1. Introdução
O século XXI tem se evidenciado como o tempo das novas tecnologias e também da inclusão social, sobretudo, das pessoas deficientes. Nesse passo, papel importante conferido ao Direito de proteger tais minorias.
Nesse sentido, com a Convenção de Nova York sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência em 2006, criou-se um marco normativo mundial para a promoção da autonomia e o desenvolvimento da personalidade dos deficientes, sobretudo, os mentais, a que interessa o presente artigo.
No art.12 da Convenção, os Estados Partes deverão reconhecer que as pessoas com deficiência têm capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida, devendo tomar medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
Dessa forma, a Argentina, com a Lei n. 26.984/2014, o Código Civil e Comercial, e o Brasil, com a Lei n. 13.146/2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência, como signatários da Convenção, adequaram seus ordenamentos jurídicos, alterando sobremaneira o regime de capacidade civil, como conferir a capacidade para os doentes e deficientes mentais, objeto destes estudos.
Todavia, pode-se afirmar que tais leis cumpriram seus objetivos? Para tentar responder ou trazer mais reflexões, no capítulo 2 foi abordado como se estruturou o regime de capacidade civil na Argentina com o novo código, com enfoque nos doentes e deficientes mentais. Em seguida no capítulo 3, apresentou-se questionamentos para com o exercício da autonomia privada1 de tais pessoas na relação médico-paciente, com o enfoque no discernimento para o consentimento livre e esclarecido. E, por fim, no capítulo 4 realizou-se análise comparativa com o novo código civil argentino, também chamado de Código da Nação, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, trazendo críticas da efetividade de tais leis para os doentes e deficientes mentais na relação médico-paciente.
2. A capacidade dos doentes e deficientes mentais no novo Código Civil e Comercial argentino
A partir de 1 de agosto de 2015 entrou em vigor o novo Código Civil e Comercial da Argentina, trazendo profundas inovações, sobretudo, no que tange ao regime de capacidade jurídica, para estar em sintonia com a Convenção de Nova York sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, da qual é signatária.
O Código da Nação, como é mais conhecido, alterou o anterior Código de Vélez, ao retirar a designação de incapacidade absoluta para pessoas incapazes para o exercício dos atos da vida civil, sendo: pessoas por nascer, como os nascituros; a pessoa que não conta com idade e grau de maturidade suficiente, deixando de existir a anterior designação de menores impúberes e menores adultos, com a chamada capacidade progressiva para crianças e adolescentes; e a pessoa declarada incapaz por sentença judicial, não havendo mais restrição em relação aos surdos e mudos, e os dementes, conforme o art.24.
A Lei n. 26.984, de 26 de outubro de 2014, retirou a incapacidade absoluta dos surdos e mudos que não sabem escrever e dos dementes, ou seja, os doentes e deficientes mentais e intelectuais passaram a ter capacidade para o exercício da vida civil. Isso no sentido de que "las limitaciones a la capacidad no pueden ser totales o absolutas, eliminando la condición de persona -"muerte civil"-, negando el concepto de sujeto de derecho." (Fernández, 2015, p.2).
Noticia Fernández (2015) que o Novo Código Civil Argentino além de se alinhar à Convenção Internacional de Nova York incorporada no país pela Lei n. 26.378 que lhe outorgou hierarquia constitucional, ratificou o que já dispunha a Lei n. 26.657 de 2010, a Lei Nacional de Saúde Mental. Referida lei estabelece em seus arts. 3 e 5 a capacidade como regra, independente de sua condição de saúde mental, seus antecedentes de tratamento hospitalar, conflitos familiares, sociais ou culturais.
Isto se corrobora no art. 31 do novo Código, o qual estabelece em sua alínea "a)" que a capacidade geral do exercício da pessoa humana se presume, ainda quando se encontre internada em um estabelecimento assistencial. Além disso, na alínea "b)" dispõe que as limitações da capacidade são de caráter excepcional e se impõe sempre em benefício da pessoa. Na alínea "c)" a intervenção estatal tem sempre caráter interdisciplinar, tanto no tratamento como no processo judicial; bem como a pessoa tem direito a receber informação através de meios e tecnologias adequadas a sua compreensão, conforme a alínea "d)". (Argentina, 2014).
