela Igreja, aquando do X Congresso Nazionale della Società Italiana di Chirurgia Plasticano qual o Papa Pio XII, em Roma, a 4 Outubro de 1958, proferiu uma alocução sobre o tema que em sintese referia: "Se considerarmos a beleza física à luz Cristã e se respeitarmos os nossos ensinamentos morais, então a Cirurgia Plástica e Estética não está contra a vontade de Deus, mas pelo contrário, restaura a perfeição de um dos maiores trabalhos do Criador, o Homem".

Participou, portanto, na génese desta nova especialidade, a Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética, assumido com coragem, publicamente, a prática da Cirurgia Estética, numa época em que os pouco cirurgiões que a praticavam o faziam recatadamente como se tratasse de uma atividade clandestina. Seria assim natural que consciente dos problemas sociais suscitados pela atividade clínica, Suzanne Noël se empenhasse igualmente em questões de ordem social, participando ativamente, de forma infatigável, na recolha de fundos para várias obras sociais como por exemplo, custear colónias de férias para crianças da assistência pública ou para a associação das viúvas e órfãos de médicos.(1)

No ano de 1923 as suas atividades feministas tornam-se mais notadas, sobretudo quando mobilizou trabalhadoras para entrarem em greve fiscal considerando que o estado, apesar de lhes cobrar impostos, não lhes reconhecia nenhum direito, nomeadamente o de votar (anteriormente em 1880, Hubertina Auclert, convocara já em França, uma greve pelas mesmas razões).(4) Não será portanto estranho, que o americano Stuart Morrow, fundador de clubes Rotary e Soroptimist nos Estados Unidos, que viajou para a Europa com a missão de difusão e criação de delegações desses clubes, a tenha contactado para esse fim. Em 1924 é criado por iniciativa de Suzanne Noël o clube Soroptimist em Paris, decorrendo as reuniões no Rotary Club, malgrado, inicialmente, não ter o apoio dos sócios que eram exclusivamente homens. "Tivemos contra os nossos maridos que viam com maus olhos os almoços semanais no restaurante sem a sua presença, enquanto eles ficavam em casa. Admitiam isso, muito bem aos rotários, que eram homens, mas não às suas esposas", recordava Noël.(1)

Suzanne Noël efetuando facelifting a uma paciente, sem luvas, em 1920.Photo: Bibliothèque Marguerite Durand/Roger-Violl 

Expressando-se de forma eloquente, desmultiplicou-se em conferências sobre temas de Cirurgia Plástica e Estética sempre com grandes audiências, aproveitando habitualmente a oportunidade para falar sobre a autodeterminação feminina e estimular localmente a criação de um novo clube. Assim fundou sucessivamente os clubes Soroptimist de Haia, Amsterdão, Viena, Berlim, Antuérpia, Genebra, Oslo, Budapeste, Praga, Estocolmo, Istambul, Atenas, Helsínquia e até mesmo os de Pequim e Tóquio. Nestas atividades sociais de divulgação promoveu a Cirurgia Estética e, simultaneamente, os direitos das mulheres.(5)

O Ministério dos Negócios Estrangeiro em 1928, como reconhecimento pela sua contribuição internacional na divulgação e promoção científica francesa, atribuiu-lhe a condecoração Légion d'Honneur.(1) "É preciso pensar que em 1924 as mulheres não tinham ainda liberdade pessoal, e aquelas que pugnavam por essa liberdade eram ridicularizadas e chamadas de sufragistas. Eu era uma das mais visadas...também me especializei em Cirurgia Plástica, até então desconhecida, e diziam de mim que eu era duas vezes louca," afirmaria mais tarde Suzanne Noël.(2)

Na primavera de 1936, tendo começado a perder a visão é operada com sucesso às cataratas, curiosamente pelo mesmo oftalmologista que operou Claude Monet, contudo, não mais poderia continuar a exercer clínica com o mesmo ritmo. Presenciou, entretanto, um novo conflito armado, a Segunda Guerra Mundial, assumindo uma posição política clara. Durante a ocupação nazi operou na clandestinidade vários resistentes procurados pela Gestapo ou pela polícia modificando-lhes o rosto, nomeadamente cidadãos de origem judaica que a procuravam para alterar a morfologia nasal.(1)

Após o fim da guerra continuou gratuitamente a efetuar intervenções cirúrgicas tentando suavizar o estigma do terror deixado em alguns sobreviventes dos campos de concentração.

