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Revista de Bioética y Derecho

On-line version ISSN 1886-5887

Rev. Bioética y Derecho  n.43 Barcelona  2018

 

Sección General

Acesso à saúde de populações vulneráveis: uma visão sob o enfoque da bioética

Vulnerable population's access to healthcare: A view from Bioethics

Acceso a la salud de poblaciones vulnerables: una visión desde la bioética

Accés a la salut de poblacions vulnerables: una visió des de la bioètica

Ana Duarte-Vieira1 

1Universidade de Brasília, Brasil

Resumo

Este artigo discute as questões em torno do acesso à saúde dos grupos étnicos denominados quilombolas. Os quilombos contemporâneos são grupos tradicionais com organização política-econômica-histórica-cultural, que ao longo do tempo lutam pela inclusão social por meio das políticas públicas e ações de atenção integral. O Sistema Único de Saúde (SUS) defende que efetivar o direito humano à saúde da população é estabelecer padrões de equidade na política de saúde do país. Nessa perspectiva, a Bioética torna-se um instrumento de inclusão social pautando discussões democráticas acerca dos problemas que reduzem à população ao acesso equitativo e as melhores condições de vida, saúde e bem-viver.

Palavras-chave: bioética; populações vulneráveis; equidade; saúde; política pública

Abstract

This article discusses the issues related to access to healthcare of ethnic groups called quilombolas. Contemporary quilombos are traditional groups with political-economic-historical-cultural organization, which over time struggle for social inclusion through public policies and actions of comprehensive care. The Unified Health System (SUS) states that implementing the human right to health of the population is establishing equity standards in the health policy of the country. In this perspective, Bioethics becomes a social inclusion instrument guiding democratic discussions about the problems that reduce equitable access and better living, health and good living conditions of the population.

Keywords: bioethics; vulnerable populations; equity; health; public policy

Resumen

Este artículo discute las cuestiones en torno al acceso a la salud de los grupos étnicos denominados quilombolas. Los quilombos contemporáneos son grupos tradicionales con organización político-económica-histórica-cultural, que a lo largo del tiempo luchan por la inclusión social por medio de las políticas públicas y acciones de atención integral. El Sistema Único de Salud (SUS) de Brasil defiende que el derecho humano a la salud de la población es establecer estándares de equidad en la política de salud del país. En esta perspectiva, la Bioética se convierte en un instrumento de inclusión social que guía las discusiones democráticas acerca los problemas para el acceso equitativo y las mejores condiciones de vida, salud y bienestar de la población.

Palabras clave: bioética; poblaciones vulnerables; equidad; salud; política pública

Resum

Aquest article discuteix les qüestions entorn de l'accés a la salut dels grups ètnics anominats quilombolas. Els quilombos contemporanis són grups tradicionals amb una organització polític-econòmica-històrica-cultural pròpia que al llarg del temps lluiten per la inclusió social per mitjà de les polítiques públiques i accions d'atenció integral. El Sistema Únic de Salut de Brasil defensa que el dret humà a la salut de la població exigeix que s' estableixin estàndards d'equitat en la política de salut del país. Des d'aquesta perspectiva, la Bioètica es converteix en un instrument d'inclusió social que guia les discussions democràtiques sobre els problemes per a l'accés equitatiu i les millors condicions de vida, salut i benestar de la població.

Paraules clau: bioètica; poblacions vulnerables; equitat; salut; política pública

1. Introdução

As comunidades negras afro-brasileiras ―urbanas e rurais― denominadas quilombolas ou quilombos contemporâneos fazem parte das grandes questões emergenciais da sociedade brasileira. Na contemporaneidade, o termo originário de Kilómbò, dos povos de línguas bantu, veio assumindo novos significados, não se referindo a resquícios ou remanescentes de escravos, mas a grupos étnicos com um tipo de organização política e econômica com valores compartilhados, os quais conferem pertencimento histórico, cultural. (1)

Ao longo do tempo, essas comunidades vêm resistindo a influências externas e lutando pela inclusão social por meio das ações de atenção integral. Nesse espaço de movimento social vai se constituindo um território de vozes fortalecidas que ecoam pela nação. Assim, para a defesa das demandas dessas comunidades surge por meio de movimentos e instituições ―governamentais ou não― a proposição de debates, políticas e legislações para promoção da igualdade e da proteção dos direitos dos descendentes de matrizes africanas. Neste processo de luta por seus direitos, os quilombolas vão superando a invisibilidade e evidenciando mais uma face da diversidade sociocultural existente no Brasil. (1,2,3,4)

