1. Considerações iniciais
Uma das mais intrigantes questões bioéticas contemporâneas que permeiam a abordagem médica em Neonatologia refere-se à tomada de decisão em casos de recém-nascidos portadores de malformações congênitas com elevado índice de letalidade e neonatos em limite de viabilidade.
O avanço da ciência e da tecnologia médica em geral - embora permita um diagnóstico com alto grau de precisão e confiabilidade, bem como uma abordagem terapêutica precoce em alguns casos -, suscita dilemas éticos e jurídicos, como a possibilidade de se demandar judicialmente a interrupção de uma gestação e a decisão pela adoção de cuidados paliativos neonatais e descarte de intervenções extraordinárias dispendiosas em pacientes com escassas possibilidades de recuperação e sobrevivência.
A dificuldade bioética em se estabelecer limites para a atuação médica que vise prolongar a vida em recém-nascidos malformados e criticamente enfermos tem diversas razões: o sentimento de frustração da equipe médica ao entender erroneamente a morte como um fracasso, a prática de uma medicina intervencionista que privilegia o excesso de procedimentos e não valora devidamente os cuidados paliativos - muitas vezes por não conhecê-los devidamente -, o temor da judicialização e do entendimento da família de que não teriam sido utilizados todos os métodos terapêuticos disponíveis, o predomínio da autoridade parental e do poder decisório dos pais diante da impossibilidade de exercício da autonomia do recém-nascido, a discussão sobre a licitude da obstinação terapêutica.
A esse cenário de incertezas, adicionam-se as discussões éticas e jurídicas sobre o aborto, a diferenciação bioética entre as formas de interrupção da gestação denominadas aborto eugênico e interrupção seletiva, a impossibilidade de se definir de forma indiscutível e universalizável um conceito de morte digna e a defesa dos direitos das pessoas com deficiência a medidas não discriminatórias e de inclusão social.
A legislação protetiva dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil, amparada pela Lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) visa a inclusão social e o extermínio da estigmatização e de qualquer forma de discriminação de pessoas com deficiências físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais. Deve-se analisar a amplitude da aplicação da norma aos recém-nascidos portadores de malformações congênitas graves e seu impacto em eventual decisão pela interrupção da gestação ou por condutas restritivas na abordagem médica terapêutica neonatal.
2. Diagnóstico pré-natal, aborto e considerações éticas
Os métodos diagnósticos em Medicina Fetal e o surgimento da área como especialidade médica remontam a 1984, com a publicação da obra The fetus as patient, de autoria de Mitchell Golbus, Michell Harrison e Roy Filly 1. A partir de então, métodos propedêuticos que incluem estudos genéticos, de imagem e histológicos tornaram-se mais difundidos e rotineiros, proporcionando certeza e segurança diagnóstica antenatal de doenças incompatíveis com a vida ou com elevado índice de letalidade pré ou pós-natal.
Passa a ser possível a diferenciação precisa e segura entre malformações (defeitos estruturais primários e alterações genéticas), deformações (normalidade genética com estímulo externo que acarreta alteração anatômica ou funcional, embora com possibilidade de regressão) e rupturas (defeitos morfológicos por interferência externa sem regressão) 2, o que influencia a tomada de decisões limítrofes ainda durante a gestação.
Defeitos do tubo neural são exemplos de malformações fetais e constituem um grupo de doenças multifatoriais e espectrais, com formas leves e outras graves como a anencefalia, que foi objeto de discussão no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, julgada em 2012 3. À ocasião, permitiu-se a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, sem que o fato venha a se enquadrar no tipo penal do aborto descrito no Código Penal Brasileiro 4 nos artigos 124 a 126, diante da inevitabilidade da morte do feto devido à própria patologia, razão pela qual a terminologia adequada passa a ser antecipação terapêutica ou seletiva do parto e não aborto. Afirmou-se a necessidade de se privilegiar a saúde física e mental materna diante do elevado índice de letalidade pré-natal da anomalia, a impossibilidade de vida plena extrauterina do anencéfalo, bem como sua equiparação a um "morto encefálico", considerada a interrupção irreversível das funções encefálicas como definidora da morte para fins científicos e jurídicos, conforme a Lei 9.434, de 04 de fevereiro de 1997 (Lei dos Transplantes) 5. A partir da citada decisão, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM n. 1.989/2012, que definiu diretrizes e critérios objetivos para o diagnóstico médico pré-natal da anencefalia. 6
Contudo, devido ao avanço da medicina diagnóstica fetal, possibilita-se conhecer situações em que os desdobramentos médicos e sociais ocasionados ao feto e à gestante podem ser idênticos aos descritos na anencefalia, fazendo-se necessário tratamento isonômico de casos em que as chances de sobrevivência dos seres gestados também são nulas.
