1. A dimensão ética da alocação de recursos
Em termos gerais, a alocação de recursos refere-se à disponibilização ou afectação de recursos, ou meios de intervenção existentes, a determinados sectores de actividade ou pessoas (Encyclopedia Britannica on line). A mesma definição geral aplica-se ao âmbito da prestação de cuidados de saúde, no qual os recursos a alocar podem ser humanos, técnicos ou financeiros, sempre com um impacto significativo na vida das pessoas doentes e na saúde pública. Em qualquer domínio, a alocação de recursos é uma prática de boa gestão, independentemente do volume dos recursos existentes.
A alocação de recursos de saúde não pode ser perspectivada como uma acção puramente técnica, executada apenas por imperativos médicos (priorizando os estados clínicos mais graves), económicos (priorizando os meios terapêuticos que produzem mais saúde), de gestão administrativa (priorizando as opções que mais rentabilizam os meios existentes), ou políticos (priorizando as carências de saúde mais manifestas). "Alocar", derivando dos termos latinos ad (para) + locus, i (lugar), significa etimologicamente "colocar no local certo", a que pertence, no melhor local. É, pois, legítimo afirmar que "alocar" se reveste de uma dupla dimensão ética: numa perspectiva etimológico-conceptual, "alocar" designa colocar correctamente ou destinar bem os recursos disponíveis; numa perspectiva operatória, refere-se à atribuição dos recursos a "lugares" escolhidos. Em ambas as abordagens "alocar" exprime a opção pela melhor alternativa entre diversas possibilidades, avaliada a partir de critérios de "bem" e de "mal", pelo que não é apenas da ordem do factual, tecnicamente decidida, mas também de natureza normativa, eticamente ponderada.
A problemática da alocação em saúde ganha uma expressão e premência acrescidas à medida que se manifesta e acentua uma escassez de recursos. Eis o que se tornou evidente sobretudo a partir da revolução biotecnológica desencadeada com a descoberta da estrutura da dupla hélice do ADN, em 1953, a qual criou condições favoráveis para a produção de tecnologias terapêuticas avançadas e de fármacos inovadores. Estes foram permitindo curar, controlar ou mitigar cada vez mais patologias, com um nível de eficácia ímpar. No entanto, tornaram-se genericamente inacessíveis à maioria da população pelo elevado custo com que chegavam ao mercado o que, por sua vez, não incentivava à sua produção em maior quantidade. Emergiu assim uma nova realidade que se veio a tornar a conjuntura contemporânea para a alocação de recursos de saúde: existência efectiva de meios terapêuticos eficazes tornados inacessíveis pelo seu preço e escassez.
É neste contexto que: a nível macro, centrado nos serviços de saúde, se tona necessário que as entidades responsáveis pela saúde pública procedam a escolhas sobre os sectores a investir prioritariamente; a nível micro, centrado na pessoa doente, se impõe aos profissionais de saúde que escolham os doentes aos quais atribuem prioridade no acesso aos limitados recursos existentes (Kilner, 1995). Ou seja, em ambos os níveis de tomada de decisão se exige escolhas dos agentes responsáveis. Estas, enquanto opções humanas entre alternativas, têm sempre uma componente ética. De facto, toda a alocação de recursos de saúde encerra uma irredutível dimensão ética. Eis o que se evidencia desde os primeiros casos mediáticos de macro e micro-alocação de recursos, na sua actual conjuntura.
1.1 Macro-alocação e priorização dos serviços: a experiência de Oregon
Consideremos brevemente o mais inovador e pioneiro caso de macro-alocção de recursos de saúde na era da tecnologização dos cuidados de saúde. Referimo-nos ao "Oregon Basic Health Services Act", uma iniciativa do Estado Norte-americano de Oregon, aprovada em 1989 e implementada em 1994, que estabeleceu a obrigatoriedade de um seguro de saúde para todos os empregados, garantido pelos seus empregadores, e criou um pacote de cobertura universal estatal de cuidados básicos de saúde, para a população mais carenciada (Golenski e Thompson, 1991; Morone e Ehlke, 2013).