Apesar do esforço de se elaborar políticas públicas numa perspectiva de promoção da equidade para o alcance da justiça social, as estatísticas revelam grandes desigualdades acerca da inclusão dos negros na sociedade brasileira. Em geral, essa população, do ponto de vista econômico e social, é mais pobre e menos instruída que o restante da população brasileira, recebe baixas remunerações, vive nas periferias dos centros urbanos, sofre discriminação e é mais vulnerável à violência e expostas ao adoecimento. (5,6,7)

O Sistema Único de Saúde (SUS), na implementação do Pacto pela Saúde, compromete-se com o combate às iniquidades de ordem sócio-econômico-cultural que atingem a população negra brasileira.(8) Assim, efetivar o direito humano à saúde da população negra é também um marco constituído pela luta para o estabelecimento de padrões de equidade étnico-racial e de gênero na política de saúde do país. (9)

Cabe refletir até que ponto a implantação de políticas e programas do sistema de saúde direcionados às comunidades quilombolas está qualificada a traduzir as suas reivindicações e a ampliar o acesso, tornando os membros dessa comunidade protagonistas para escolher suas prioridades frente às necessidades de produção de saúde, respeitando o caráter étnico-cultural e reafirmando o princípio da universalidade do SUS. (8,9)

Nessa perspectiva, a Bioética, traduzida como ética da vida, dá voz aos conflitos e dilemas relacionados as contradições sociais, enfatizando uma abordagem relacionada à equidade e à justiça, incentivando o empoderamento dos cidadãos para o exercício da cidadania. Desta feita, esta Bioética situa-se na argumentação da participação da sociedade civil para propor soluções que venham privilegiar o bem-estar do maior número de pessoas, grupos ou, segmentos e comunidades. Para tal, exige um esforço da sociedade no discernimento entre o individual e o coletivo, entre a autonomia e a justiça, superficial e o concreto, entre neutralidade e a politização (10,11,12)

Considera-se que, esta Bioética eleva os debates para além dos conflitos estabelecidos nas relações clínica e ingressa nos domínios das políticas públicas, pois procura um comportamento ético responsável por parte daqueles que detém o poder decisório. Estrutura-se, então, a sua interpretação na realidade concreta tendo um discurso coerente e tolerante para a busca de consenso. (13,14,15,16)

Neste contexto, volta-se para o campo de atuação social― descrito como situações emergentes e situações persistentes― e delineia-se o surgimento da Bioética de Intervenção (BI) proposta por Garrafa & Porto (2003), da Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília. A BI vem aprofundar as reflexões e gerar discussões democráticas sobre a temática, desde as inovações biotecnocientíficas até as questões seculares que repercutem na vida humana, ao longo de sua existência, relacionadas aos problemas que reduzem à população ao acesso de melhores condições de vida e bem-viver.

E, portanto, tratar das questões dos quilombolas no país é emergir os problemas que vão das vulnerabilidades à resistência étnica, social, histórica e cultural de um povo marcado pela sociedade colonial e pelo processo de objetificação dos negros escravizados ao longo da história brasileira. Entre os vários problemas, destacam-se a discriminação racial, a pobreza extrema, as tensões territoriais, a migração para grandes centros urbanos, a interferência na paisagem e no equilíbrio ambiental dos territórios quilombolas, o baixo índice de renda domiciliar, as precárias condições das habitações, o desemprego ou emprego informal, a dificuldade de acesso aos bens e serviços ―à saúde e educação, aos bens duráveis e de consumo e à informação―, a vulnerabilidade alimentar, os conflitos institucionais e a invisibilidade da população. (17)

No recorte da saúde, a parcela da população mais vulnerável, em piores condições de vida, é a que tem menor possibilidade ao acesso e, consequentemente, está mais suscetível ao adoecimento, à mortalidade e à menor qualidade de vida. (13,14,15,16) Falar em acesso remete à questão da justiça no próprio sistema de saúde brasileiro, pois a necessidade da atenção, a disponibilidade dos serviços de saúde, a garantia da qualidade do sistema e a alocação de recursos são desiguais no território nacional. Aliadas a isso estão as profundas desigualdades socioeconômicas e culturais, a proteção social segmentada e o modelo assistencial privatista sendo um dos principais desafios para afirmação da saúde como direito de cidadania nacional. Acredita-se que a saúde deve ser vista como uma questão de ordem pública e política, e o Estado há de ter como prioridade a proteção do direito à saúde de seus cidadãos como um fato constitucionalmente prescrito, ou seja, uma questão de direito social fundamental. (13,14,15)