A temática é tormentosa e mescla questões de cunho ético, moral e cultural, sendo frequentes os argumentos fundados em base eminentemente religiosa, da sacralidade e intangibilidade da vida humana. Ocorre que a matéria deve ser fortemente analisada sob o prisma científico, bioético e jurídico, sob pena de se esvaziar o conteúdo do direito fundamental à autonomia corporal da gestante, sujeito de seu processo terapêutico.
Ressalte-se a importância do diagnóstico pré-natal na promoção da autonomia da gestante, uma vez que não há que se falar em exercício de autonomia sem liberdade -entendida como ausência de coação ou vício de vontade na tomada de decisão- e sem discernimento, que constituem a base do consentimento livre e esclarecido. A decisão reprodutiva do casal, ainda que se questione a eticidade de eventual seleção embrionária tida por eugênica nos países em que o aborto é permitido de forma irrestrita, deve ser amplamente informada, tendo em vista que o paciente é o sujeito de seu processo terapêutico e não objeto de intervenção médica.
Todavia, a própria realização do diagnóstico pré-natal das malformações congênitas, a partir do aprimoramento tecnológico das metodologias utilizadas, passou a suscitar questionamentos quanto à sua eticidade.
Nesse tema, ressalte-se a contribuição sociológica de Anne Dusart, que afirma os aspectos preditivos e seletivos de tal diagnóstico: os primeiros em razão da possibilidade de se prever uma doença da qual o feto será portador, permitindo alguma intervenção, ainda que escassa. Seletivos por também proporcionar a decisão pela interrupção da gestação, nos países em que o ato é permitido. A autora ainda tangencia a ideia eticamente questionável de utilização dos métodos como parte de uma política pública de prevenção de deficiências. 7
Uma das relevantes vozes de oposição ao métodos diagnósticos pré-natais aptos a proporcionarem a prática do aborto de fetos com deficiências é a de Adrienne Asch, que manifestava opinião favorável à prática do aborto de forma geral, embora contrária à interrupção da gestação em casos de anomalias fetais. Sua tese referia-se à existência de uma presunção de que a vida com deficiência seria algo indesejável por seu desvalor, visão combatida pela autora por meio da rejeição de um modelo que considera a deficiência algo que possa ser licitamente evitado. Nas palavras da bioeticista:
"Minha oposição moral aos testes diagnósticos pré-natais e ao aborto seletivo decorre da convicção de que a vida com deficiência vale a pena e por acreditar que uma sociedade justa deve apreciar e cultivar a vida de todas as pessoas, qualquer que seja o legado recebido pela loteria natural da existência". ((8 tradução livre)
Nesse contexto, vale ressaltar que, no Brasil, permite-se a interrupção da gestação apenas em três situações: quando a gravidez representa risco iminente de morte materna (aborto terapêutico, necessário ou profilático), quando foi resultado de estupro (aborto ético, humanístico ou sentimental) e em casos de anencefalia. As demais hipóteses de interrupção voluntária como manifestação de autonomia reprodutiva não são admitidas.
No tocante às malformações congênitas, deve ser considerada a divisão bioética da interrupção da gestação, preconizada por Débora Diniz e Marcos de Almeida 9, para se afirmar a possibilidade de interrupção seletiva na gravidez no Brasil, mediante autorização judicial para quaisquer casos além da anencefalia. De acordo com os bioeticistas, as situações de abortamento podem ser agrupadas em quatro principais tipos, nos quais se enquadram condutas ilícitas vedadas pelo ordenamento jurídico e atos legalmente permitidos, pois abarcados por excludentes especiais de ilicitude.
O primeiro grande grupo é denominado aborto eugênico e compreende situações em que a gravidez é interrompida por motivos efetivamente preconceituosos e discriminatórios, fundados em desvalores étnicos, sexistas ou racistas.