Observa-se, portanto, a preocupação do legislador argentino em promover a autonomia dos doentes e deficientes mentais ao assegurar-lhes no Código da Nação a capacidade jurídica, mesmo se tais pessoas estiverem internadas em estabelecimento assistencial. Contudo, é possível que esses indivíduos possam exercer com autonomia os atos da vida civil nessas condições?
Conforme Ghersi (2017), é um absurdo presumir a capacidade de uma pessoa internada, tratando tal regramento de uma falta regulatória, inconstitucional e não convencional.
A incapacidade, como se abordou, só pode ser declarada por sentença judicial, podendo o juiz restringir determinados atos de uma pessoa maior de 13 anos que padece de alteração mental permanente ou prolongada, de maior gravidade, sempre que do exercício de sua plena capacidade possa resultar um dano a sua pessoa ou a seus bens, conforme estabelece o art. 32 do Código da Nação. (Argentina, 2014).
Nesse sentido, a importância que se deve dar a uma equipe multidisciplinar para atuar junto ao juiz, dando-lhe o suporte técnico necessário, para não restringir atos que o doente ou deficiente metal no caso concreto possa realizar. Daí a importância de se aferir se o paciente tem discernimento para o exercício de sua autonomia, como será tratado no capítulo 2.
Dependendo do grau do discernimento, conforme o art. 32, o juiz pode designar apoios, pessoas que tem a função de auxiliar a pessoa com a capacidade restringida para dirigir atos de sua vida existencial, negocial e patrimonial, facilitando a comunicação, a compreensão e a manifestação de vontade da pessoa para o exercício de seus direitos. (Argentina, 2014). De acordo com o art. 43, o interessado pode solicitar ao juiz a designação de uma ou mais pessoas para serem seu apoio, desde que não haja conflitos de interesse. Na nomeação é estabelecida as condições e qualidades da medida de apoio, além de ser inscrita no Registro de Estado Civil e Capacidade das Pessoas (Argentina, 2014), o que seria no Brasil o Cartório de Registro de Pessoas Naturais.
Nesse sentido, poderia se aplicar o sistema de apoio para pessoas com síndrome de Down que tem um grau moderado ou aqueles em fase inicial de Parkinson e Alzheimer.
Como medida de caráter provisório e excepcional o juiz pode declarar a incapacidade do enfermo mental, desde que a pessoa se encontre absolutamente impossibilitada de interagir a sua volta e expressar sua vontade por qualquer meio, modo ou formato adequado, e o sistema de apoio se resulte ineficaz, designando, portanto, um curador, conforme art. 32. (Argentina, 2014.
Para tanto, conforme art. 34 e seguintes, deve haver entrevista pessoal do interessado, quem tem o direito de arrolar todas as provas para sua defesa, presença do Ministério Público e imprescindibilidade de uma equipe multidisciplinar. Além disso, a sentença deve determinar a extensão e o alcance da restrição e especificar as funções e atos que se limitam, com o fim de evitar o menor prejuízo possível à autonomia da pessoa, podendo designar mais de um curador ou apoios. A sentença deve ser revisada no período máximo de 3 anos. (Argentina, 2014).
A internação compulsória, conforme previsto no art. 41, somente se cumpre conforme legislação especial e regras gerais (Argentina, 2014).
Mesmo com a internação compulsória, a pessoa com enfermidade mental, goza de seus direitos fundamentais e suas extensões. (Argentina, 2014).
Por fim, um último aspecto que envolve a capacidade dos doentes e deficientes mentais no novo código civil argentino são os chamados inabilitados, que abarca mais especificamente os pródigos. Contudo, conforme dispõe o art. 48 a inabilitação também se aplica aqueles que padecem de uma alteração funcional permanente ou prolongada, física ou mental, que em relação a sua idade e meio social implica desvantagens consideráveis para integração familiar, social, educacional ou laboral. Com a declaração de inabilitação, o juiz designa um apoio para assistir o inabilitado. (Argentina, 2014).