Ampliar a discussão do direito à saúde é levar em conta a universalidade do acesso à saúde, que ainda não se efetivou, para toda a população brasileira. Essa discussão é necessária haja vista a luta da população quilombola pela igualdade de direitos, pela redefinição da identidade de seu povo, pelo reconhecimento da territorialidade, pelo convívio com respeito à diversidade e dignidade humana, pela equidade na saúde. Isto implica um diálogo bioético que seja a base para a tomada de decisão, que privilegie o princípio da justiça como equidade.

2. Um espectro e muitas imagens de uma população vulnerável: os negros dos quilombos

A comunidade quilombola tem um destaque histórico no Brasil, pois o remete a um passado heroico de um povo que se rebelou contra o sistema escravocrata. O quilombo foi, essencialmente, um movimento coletivo de massa caracterizado por uma forma de organização político-social e por uma identidade étnica traduzida por elementos culturais e religiosos que os distinguem na sociedade. Constituíram-se como principais exemplos de processo contra-aculturativo e estratégia de reafirmação e preservação das culturas africanas sem a dominação senhorial, portanto, pode-se dizer que os quilombos foram um acontecimento singular na vida nacional. (17) Um exemplo histórico é o Quilombo dos Palmares, localizado na serra da Barriga, entre os Estados de Alagoas e Pernambuco, tendo com maiores referências as figuras de Ganga-Zumba e Zumbi.

O Quilombo de Palmares foi um Estado Negro formado por colunas de escravos fugitivos dos estados de Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco em busca da liberdade. Os escravos que conseguiam chegar até Palmares, cujo nome remete a palmeiras, ocuparam uma vasta área de floresta de grandes dimensões. Habitavam em pequenos ajuntamentos de casas primitivas denominados mocambos e conviviam sob a liderança de um chefe de maior prestígio. (18)

Essa microssociedade formada a partir dos quilombos foi desprovida, por questões históricas, do acesso às políticas públicas e aos direitos constitucionais. A incorporação de uma identidade recontextualiza os processos que, ainda hoje, deflagram uma relação de diferença, principalmente relativa às questões de poder, pois quem é obrigado a reivindicar uma identidade, encontra-se necessariamente em posição de carência e subordinação. (5) Somente na segunda metade do século XX, com os movimentos negros que se revelaram, ocorreram iniciativas para a valorização da negritude e promoção da consciência negra no País. A partir de então, planos de ação contra o racismo, o preconceito e a discriminação social geraram propostas afirmativas para a difusão da história e da cultura negra e para a inclusão de políticas públicas voltadas para as reivindicações desta população brasileira. (5,6,7,8)

O Brasil debruçou-se a legislar sobre um conjunto de direitos que se ocupam da igualdade individual, coletiva, política, social, cultural, educacional e sanitária para a valorização e o desenvolvimento das comunidades fragilizadas pelas iniquidades. Após o ousado movimento deflagrado pelas mobilizações sociais favoráveis à promoção da igualdade-equidade racial e incorporados pela Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, coube às três esferas de governo e à sociedade civil organizada envidarem esforços a fim de proporcionar a incorporação dos direitos garantidos pela Constituição Federal. A proposta do governo em resgatar as comunidades tradicionais, em especial as indígenas e negras, que resistem ao longo dos tempos em manter seus valores e tradições é de importância capital ao debate mais complexo no contexto brasileiro, no sentido de comprometer-se por meio da justiça social ao alcance da equidade para esses herdeiros e sobreviventes como um real problema a ser equacionado por toda a sociedade brasileira. (8)

As expectativas dos quilombolas tornaram-se, também, as do governo e as do povo brasileiro: reconstruir a história por meio de políticas imprescindíveis para a ressignificação da diversidade cultural brasileira a caminho de uma sociedade mais democrática para os cidadãos brasileiros. A identificação de fatores que possam interferir positiva ou negativamente é de fundamental importância na busca da concretização do atendimento dos direitos dos quilombolas. Nesse sentido, estas comunidades passaram a fazer parte da agenda de discussões, as quais representam esses povos na sua efetiva inserção cidadã. (8)