No grupo nomeado como abortamento terapêutico ou necessário, ocorre a interrupção da gestação por razões de saúde materna, constituindo verdadeiro estado de necessidade, como causa excludente da ilicitude penal. Trata-se de hipótese admitida no ordenamento jurídico brasileiro, por configurar uma urgência médica visando salvar a vida da mãe.
Em terceiro lugar, tem-se a denominada interrupção seletiva da gestação, classicamente representada pela cessação voluntária de gestações de fetos com anomalias congênitas incompatíveis com a vida, como a anencefalia.
Por fim, tem-se o abortamento voluntário, ocorrido em nome da autonomia reprodutiva da gestante e do casal, sendo esse o grupo em que limites éticos e jurídico-penais, rígidos ou mais flexíveis, são impostos em grande parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais.
Entende-se ser desarrazoada e desproporcional a ideia de se considerar eugênica a interrupção da gravidez de um feto portador de malformação grave e incompatível com a vida. Nesses casos, a impossibilidade de vida decorre da patologia em si e não de um ato voluntário da gestante ou de um terceiro, razão pela qual admite-se que a cessação da gestação, na hipótese, não configura aborto, dado que, para a configuração desse tipo penal enquanto crime contra a vida, o sujeito passivo deve ter real possibilidade de vida. O enquadramento da situação como interrupção seletiva da gravidez é mais proporcional e consentâneo à bioética contemporânea.
Defende-se a tese, portanto, de que a realização da interrupção seletiva da gestação no Brasil, em casos de malformações congênitas graves e incompatíveis com a vida, não representa seleção eugênica ou desvalor à vida das pessoas com deficiência. O diagnóstico pré-natal de uma malformação congênita não é uma forma de pressão eugênica sobre o casal; em verdade, permite o exercício legítimo da autonomia da gestante em situações limítrofes em que todos os recursos médicos disponíveis não se mostram úteis para reverter a certeza da inviabilidade fetal. Ademais, segundo Débora Diniz, diversas pesquisas etnográficas realizadas com casais que receberam o diagnóstico de anomalia fetal demonstraram que a maioria deles opta pelo aborto apenas em situações extremas, casos de anomalias graves e incompatíveis com a vida. 10 O casal deve, portanto, ser suficientemente informado sobre todos os aspectos da gestação e da saúde do feto para que possa tomar suas decisões autônomas de forma livre, não havendo que se dizer que o conteúdo de tais decisões possa interferir no grau de informação diagnóstica que eles devam ter. O amplo direito de informação é inarredável de uma prática médica ética e fundada na promoção da autonomia do paciente.
3. Relação materno-filial diante do diagnóstico da malformação congênita fetal
A gravidez é cercada de expectativas para o futuro de um projeto idealizado de parentalidade, que se frustra e é abalado diante da notícia de que o feto é portador de anomalias congênitas. A gestação já se configura um período de transição e adaptações físicas, psíquicas e sociais, que são majoradas quando essa fase se acompanha de uma gravidez de risco ou de alguma patologia fetal.
A ideia de que o casal vai receber um filho que se mostra diferente daquele esperado e por eles idealizado pode representar, ainda que momentaneamente, a quebra de expectativas legítimas, a vivência de um luto do filho imaginário, a culpa por gerar um filho malformado e o temor das dificuldades inerentes à criação de uma criança com deficiências. Mostra-se premente a necessidade de acompanhamento multiprofissional da família, com abordagem psicológica e de assistência social, incluindo também o acompanhamento genético e de planejamento familiar para gestações futuras.
Em casos de malformações congênitas com elevado índice de letalidade, como a anencefalia, a agenesia renal bilateral, algumas displasias ósseas e síndromes cromossômicas como a trissomia do cromossomo 18 (Síndrome de Edwards) e a trissomia do cromossomo 13 (Síndrome de Patau), tais questões influenciam de forma contundente eventual decisão pela interrupção da gestação.
Já em hipóteses em que a anomalia fetal permite a vida extrauterina com deficiência, não se admite a interrupção da gravidez, não havendo que se falar em qualquer forma de interpretação extensiva ou analógica do permissivo judicial aplicado no Brasil nos casos de anencefalia. Trata-se de situação em que o casal, após as reações negativas iniciais de choque, culpa e negação, passa à tristeza, à reação e à aceitação, preparando-se para receber o bebê e para cuidar de um ser que necessitará de mais amparo e medidas de inclusão social 11. Será fundamental fornecer amplas explicações à família acerca do quadro clínico do bebê e possibilitar estratégias de acolhimento e inserção social da criança deficiente.