Diante desse panorama geral, a capacidade dos doentes e deficientes mentais no Novo Código Civil e Comercial Argentino pode ser enquadrada como: 1) plenamente capaz, desde que não seja declarado incapaz por sentença judicial; 2) com capacidade restringida, caso um ou alguns atos necessitam de um apoio em razão de alterações mentais que possam causar danos a si ou a seus bens; 3) inabilitação, aplicando-se especificamente aos pródigos ou doentes e deficientes mentais que em razão de sua enfermidade não consigam gerir seu patrimônio, dilapidando-o, ou tenham dificuldade de integração social; e 4) a incapacidade de exercício, pessoa declarada incapaz por sentença judicial para o exercício dos atos da vida civil, com a designação de curador, sendo uma medida em caráter excepcional e provisório (Gálvez, 2015).
Nesse contexto, o Código da Nação trabalha com o regime de capacidade em quatro eixos, se assim pode se afirmar. É possível concluir que o cerne principal de qual contexto o doente ou deficiente mental pode ser enquadrado será o seu grau de discernimento, ou seja, em que medida o exercício de sua autonomia será efetivo, havendo qualidade na sua vontade, o que se pretende discutir quando se adentra na relação médico-paciente.
3. Autonomia e competência. A manifestação de vontade dos doentes mentais na relação médico-paciente
Para que haja o exercício da autonomia privada do paciente, é imprescindível a informação a ser prestada pelo médico.
O médico deve prestar informações verdadeiras e sem vícios, além de ter dever de lealdade perante o paciente, parte a qual é destituída de conhecimentos técnicos que o profissional detém, daí o paciente ser considerado vulnerável (Bomtempo, 2013).
Na Argentina, discorre Lorenzetti (2010) que a informação adequada e veraz é também um direito constitucional assegurado no art. 42 da Constituição Nacional, sendo um pressuposto da participação democrática livre, não podendo submeter a liberdade do outro sem o seu consentimento.
O direito à informação do paciente tem seu aspecto peculiar, sendo abrangido pelo termo de consentimento livre e esclarecido.
O consentimento informado livre e esclarecido consiste na exposição pelo médico de todas as terapêuticas possíveis a que o paciente possa se submeter, informando-lhe os riscos e benefícios em linguagem acessível, para que o paciente livremente possa escolher se quer ou não se submeter aquele determinado tratamento. O consentimento informado deve ser, via de regra, escrito, para a segurança de ambas as partes.
Defende Borges (2001) que a expressão mais adequada seria solicitação de tratamento ou decisão de interrupção de tratamento, na medida em que a nomenclatura consentimento imprime uma ideia de passividade, de concordância, de que quem cala, consente. A vontade do cliente deve ser expressa e não apenas consentida.
Assim, compreende-se que a materialização do consentimento livre e esclarecido se dá por meio do termo de consentimento livre e esclarecido.
Como afirma Stancioli (2005), o termo de consentimento informado não deve ser meramente formal, mas material, em trazer o entendimento para o paciente. Não se trata de somente colher o consentimento do paciente como uma obrigação legal, mas de trazer o seu real significado na relação médico-paciente, de forma a respeitar a autonomia e dignidade do cliente.
Diante desse contexto, qual a relação entre consentimento e autonomia?
3.1. Termo de consentimento e autonomia
O consentimento informado livre e esclarecido é uma forma de exercício da autonomia privada, tendo em vista que confere poder de autodeterminação ao paciente (Naves, 2010).
A autonomia privada do paciente constrói-se no diálogo com o médico, sendo agente de suas decisões. "A relação médico-paciente ganha corpo e credibilidade quando se instaura, entre os interlocutores, uma real comunicação em que o paciente pode, a qualquer momento, pôr em causa os fundamentos de validez dos argumentos médicos". (Stancioli, 2005, p.184).
Não se ouvida, entretanto, que o consentimento livre esclarecido, ou seja, a autonomia privada, deve se materializar diante dos seguintes requisitos para que seja válida: informação, como já se abordou, discernimento e ausência de condicionantes externos (Sá; Pontes, 2009).