3. Vozes ainda silenciadas no cerrado brasileiro

A comunidade quilombola Kalunga faz parte dos quase cinco mil quilombos existentes no território brasileiro. Localiza-se no nordeste do Estado de Goiás, na região da Chapada dos Veadeiros, espalhada às margens do rio Paranã, entre os estados de Goiás e Tocantins. (19,20,21) Encontra-se instalado no "Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga", reconhecida pelo Estado de Goiás a partir de 1991, numa superfície de, aproximadamente, 253.191,72 hectares que compõe cinco núcleos principais: Vão da Contenda, Vão do Kalunga, Vão das Almas, Vão do Moleque e Ribeirão dos Bois. Estes núcleos subdividem-se em mais de meia centena de agrupamentos distribuídos entre os municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, a 330 km de distância de Brasília, capital do Distrito Federal, Brasil. (21) É no cenário de terra firme entre rios, serras e vãos que se descreve a história dessa comunidade como a mais resistente e de maior expressão cultural.

Embora este povo venha se organizando para superar as iniquidades e sobreviver às condições adversas, os inúmeros problemas estruturais são fatores que vêm, ao longo do tempo, persistindo e dificultando a participação dos quilombolas como agentes de transformação social, em que pesem os esforços governamentais e da sociedade em geral no emprego de estratégias que viabilizem a elaboração de políticas públicas específicas para a inclusão dessas populações, historicamente excluídas.

Considera-se que o problema da inacessibilidade à saúde, que atinge a numerosos grupos populacionais brasileiros, também ocorre nesta comunidade quilombola. Entende-se aqui o acesso à saúde como uma categoria multidimensional que engloba aspectos geográficos, culturais, econômicos, sociais e institucionais, entre outros e, é aqui entendido como o grau de ajuste entre necessidade de atendimento, disponibilidade de serviço, distribuição de recursos e qualidade no cuidado, traduzido como justiça sanitária ou equidade em saúde. (22,23,24,25)

O sistema de saúde brasileiro ainda não consegue prover a universalidade dos serviços para todos, principalmente afinado às particularidades desses segmentos populacionais e ao nível de financiamento do referido sistema. Assim, o acesso ao sistema de saúde revela uma fraca interiorização dos direitos de cidadania garantidos pelo Estado, pois há problemas em relação à igualdade de oportunidades aos serviços frente às necessidades específicas à sua utilização. (25)

Sob o prisma da etnicidade, o acesso à saúde invisibiliza a população negra Kalunga e oculta a diversidade de um grupo com particularidades aos olhos do poder público. Assim, as expectativas em se obter a equidade em saúde ainda estão reduzidas, uma vez que há uma forte "naturalização", quanto às questões relativas à responsabilidade pública frente à baixa prestação dos serviços e à ausência de recursos no campo da saúde. (25)

É importante salientar que os danos provocados aos negros, ao longo dos anos, demandam hoje grandes esforços da sociedade para possibilitar o fortalecimento e a melhoria da qualidade de vida dessas famílias quilombolas no país. Nestas comunidades, gerar possibilidades para que se reflita sobre o princípio da equidade em saúde pode ser traduzido em organizar estratégias para a redução das desigualdades sociais e sanitárias. Discussões políticas nas agendas do governo passam a programar as ações afirmativas contribuindo com eixos estruturantes na interpretação destas realidades, aproximando-as das necessidades e aspirações da população vulnerada. (25)

A Polícia Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN, 2013) tem com marca o reconhecimento das desigualdades étnico-raciais como determinantes sociais das condições de saúde e como objetivo garantir e ampliar o acesso da população negra ―das áreas urbanas, do campo e das florestas, em particular as populações quilombolas― às ações e serviços de saúde como princípio ético da equidade. Destaca-se, ainda, o caráter da transversalidade que se alia a outras políticas já instituídas e diz respeito à possibilidade de conexão em rede, por meio de um conjunto de estratégias, tendo em vista a complementaridade, confluência e reforço de diferentes políticas de saúde. (9)

Nesse contexto que implica mudança, a Bioética de Intervenção (BI) contribui como instrumento social nos cenários que fortalecem a consciência dos cidadãos sobre a importância do exercício da cidadania para o acesso aos direitos fundamentais e no alcance da justiça equitativa. À medida que são fomentadas discussões sobre o assunto e implementadas ações, espera-se que os sujeitos envolvidos se tornem protagonistas e, junto às esferas do poder público, possam contribuir na construção de políticas públicas que atendam à superação das iniquidades nos diferentes contextos de diversas comunidades. (12,13,14)

4. Os grandes nós da rede de atenção: a desigualdade no acesso à saúde

As desigualdades sociais têm sido discutidas como importantes problemas globais a serem enfrentados, ocupando agendas de discussões da bioética com a ética social, considerando a carência de recursos para que segmentos excluídos da população brasileira tenham acesso aos meios para uma vida saudável.