Em 29 de outubro de 1946, Noël é notícia numa reportagem do jornal Front National, a propósito de uma intervenção cirúrgica a que se submeteu o Sr. Ravensbrück de 42 anos, sobrevivente dos campos de concentração, condecorado com a Legião de Honra e a Cruz de Guerra, que apresentava o rosto "devastado pela tortura ... ao ponto de o transformar num velho." E, mais adiante, o jornalista deste periódico editado pelo partido comunista francês, M. Rosell, afirmava que a ..."Cirurgia Plástica poderá estar ao serviço dos trabalhadores: vi rejuvenescer mulheres que não eram milionárias".(1) Curiosa esta posição, quando entre nós, aquando da revolução em 1974, a Cirurgia Plástica esteve para ser oficialmente banida do SNS por ser "uma especialidade burguesa para burgueses".

Suzanne Noël, ao reconstruir a face de soldados desfigurados, feridos nas duas guerras mundiais, participou desde o início na autonomização da especialidade Cirurgia Plástica. Sendo a primeira a praticar Cirurgia Estética e simultaneamente uma das primeiras a defender os direitos das mulheres, o seu trabalho é, todavia, estranhamente pouco conhecido, inclusivo no meio médico, apesar de sobre a mesma terem sido publicados vários artigos, uma tese médica, e até um livro.(4)

Já bastante debilitada, Suzanne ainda participa em 1952 no congresso internacional em Copenhague, tendo falecido dois anos depois, em 31 de janeiro de 1954, em Paris, com 74 anos, sendo sepultada no Cimetière de Montmartre. O clube Soroptimist passou, entretanto, a disponibilizar uma bolsa com o seu nome, concedida periodicamente, tendo por fim patrocinar a especialização em Cirurgia Plástica de uma médica.

Por toda a França o seu nome foi atribuído a várias ruas em diferentes cidades (Périgueux, Toulouse, Poitiers, La Rochelle, La Bassée, Rezé e Menton). Em 2018, no dia 5 de março, os correios franceses homenagearam Suzanne Noël emitindo um selo com a sua esfinge, tendo em 27 de setembro do mesmo ano, l'Union Française du Soroptimist International descerrado uma placa com o seu nome na Avenue Charles Floquet no nº 36, recordando o local onde Noël viveu os últimos quinze anos. Integrando as celebrações do centenário do fim da Primeira Grande Guerra, em 11 de novembro de 2018, em Annecy, foi inaugurada em sua homenagem uma escultura no local do antigo hospital da cidade, com a sua esfinge encimando a representação de duas mãos gigantes.

Suzanne Noël não foi apenas inovadora enquanto praticante de Cirurgia Plástica, em particular de Cirurgia Estética, mas também o foi como ativista na defesa da igualdade de género.(5) Empenhada, solidária, com uma visão social progressista e vanguardista na forma como exerceu cirurgia, assumiu sempre, com coragem, as suas convicções. A divulgação do exemplo da sua vida entre as novas gerações de médicos, particularmente de Cirurgia Plástica, motivá-los-á a melhor conhecer as dificuldades vividas pelos pioneiros da Medicina em especial de Cirurgia Plástica. Revisitar, através da vida de Suzanne Noël, o período que decorreu entre as duas grandes guerras mundiais, possibilitará ainda acompanhar a evolução de alguns conceitos socias e até morais.

Bibliografía

1 Guirimand N. De la réparation des «gueules cassée » à la sculpture du visage : La naissance de la chirurgie esthétique en France pendant l'entre-deux-guerres. Actes de la recherche en sciences sociales. 2005;156:72-87. [ Links ]

2 Jacquemin J. Noël (1878-1954), Pionnière de la chirurgie esthétique et du mouvement féminin Soroptimist (le Rotary féminin). Revue d'Histoire des Sciences Médicales. 1988;22:21-28. [ Links ]

3 Ritchie D, Bresler A, Paskhover B. Contributions of the First Female Plastic Surgeon to Modern-Day Rhytidectomies. Aesth Plast Surg. 2020;4:240-245. [ Links ]

4 Martin PJ. Suzanne Noël: cosmetic surgery, feminism and beauty in early twentieth- century France. Abingdon UK: Routledge. 2016. [ Links ]

5 Noël S. Réfection plastique du mamelon après nécrose survenue à la suite d›une opération esthétique des seins. Le Bulletin Médical.1933; 39. [ Links ]

6 Noël S. La Chirurgie Esthétique, et son rôle social. Paris: Masson. 1926. [ Links ]

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