Discernimento infere em poder compreender, fazer apreciação e estabelecer diferença no que é bom ou ruim para a própria saúde do paciente, guardando semelhança com a capacidade de fato, mas, que, no âmbito da relação médico-paciente, deverá ser aferido pelo profissional da saúde para atestar o nível de consciência e entendimento do seu cliente (Naves, 2010).
E, esta capacidade de discernir somente será possível com a informação a ser prestada pelo médico. O "dever de informação vem colidir com a capacidade de discernimento de uma das partes, melhorando-a para que possa consentir". (Lorenzetti, 1998, p.238).
Esta junção entre poder conhecer, viabilizado pela informação a ser prestada, e o poder compreender, o discernimento da pessoa, é o que Lôbo chama de cognoscibilidade (Lôbo, 2011).
Revela-se que a cognoscibilidade, no que tange ao paciente, na condição de consumidor frente ao profissional médico, é de fundamental importância junto ao discernimento, na tomada de decisão de sua própria saúde (Bomtempo, 2013).
Caberá então ao profissional médico junto a uma equipe multidisciplinar verificar se realmente o paciente foi capaz de compreender e estava em condições para ter autonomia em sua decisão, competência, "conceito médico - para tomar decisões sobre o tratamento". (Lima; Sá, 2011, p.164).
Portanto, desde que o paciente tenha cognoscibilidade (informação e discernimento) e competência (capacidade de entendimento do paciente aferida pelo médico) é que se pode afirmar que o consentimento livre e esclarecido será válido, concretizado pela autonomia privada.
Não obstante, não basta a informação e o discernimento, requer-se que para que o consentimento (autonomia privada) seja eficaz, que seja livre de condicionantes externos (Naves, 2010).
Dessa forma, conclui-se que o consentimento livre e esclarecido é o exercício da autonomia privada do paciente, ato de vontade que se reveste de legitimidade para os atos médicos, mediante o termo de consentimento livre e esclarecido.
Partindo-se do pressuposto do conceito médico de competência acima, é possível os doentes e deficientes mentais serem competentes para o exercício de sua autonomia privada em atos existenciais, como a escolha de tratamentos?
3.2. Os desafios do exercício da competência médica
É possível afirmar que seria aplicável o termo de consentimento para os doentes mentais? Em outras palavras, é legítimo o consentimento do deficiente ou doente mental para a realização de tratamento, procedimento, hospitalização e pesquisa científica?
Primeiramente é preciso retomar os requisitos do CLE, o qual exige aptidões necessárias, como capacidade de entendimento e comunicação, e capacidade de raciocínio e deliberação (Buchanan; Brock, 2009).
O doente mental seria capaz de entender a informação que recebe (cognoscibilidade)? Isto inclui o diagnóstico, prognóstico e as alternativas de tratamento e a recomendação do médico.
Buchanan e Brock (2009) relatam que os bloqueios e enfermidades psicológicas, com sintomas como medo, delírio, negação e depressão podem deteriorar de forma significativa a capacidade de entendimento do paciente, sobretudo em casos de demência.
Não é possível enquadrar todos os deficientes e enfermos mentais no mesmo contexto, existem aqueles que têm certo grau de cognoscibilidade e com um acompanhamento médico alinhado às suas limitações poderão sim emitir um consentimento livre e esclarecido, como portadores da síndrome de Down.
Todavia, há também pessoas que não tem qualquer condição de discernir, como pacientes em estágio mais avançado de Alzheimer, ou que ora sabem o que dizem ora não, como pacientes com esquizofrenia.
Situações como efeitos colaterais de medicamentos, o que em pacientes com doenças mentais é sempre constante, afetam o raciocínio e entendimento; a forma de abordagem do médico, de forma mais agressiva e coercitiva também afeta a vontade do paciente; ou mesmo a presença de um ente querido; o local da abordagem; o estágio da doença, como fases crônicas; todos estes são fatores que podem influenciar na emissão da vontade do paciente (Buchanan; Brock, 2009).