Na concepção da comunidade Kalunga, a saúde é um bem fundamental, conforme descrito pelos conceitos de organismos internacionais e pela constituição brasileira, a qual reconhece a saúde como um direito de cidadania. Entendem ainda que, para a manutenção da saúde, há um conjunto amplo de determinantes que se associam com o modo de viver e sua complexa teia da produção social.

Esse tema pode trazer o debate sobre ações de promoção e proteção à saúde, considerando as condições sociais, culturais e ambientais. Assim, a BI, comprometida com o campo social, volta o olhar para os conflitos sanitários emergidos e provoca discussões sobre a equidade frente às desigualdades no acesso aos bens e serviços que caracterizam a diminuição da qualidade de vida em comunidades margeadas. Nesse sentido, tem como base os movimentos sociais de libertação que se preocupa com os injustiçados da sociedade capitalista, que estão expostos à vulnerabilidade e exclusão, que adoecem e morrem sem serem inseridos no processo dinâmico da sociedade, no qual as suas necessidades e os seus direitos fundamentais deveriam ser satisfeitos para atender a elementos que caracterizem a melhoria da qualidade de vida e do bem-viver para essa população. (10,11,12,13,14,15)

Não diferente encontra-se a situação nos quilombos Kalunga, afetados gravemente pelos determinantes e pelas desigualdades sociais nas condições de saúde e no acesso e utilização de serviços de saúde, fato que gera situações persistentes de injustiça social. (25)

Partindo da multidimensionalidade dos determinantes que afetam esse grupo social ―como pobreza, precárias condições de moradia, ausência de oportunidade de emprego, existência de barreiras geográficas, débil saneamento básico, diminuta rede elétrica, escassez de serviços de saúde e de recursos humanos, reduzidas escolas, falta da regularização fundiária, pouca informação/comunicação― pode-se compreender que os indicadores de morbimortalidade estarão intimamente relacionados a inúmeros desses fatores que impactam na qualidade de vida dessas pessoas e em atender as necessidades prementes de saúde dos quilombolas dessa comunidade.

Vale ressaltar que o Ministério da Saúde tem incentivado programas que propõem levar os profissionais de saúde para áreas de maior carência de serviço no território nacional. As políticas de atenção à saúde preveem incentivos para atendimento a populações remanescentes de quilombos ―PNSIPN e ESF1― esbarram em dificuldades para suas implementações. Sem tirar o mérito dessa iniciativa governamental, verifica-se que ainda é insuficiente tal articulação diante da dimensão dos problemas de acesso à saúde dos quilombolas em nosso país.

Avançando a argumentação em direção à justiça como equidade em saúde, a BI propugna a proteção a grupos vulneráveis que se encontram excluídos do amparo do Estado e reconhece a intervenção como estratégia para gerar transformações essenciais na promoção da dignidade humana, no respeito pelos direitos humanos e na melhoria da qualidade de vida de indivíduos, grupos ou segmentos. (10,11,12,13,14,15)

Concorda-se, portanto, o que descreve a BI sobre os espaços de participação social coletiva, nos quais os grupos fragilizados ―quilombolas― devam fortalecer seu exercício de cidadania, ampliando as discussões para atingirem a implementação efetiva de ações governamentais preconizadas pelas políticas públicas e de ações afirmativas.

A BI reconhece que os direitos humanos são parâmetros para a intervenção. Por sua vez, quando o sistema de saúde assistir a todos de forma universal, igualitária e hierarquizada e as políticas visarem à diminuição das desigualdades, a intervenção irá fomentar o ciclo da equidade ―aumentando o insuficiente e diminuindo o excedente― e assim, proporcionando a justiça social. Reafirma ainda, que não é só a igualdade na oferta e acesso às oportunidades que reduzirão essas iniquidades, mas sim a garantia de condições iguais para que os indivíduos, grupos-segmentos e comunidades, a partir de sua autonomia, se empoderem para o efetivo exercício de sua cidadania. (10,11,12,13,14,15)

5. Conclusão

Vale destacar, que a ideia da igualdade que busca eliminar a vida colonizada, a discriminação e gerar oportunidade para os quilombolas, são algo recente e, portanto, revela ainda uma fragilidade nas ações institucionais. Entretanto, emerge que é somente a partir da participação no cerne da comunidade que a ampliação das oportunidades iguais promoverá as transformações necessárias para o alcance de uma sociedade mais inclusiva, justa e democrática para a comunidade Kalunga.