4. Os direitos da pessoa com deficiência no Brasil
Em vigor no Brasil desde 2016, o Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei 13.146 de 2015 - veio consolidar os direitos à acessibilidade e saúde, dentre outros, da pessoa com deficiência, visando sua inclusão social em condições de isonomia, sem qualquer forma de discriminação. No tocante à saúde e à proteção da vida, a pessoa com deficiência é considerada vulnerável em situações de risco, para fins de proteção estatal prioritária. 12
A norma determina a promoção de ações articuladas no Sistema Único de Saúde para fins de garantir a reabilitação do deficiente, seu diagnóstico e intervenção precoces e a adoção de medidas que busquem o desenvolvimento de aptidões para compensar a limitação funcional.
Número considerável de anomalias congênitas fetais não letais, diagnosticáveis durante a gravidez, proporciona o nascimento de neonatos com alterações que permitem seu enquadramento no conceito de pessoa com deficiência, como aquela que possui característica que gera obstáculos para sua colocação em condições de igualdade com as demais pessoas em sociedade. 13
Admite-se, portanto, o rompimento de um modelo médico clássico de deficiência, cedendo lugar ao conceito social, que posiciona a deficiência como um problema não exclusivo da pessoa doente e desamparada, mas como uma questão da sociedade, que, segundo Kazumi Sassaki, cria problemas para pessoas com necessidades especiais na medida em que lhes causa desvantagem no desempenho de seus papeis sociais, por práticas discriminatorias 14. Tal modelo social enfatiza os direitos dos deficientes e visa igualar oportunidades de inserção e reabilitação. Garante-se sobretudo o direito à diferença, como consectário inseparável da isonomia. Nas palavras de Flávia Piovesan, "o direito à igualdade pressupõe o direito à diferença, inspirado na crença de que somos iguais, mas diferentes, e diferentes, mas sobretudo iguais." 15
A igualdade de direitos e a vedação à discriminação devem ser amplamente garantidas à pessoa com deficiência, já que, no Brasil, apenas se permite a restrição dos direitos de uma pessoa por eventuais condições físicas ou mentais distintas, com a clara e única finalidade de protegê-la. 16
A discussão sobre a garantia dos direitos das pessoas com deficiências em recém-nascidos com malformações congênitas tomou ainda mais relevância no Brasil após a epidemia havida em 2015 e 2016 pela infecção de gestantes pelo flavivírus Zika, transmitido pelo Aedes aegypti. Demonstrou-se a ocorrência da síndrome neurológica Zika em fetos de gestantes infectadas durante a gravidez, sendo a microcefalia um dos mais frequentes achados que integram a síndrome 17. Em bebês nascidos com microcefalia, diversas outras alterações neurológicas foram descritas, como problemas nos globos oculares e nervos ópticos, convulsões, surdez e hipertonia muscular, além de impedimentos cognitivos, físicos e sensoriais 18. Aliado ao desamparo e vulnerabilidade social das famílias atingidas, mostra-se clara a necessidade de alocação de recursos sanitários para a reabilitação dessas crianças e sua devida inserção social, por meio de políticas públicas garantidoras dos direitos das pessoas com deficiência também na fase neonatal.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência é plenamente aplicável no período neonatal precoce em casos de recém-nascidos com deficiências decorrentes de malformações congênitas não letais, fundamentando, segundo Liliane Bernardes, "a necessidade de fatores de conversão para a equalização de oportunidades práticas" 19, bem como a garantia de condições para o desenvolvimento de suas capacidades.