Pacientes com esquizofrenia, por exemplo, quando estão na fase aguda da doença apresentam quadros psicóticos que impossibilitam sua capacidade de discernimento. São frequentes déficits cognitivos que dificultam a tomada de decisões (Pozón, 2015).
Daí a importância do papel do médico de aferir a competência do paciente e promover um diálogo mais próximo junto a este e seus familiares e amigos, de forma a alcançar a real vontade do deficiente ou doente mental. Nesse sentido, o termo de consentimento pode, ao contrário, tornar-se instrumento valioso para salvaguardar a autodeterminação desse paciente, desde que na prática se utilize de forma efetiva.
É imprescindível que as clínicas e instituições hospitalares criem procedimentos claros e objetivos, junto aos conselhos de medicina e outras classes de profissionais da saúde, de forma a determinar objetivamente a competência do paciente doente ou deficiente mental, para se confeccionar um TCLE advindo de um consentimento livre e esclarecido efetivo (Buchanan; Brock, 2009).
Diante do que fora explanado neste capítulo, é possível afirmar que a Argentina e o Brasil garantem o exercício da autonomia dos doentes e deficientes mentais?
4. Pontos e contrapontos do Código Civil e Comercial argentino como o Estatuto da Pessoa com Deficiência no Brasil
A partir de dois de janeiro de 2016 entrou em vigor no Brasil a Lei n. 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). Com essa lei mudou-se radicalmente o regime das incapacidades no Código Civil brasileiro.
Passaram a ser absolutamente incapazes somente os menores de 16 anos e relativamente incapazes os maiores de 16 anos e menores de 18 anos, os ébrios habituais e viciados em tóxicos, bem como os pródigos, como previsto antes, incluindo agora aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Com essa alteração, passaram a ser capazes as pessoas com enfermidade ou deficiência mental que não tiverem o necessário discernimento e os excepcionais, conforme o art. 114 da Lei n. 13.146/2015. Assim também ocorreu na Argentina, como visto no capítulo 2, com a exclusão dos dementes, antes considerados absolutamente incapazes no Código de Vélez.
Conforme o art. 84 da Lei n. 13.146/2015, a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Diante disso, a regra para qualquer deficiente, inclusive os doentes mentais, é a capacidade, e a curatela exceção, conforme prevêem os parágrafos do mesmo artigo, medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível, assim como ocorre atualmente na Argentina com o atual Código da Nação.
Ponto inovador e polêmico foi que a curatela somente será exercida para os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, como dispõe o art. 85 do EPD. Veja-se que com a nova lei não se fala mais em interdição e somente em curatela, medida excepcional e de conteúdo econômico e financeiro do curatelado.
Assim, situações como exercício do direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao casamento e união estável, à privacidade, à educação, ao trabalho, ao voto e à saúde não estão sujeitas à anuência de terceiros.
Veja que na Argentina tanto a medida de apoio como a curatela não vedam a atuação do apoio ou curador nos atos existenciais do doente ou deficiente mental. A atuação deles se restringe a promover a autonomia e favorecer as decisões que respondam as preferências da pessoa protegida, conforme prevê o art. 32 (Argentina, 2014)
O anterior critério legal para a proteção do vulnerável, como os doentes mentais, passa para a promoção do exercício de sua autonomia, como a obrigatoriedade do consentimento prévio, livre e esclarecido do deficiente para a realização de tratamento, procedimento, hospitalização e pesquisa científica ( Brasil, 2015).
A previsão do direito ao consentimento no art. 12 da referida lei enaltece a autonomia privada do paciente deficiente, bem como de qualquer pessoa, sendo, portanto, dever do médico prestá-lo, agora, sobretudo, diante de expressa previsão legal.
Nesse sentido, como exposto anteriormente, cabe então ao paciente decidir se quer e qual tratamento vai se submeter, mediante a informação, clara, completa e esclarecida do profissional da saúde, ou seja, em um processo dialógico, reafirmando o exercício do direito ao próprio corpo do deficiente. O Código da Nação também inovou ao dispor expressamente o consentimento livre e esclarecido no art. 59 como direito de personalidade.