Cabe resgatar um modelo de gestão participativa, no qual o controle social seja efetivo na fiscalização, monitoramento e avaliação das ações das políticas públicas voltadas para os quilombolas. Nesse sentido, a gestão possibilitaria o compartilhamento de responsabilidades, proporcionando transparência às ações do poder público e buscando a garantia do acesso às necessidades apresentadas por estes quilombolas. Para tal, fazem-se necessárias estratégias que possibilitem a integração e promovam a organização fortalecida e resolutividade das ações de promoção, proteção e recuperação à saúde do indivíduo, da família e da comunidade. Fala-se, portanto, em um processo no qual se deva estabelecer a gestão democrática com a participação da comunidade, tendo a saúde como direito de cidadania. Espera-se, dessa forma, que ocorra a expansão, cobertura e universalização dos serviços que estarão voltados para a defesa das necessidades do modo de vida dessa comunidade e que haja expansão da articulação intersetorial, assegurando melhoria das condições de vida. Acredita-se, então, que esse processo estabelecido, vencendo desafios, poderá promover a justiça como equidade em saúde na comunidade quilombola Kalunga.

Aponta-se a organização dos próprios movimentos sociais dos negros e dos quilombolas diante da visibilização na cena pública do direito do quilombola na arena nacional. Ressalta-se a importância de gerar a compreensão libertária de que há uma pauta específica dos quilombolas e de que a representação pública desses interesses deve estar a cargo das lideranças quilombolas articuladas com as associações locais e com as instâncias estadual e nacional, para que haja o processo de fortalecimento e construção da legitimidade das lutas que são realizadas pelos quilombolas na história do Brasil.

Fomentar discussões nos espaços de gestão da saúde2 sobre a necessidade de se promover uma articulação interestadual entre as instituições públicas ―do Estado de Goiás e o Distrito Federal― para implementação de ações que visem à melhoria do acesso à saúde da comunidade quilombola Kalunga.

Há de considerar a importância da Bioética brasileira, que foca nos cenários onde há grandes complexidades e vulnerabilidades persistentes. Para tal, apoia-se a criação do Conselho Nacional de Bioética3, uma instância consultiva que se revela como uma das formas de controle social ―garantido por um processo participativo e democrático― que poderá trazer à luz as questões relativas à coletividade e as minorias que historicamente foram alijadas de direitos e ainda não estão representadas nos espaços do poder, como acontece com os quilombolas. Acredita-se que este Conselho pode ser porta voz das iniquidades que ainda hoje assolam as populações quilombolas no País, não menos diferente a comunidade quilombola Kalunga.

Conclui-se que a Bioética de Intervenção é um importante mecanismo para o fortalecimento de atuação e cidadania desse povo que, por detrás dos vãos, rios e serras e no silêncio do cerrado, continua sendo, cotidianamente, excluído de seus direitos legítimos como cidadãos brasileiros.

Referências

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1Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIP) e Estratégia Saúde da Família (ESF).

2Comissão Intergestores Tripartite (CIT), instância de articulação e pactuação na esfera federal que atua na direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), integrada por gestores do SUS das três esferas de governo - União, Estados, DF e Municípios. Comissão Intergestores Bipartite (CIB), instância de articulação e pactuação política na instância Estadual que objetiva orientar, regulamentar e avaliar os aspectos operacionais do processo de descentralização das ações de saúde do SUS.

3PL 6032/2005 Dispõe sobre a criação do Conselho Nacional de Bioética e dá outras providências. CNBioética, órgão de assessoramento ao Presidente da República sobre questões éticas decorrentes da prática em saúde, dos avanços científicos e tecnológicos nos campos da biologia, da medicina e da saúde, e das situações que ponham em risco a vida humana e o equilíbrio do meio ambiente. Proposição em tramitação no Congresso Nacional/Câmara dos Deputados.

Recebido: 23 de Março de 2017; Aceito: 14 de Junho de 2017

Correspondencia: Ana Duarte Vieira E-mail: abd.vieira@gmail.com

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