5. Tomada de decisões em Neonatologia nas malformações congênitas graves
O processo de tomada de decisões referentes a cuidados intensivos e de fim de vida no período neonatal imediato é um dos maiores dilemas éticos que a Neonatologia contemporânea enfrenta. Mesmo com o inegável aprimoramento tecnológico que a especialidade observou nos últimos anos, não se consegue extirpar a álea própria aos procedimentos médicos de risco, sobretudo em casos de nascimento no limite de viabilidade e de malformações congênitas graves, incuráveis e terminais, com elevado índice de letalidade neonatal precoce. Ao mesmo tempo, é inegável a ampla proteção conferida aos direitos do recém-nascido vulnerável portador de deficiências. A esse cenário já repleto de incertezas, somem-se questões referentes à obstinação terapêutica fútil e à dignidade em fim de vida, em um período em que essa vida deveria estar apenas começando.
Tais decisões, muitas vezes, envolvem conflitos entre a família e a equipe médica, ocasionando choque entre a autoridade parental, a correta indicação clínica e o melhor interesse da criança, além de interferências do Estado em questões privadas e discussões sobre a licitude da obstinação terapêutica. 20
Na Neonatologia, tais questões mostram-se ainda mais nevrálgicas, por envolverem a frustração de um projeto parental do casal, a dificuldade das culturas ocidentais em lidar com a morte - sobretudo em crianças - e o compartilhamento com os pais de uma tomada de decisão que envolve direitos personalíssimos e impossibilidade de exercício da autonomia pelo direto titular do direito, o recém-nascido malformado.
Pouco se debate acerca dos cuidados paliativos em Neonatologia, sendo ainda comum, em Unidades de Terapia Intensiva neonatais, a adoção de procedimentos de obstinação terapêutica baseados em um conceito - por vezes errôneo - de beneficência e medidas fúteis que não têm o condão de alterar o curso natural da doença; ao contrário, acarretam sofrimento adicional à família e ao doente, tornando ainda mais doloroso seu já iniciado processo de morte. Pode-se dizer que ainda observamos resquícios de uma medicina brasileira paternalista, quando o princípio da autonomia há muito foi alçado como fundamental à saudável relação médico-paciente.
Na prática rotineira em Neonatologia, são comuns divergências entre a vontade dos pais e o que a equipe médica entende como a melhor alternativa terapêutica para o recém-nascido.
A literatura médica especializada tem se debruçado em discutir dilemas éticos dos cuidados neonatais em fim de vida, especialmente em recém-nascidos com graves e multissistêmicas malformações congênitas com elevado índice de letalidade, como algumas doenças cromossômicas. Uma das grandes dificuldades é encontrar critérios objetivos que permitam compatibilizar a proteção dos direitos e do melhor interesse do paciente, as expectativas legítimas dos pais, que buscam minimizar sua dor, e a tentativa da equipe médica de não incorrer em técnicas terapêuticas fúteis. Certamente, uma boa relação médico-paciente fundada na ampla informação e no diálogo podem auxiliar no encontro desse justo-meio.
Casos emblemáticos são os recém-nascidos portadores de trissomias do cromossomo 18 (Síndrome de Edwards) ou do cromossomo 13 (Síndrome de Patau), as mais frequentes doenças cromossômicas graves em nascidos vivos, ambas com elevado índice de mortalidade fetal e taxa de sobrevida pós-natal média de duas semanas. 21
A despeito da elevada letalidade e das esperadas e conhecidas complicações e desfecho dos pacientes com trissomia do cromossomo 18, relevante estudo realizado com neonatologistas norte-americanos demonstrou que, em 44% dos casos, intervenções sabidamente sem resultados úteis foram realizadas nos neonatos portadores da cromossomopatia, em razão de pedidos e desejos dos país 22. Da mesma forma, um estudo realizado na Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido demonstrou que, embora a grande maioria dos obstetras e neonatologistas acreditem que a trissomia do 18 é doença letal, inclusive com possibilidade de oferecer à gestante a interrupção da gestação (em locais em que o ato é permitido), cerca de 80% desses mesmos médicos oferecem tratamento fetal ou neonatal para maximizar a sobrevida dos fetos e recém-nascidos, se assim solicitado pelos país. 23
Os dados médicos científicos demonstram a inexistência de intervenções obstétricas ou neonatais que possam efetivamente alterar o curso natural dessas graves cromossomopatias. Até mesmo o Consenso Europeu de Ressuscitação, formulado em 2015, preconiza a não iniciação de medidas de reanimação em casos de anencefalia e trissomias dos cromossomos 18 e 13, como forma de abordagem que não viola os preceitos bioéticos, pois as patologias estão associadas a uma morte precoce praticamente certa e um elevado grau de morbidade, nos poucos pacientes que sobrevivem por alguns meses 24. Da mesma forma, protocolos de tratamento em Neonatologia preconizam a adoção de cuidados paliativos em neonatos com múltiplas e complexas malformações incompatíveis com a vida sustentada, situações em que cuidados extraordinários intensivos não afetarão positivamente o desfecho a médio prazo, como em casos de doenças genéticas como trissomias do 13, do 15 e do 18, triploidias, displasias tanatofóricas e casos letais de osteogênese imperfeita. 25
No Brasil, contudo, não há legislação específica sobre a morte digna, que venha a conferir certeza e segurança jurídica à equipe de saúde na adoção de cuidados paliativos e no abandono de medidas terapêuticas extraordinárias. Questões referentes à distanásia - ora entendida como obstinação terapêutica fútil - e à ortotanásia enquanto morte a seu tempo, são debatidas em bases doutrinárias da proteção integral e tutela da dignidade humana e embasadas por normas infralegais emanadas sobretudo do Conselho Federal de Medicina.