O contexto desta iniciativa remonta à grave depressão económica por que este Estado havia passado, durante a qual um segmento significativo da sua população havia perdido o seguro de saúde, e o Estado havia excluído algumas intervenções terapêuticas da cobertura pública devido ao seu custo financeiro. Entretanto, o processo é precipitado, em 1987, pelo caso muito mediatizado de um menino de 7 anos que sofria de leucemia e que carecia de um transplante de medula, um dos procedimentos excluídos da cobertura estatal de saúde. O menino faleceu enquanto decorria uma angariação pública de fundos (Spicer, 2010), o que gerou uma forte contestação social.
Instigado pela crítica generalizada da opinião pública, o poder político desencadeou uma iniciativa de alargamento da cobertura dos cuidados de saúde e de priorização dos serviços a contemplar, recorrendo à ponderação de duas metodologias. Uma primeira, técnica e comum, de análise económica de custo-utilidade, em que se avalia o ratio entre custo do procedimento terapêutico em causa e os benefícios produzidos, os quais são estimados em termos de saúde obtida e de anos de vida ganhos (Robinson, 2009). E uma segunda metodologia, inédita, de tomada de decisão comunitária, através da auscultação dos cidadãos acerca dos cuidados médicos que deveriam passar a ser cobertos pelo Estado. Este processo suscitou um entusiástico envolvimento da população que, em audições públicas e através de representantes seus, exprimiram as suas opiniões. Em 1984, reuniu-se um parlamento para os cuidados de saúde, constituído por cidadãos, que analisou os relatórios produzidos pelas várias comunidades e preparou um relatório final de que constava uma lista de 15 princípios de política pública de saúde a utilizar como critérios para a priorização de serviços de saúde. No termo deste processo, analisaram-se cerca de 700 diferentes condições clínicas e respectivos tratamentos e procedeu-se à sua priorização, tendo em conta a noção de justiça dos cidadãos.
O caso de Oregon evidencia que a macro-alocação de recursos de saúde, num contexto de forte limitação financeira, não podia depender apenas de uma avaliação económica (técnica), mas teve de integrar as opções éticas dos cidadãos.
1.2 Micro-alocação e a selecção de beneficiários: a experiência do God's Committee
Consideremos agora, também brevemente, o mais destacado caso paradigmático de micro-alocação de recursos de saúde para, mais uma vez, evidenciar o carácter decisivo da componente ética. Referimo-nos ao célebre God's Committe, designação por que ficou conhecido o Admissions and Policy Committee, instituído pelo nefrologista norte-americano Belding Scribner, em 1962, quando se viu confrontado com um número de doentes renais muito superior às capacidades de hemodiálise de que disponha. Ele havia aperfeiçoado a máquina de diálise, anteriormente criada para um uso único em situação de envenenamento, tornando-a apta a uma utilização recorrente. Este tratamento era extraordinariamente dispendioso e cada doente admitido necessitaria de o manter ao longo da sua vida. Os doentes começaram a afluir num número sempre crescente ao Seattle Artificial Kidney Center, sendo impossível atender todos. Scribner criou então uma comissão de nefrologistas - Medical Advisory Committee - para analisar os processos clínicos dos candidatos, selecionando apenas aqueles cuja sobrevivência dependia do acesso à hemodiálise. O número de pacientes apurados por esta comissão, porém, era ainda superior às capacidades técnicas do Centro, pelo que se impunha submeter os doentes já avaliados (técnica, medicamente) como clinicamente graves a um novo processo de selecção, desta feita realizada a partir de critérios sociais.
Esta comissão, constituída por sete pessoas comuns - advogado, ministro religioso, bancário, dona de casa, funcionário público, sindicalista e cirurgião (Levine, 2009) -, como uma micro representação da sociedade, procurou estabelecer critérios de selecção que favorecessem um apreciação objectiva, justa, dos casos. Entre estes critérios, não-médicos, foram considerados diferentes aspectos como a idade, género, estado civil, número de dependentes, salário, rendimento limpo, estabilidade emocional, educação, profissão, desempenhos passados e potencial para o futuro, e mesmo referências. Procurava-se avaliar o que podemos designar por valia social, atendendo aos méritos da pessoa (passado) e às consequências do seu falecimento (futuro), sobretudo no que se referia ao bem-estar dos seus dependentes (Jonsen, 1998). Os métodos de selecção desta comissão suscitaram muitas críticas, mas tiveram o mérito de evidenciar a necessidade de formular critérios não-técnicos, para além das avaliações médicas e interesses financeiros, para a priorização de beneficiários dos recursos disponíveis. Numa grave situação de escassez de recursos, a selecção dos pacientes procurava ser ética, numa tentativa de determinar o que seria mais justo, aplicando-o aos vários candidatos.