Nos casos em que o deficiente estiver sob curatela, deve ser assegurada sua participação, no maior grau possível, para a obtenção de consentimento ( Brasil, 2015), tendo em vista a garantia da autodeterminação do paciente deficiente, quando puder exprimir a sua vontade, assim como ocorre na Argentina com o sistema de apoio.
Diante disso, observa-se que o EPD foi louvável ao ratificar o exercício da autonomia privada do paciente e do direito ao próprio corpo e integridade psicofísica, sendo dever dos profissionais da saúde fornecerem-lhe todas as informações necessárias para o adequado consentimento livre e esclarecido, mesmo em situações de curatela, assim também como ocorre na Argentina;
Contudo, é possível afirmar que seria aplicável o termo de consentimento para os doentes mentais? Em outras palavras, é legítimo o consentimento do deficiente ou doente mental para a realização de tratamento, procedimento, hospitalização e pesquisa científica com as novas leis?
Frisa-se que não se está defendendo a incapacidade absoluta dos doentes mentais para todos os atos da vida civil. Contudo, a revolução radical do regime da (in) incapacidade civil com as novas leis foi de um extremo ao outro. Em um contexto outrora paternalista, tornou-se liberalista.
Não se está aqui condenando o exercício da autonomia privada desses indivíduos, mas, a princípio, criticando-se a mudança radical que a Lei n. 13.146/2015 provocou no regime de capacidade civil, sobretudo para os doentes mentais e deficientes mentais.
Observa-se que na Argentina ao menos há uma espécie de capacidade progressiva, ou o deficiente mental é capaz, ou tem sua capacidade restringida, ou se torna inabilitado, ou incapaz para o exercício de um ou mais atos para a vida civil, por meio de decisão judicial.
Já no Brasil, antes da mudança radical promovida pela Lei n. 13.146/2015 observava-se um evidente paternalismo, tanto do ponto de vista clínico, como jurídico. Entretanto, com essa nova lei evidencia-se a tentativa da promoção da autonomia do paciente doente mental ou deficiente mental rotulando-o como capaz para todos os atos da vida civil.
Sendo assim, o consentimento de tais pessoas em casos de hospitalização e procedimentos médicos tornou-se necessário e válido. Mas sobre quais aspectos? Como de fato comprovar que a vontade foi livre e esclarecida, que ocorreu o exercício da autonomia privada do paciente?
Não é possível enquadrar todos os deficientes e enfermos mentais no mesmo contexto, existem aqueles que têm certo grau de cognoscibilidade e com um acompanhamento médico alinhado às suas limitações poderão sim emitir um consentimento livre e esclarecido, como portadores da síndrome de Down, com grau mais leve (Valverde; Inchauspe, 2014).
No excesso, na via contrária, pecou a Lei n. 13.146/2015, ao atribuir a capacidade aos doentes mentais, sem deixar de levar em consideração que essa capacidade deveria ser aferida a cada caso, e, se para todos ou determinados atos da vida civil, problema este que também pode ser verificado no Código Civil argentino atual, inclusive conferindo a capacidade para as pessoas que se encontram internadas.
Veja-se que, conforme o art. 85 do EPD, como se abordou, a curatela passou a abranger somente direitos de natureza negocial e patrimonial. Assim, como proteger o vulnerável sem nenhum grau de discernimento ou com este reduzido?
Ao mesmo tempo observa-se um conflito normativo na própria lei, pois, como explanado no capítulo anterior, o art. 12, §1º prevê que os deficientes em situações de curatela devem ter assegurada a sua participação no maior grau possível na obtenção do consentimento. Ora, se a curatela é somente para direitos patrimoniais ou de natureza negocial não deveria haver limitação da vontade do deficiente para tratamentos e procedimentos médico-hospitalares.
Contudo, percebe-se com essa disposição legal uma preocupação louvável do legislador em proteger o vulnerável, sobretudo os doentes e deficientes mentais. Verifica-se, no entanto, que o que deveria ser a regra na nova lei brasileira, como ocorre na Argentina, trata-se de uma exceção, pois só em casos de curatela é que, a princípio, é exigida a participação de um terceiro.