Apesar da ausência de regulamentação legal específica, o que ora se defende é que a adoção de medidas de não reanimação e cuidados paliativos em Neonatologia não é considerada preditiva de uma ideia de desvalor da vida da pessoa com deficiência, pois determinada em situações extremas de terminalidade da vida, com respeito à dignidade na morte e à autonomia relacional.
6. Considerações finais
A temática da abordagem do feto e do recém-nascido malformado é um dos grandes dilemas bioéticos da contemporaneidade e não encontra respostas únicas, por abarcar questões éticas e jurídicas que tangenciam a responsabilidade médica no diagnóstico e esclarecimento sobre condutas possíveis, a autonomia da gestante, o aborto, a tomada de decisão em casos limítrofes, o valor de uma vida com deficiência e os direitos do recém-nascido portador de malformações congênitas.
Uma abordagem relacional humanista do casal que recebe a notícia da malformação congênita de seu filho por parte da equipe médica, privilegiando a informação para uma decisão autônoma e livre, é fundamental e evita, inclusive, a judicialização de conflitos envolvendo a difícil e tormentosa tomada de decisões em Neonatologia, sobretudo em casos de doenças incuráveis com elevados índices de letalidade neonatal precoce.
O diagnóstico de uma malformação congênita fetal não se resume à decisão pela possibilidade do aborto ou a uma vida gestada com deficiência, tampouco limita-se a uma predição de morte certa e absoluta impossibilidade terapêutica. As anomalias congênitas fetais são doenças espectrais, havendo casos em que a vida com deficiência é possível e deve ser amplamente protegida, visando a inclusão social e reabilitação do paciente. Em outras situações, a anomalia multissistêmica é grave e impede a vida extrauterina, sendo que, a despeito de qualquer desejo da família, a medicina mostra-se impossibilitada de alterar o curso natural da doença. São esses os casos que devem se pautar pelo respeito à morte digna, com o abandono de condutas terapêuticas extraordinárias fúteis e adoção de cuidados paliativos, cuja aceitação como parte da atenção destes pacientes ainda está sendo construída. Isso após ampla informação aos pais ou responsáveis legais das condições de saúde do neonato, privilegiando a autonomia e o compartilhamento da tomada de decisões.
Não se mostra razoável cunhar como eugênica a decisão materna pela interrupção de uma gestação em caso de malformação congênita letal, tampouco defender que o diagnóstico pré-natal se presta apenas a propiciar e legitimar tal decisão. É também desproporcional e desarrazoado entender como violadora dos direitos das pessoas com deficiência a opção pela morte digna e não intervenção neonatal em casos limítrofes, como doenças cromossômicas com elevado índice de letalidade. Em Neonatologia, há uma zona cinzenta de casos difíceis em que as decisões devem ser pautadas no melhor interesse do paciente, sendo essencial que a família e a equipe médica adotem uma postura de tolerância e neutralidade moral.
A ciência não é capaz de fornecer respostas precisas às questões éticas, mas os debates bioéticos devem se fundar na medicina baseada em evidências e em resultados científicos. Dominar e desenvolver a tecnologia existente mostra-se mais simples do que a árdua tarefa de usá-la de forma ética, de modo a promover qualidade na vida e também na morte.