Isso porque ainda que com a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência o doente ou deficiente mental passe a ser capaz, não terá, na quase maioria dos quadros clínicos, sempre momentos de lucidez e ter o discernimento (cognoscibilidade) para emitir um consentimento livre e esclarecido em tratamentos e procedimentos de hospitalização (Buchanan; Brock, 2009,).
O Código Civil e Comercial da Argentina confere ao juiz o poder-dever de nomear apoios ao paciente, enquanto no Brasil a tomada de decisão apoiada é uma faculdade da própria parte, conforme estabelece o art. 84, §2º do Estatuto, sendo requerido pelo interessado ao Juiz, de acordo com o art. 116.
Na Argentina, inclusive, a regra prática é primeiro nomear um ou mais apoios, e em medida extraordinária, caso não seja suficiente para a proteção da pessoa é que se nomeia o curador (Klepp, 2015).
Na medida em que o enfermo mental não tiver competência necessária para exprimir a sua vontade, é importante que a família e amigos auxiliem na construção de qual seria essa real vontade do paciente, conferindo-lhe a promoção da sua dignidade, sem deixar de lado seus gostos e preferências (Almeida, 2011).
Essas mudanças não acontecerão de um dia para o outro, como se pretende com o Estatuto da Pessoa com Deficiência brasileiro e com o Código Civil e Comercial argentino, pois, o paternalismo médico não deixará de existir com as novas leis. São necessárias mudanças (bio)éticas no meio médico, na busca da liberdade individual com o consentimento dos doentes mentais, no respeito à sua autonomia privada, desde que possível (cognoscibilidade), e não na beneficência a todo custo (Puyol, 2012).
Visualiza-se, portanto, um problema estrutural, tanto na elaboração como na aplicação das leis, bem como na prática do seu exercício, ou seja, os critérios de capacidade precisam de um intenso diálogo entre legisladores, juízes, médicos, pacientes e sociedade, o que muito carece desse estado que se diz democrático de direito.
5. Considerações finais
A Lei n. 13.146/2015 no Brasil e a Lei n. 26.984/2014 na Argentina radicalizaram o regime das capacidades, ao propiciar a autonomia dos doentes e deficientes mentais, superando a sua condição de vulnerável de outrora, com a "emancipação" de tais pessoas como capazes para todos os atos da vida civil.
Com isso, observou-se neste artigo que a simples mudança no texto legal, seja no Brasil ou na Argentina, não garantirá o exercício da autonomia privada desses indivíduos, que carecem agora de instrumentos que não violem a sua dignidade, tendo em vista que se trata um problema estrutural, de aplicação e elaboração normativa, além de uma cultura paternalista de outrora.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, assim como o Código da Nação, inovaram ao trazer a obrigatoriedade do consentimento prévio livre e esclarecido, do paciente deficiente nos procedimentos hospitalares e tratamentos médicos. Contudo, como se verificou nesta pesquisa, para se legitimar a vontade real do paciente doente ou deficiente mental é imprescindível o diálogo entre profissionais da saúde, legisladores, judiciário, os próprios pacientes e a sociedade.
Isso porque o Brasil, assim como a Argentina, há carência de treinamento médico para lidar com esse tipo de pacientes, de promover a escuta e a forma de entender os doentes mentais, considerando a cultura paternalista instaurada de que o médico sempre sabe o que é melhor para o paciente, sobretudo, quando este tem o discernimento (cognoscibilidade) reduzido ou inconstante.
É imprescindível que as clínicas e instituições hospitalares criem procedimentos claros e objetivos, junto aos conselhos de medicina e outras classes de profissionais da saúde, de forma a determinar objetivamente a competência do paciente doente ou deficiente mental, para se confeccionar um TCLE advindo de um consentimento livre e esclarecido eficaz.
Defende-se, portanto, por uma capacidade na qual a deve ser verificada em cada caso, por avaliação específica, pois, se estamos falando de pessoas, então nenhum caso será exatamente igual ao outro, ainda que se trate da mesma patologia.