Com efeito, toda a alocação de recursos, macro ou micro, no passado como no presente, tem uma dimensão ética que não pode ser escamoteada e que conduz inexoravelmente à ponderação, bem fundamentada e sustentável, dos critérios a enunciar e a implementar.
1.3 Princípios éticos básicos na alocação de recursos: Justiça e Transparência
A formulação de critérios éticos para a alocação de recursos de saúde torna-se tanto mais premente quanto é certo que se manterão inexoravelmente necessários. Com efeito, apesar do reforço orçamental da maioria dos sistemas nacionais de saúde, o que deveria conduzir a um alívio na urgência e forte impacto das decisões a tomar, a pressão sobre os orçamentos para a saúde continua a aumentar (WHO, 2019) devido a uma pluralidade de factores como: as já referidas sempre novas tecnologias de ponta e dos fármacos de última geração, com custos de aquisição muito elevados, a que se soma uma crescente prevalência de doenças crónicas e o aumento da expectativa de vida, que se repercutem num maior número de utentes dos serviços de saúde e com mais necessidade de cuidados.
No decurso da longa reflexão ética sobre macro e microalocação de recursos de saúde, o princípio da justiça é invariavelmente invocado como elementar e incontornável. Este, porém, apenas enuncia a obrigatoriedade de 'tratar os iguais como iguais e os diferentes como diferentes (Aristóteles), sem preconizar qualquer forma de agir. É a partir deste enunciado formal e abstracto de justiça que várias teorias se desenvolvem na especificação do princípio geral em normas concretas de acção, estruturando diferentes critérios de atribuição de recursos.
Entre as teorias de justiça com maior impacto no domínio da saúde está a utilitarista. A justiça, na concepção utilitarista, consiste na realização do maior bem para o maior número de pessoas, isto é, na maximização do bem, no que corresponde à especificação do princípio da utilidade (e não propiamente da justiça), enunciado por Jeremy Bentham e Stuart Mill. Nesta perspectiva, os direitos individuais ou a pluralidade de valores sociais podem vir a ser negligenciados. Também não existe o compromisso de uma distribuição equitativa que, para os utilitaristas, apenas se justificará se contribuir para o incremento da utilidade social. Sendo este o critério hegemónico, a macro-alocação utilitarista vai privilegiar os serviços de saúde que atendam ao maior número de pessoas e cuja prestação realize um bem maior, isto é, que produza uma situação mais benéfica e duradoura.
No contexto da pandemia SARS-CoV-2, o utilitarismo justificará, por exemplo, a prioridade dada aos doentes COVID-19 em relação aos afectados por outras patologias, pelo elevado nível infecioso do coronavírus e o número exponencial de pessoas atingidas por esta doença. A nível micro, o utilitarismo concederá prioridade de acesso a cuidados de saúde de acordo com o benefício que cada um pode trazer à comunidade, excluindo naturalmente os mais velhos pela reduzida expectativa de vida útil. O critério de selecção de pacientes do God's Commitee, de acordo com a sua valia-social, era utilitarista. Em ambos os níveis, macro e micro, o utilitarismo estabelecerá prioridades a partir de uma análise de custo-benefício, economicamente orientada, que garanta uma alocação os recursos disponíveis de forma a maximizar o benefício, o bem-estar da população em causa, o melhor para o maior número, isto é, a produção da máxima eficiência.
Por outro lado, a teoria igualitária da justiça estrutura-se precisamente a partir do princípio de igual distribuição de bens elementares ou básicos por todas as pessoas, como sejam os cuidados de saúde primários. Trata-se da regra maximin que visa maximizar o mínimo de que todos possam usufruir. O igualitarismo, sobretudo no pensamento de John Rawls (que não é um igualitarista estrito), refere-se a uma 'igualdade de oportunidades' (princípio da igualdade equitativa de oportunidades) que, em determinadas situações, exigirá que se estabeleçam algumas desigualdades no sentido de beneficiar os mais desfavorecidos (princípio da diferença) e assim contribuir para a efectivação da igualdade, nomeadamente eliminando os efeitos negativos que a 'lotaria' da vida - género, raça, etnia, deficiência, entre outros - possa originar. Os princípios da igualdade equitativa de oportunidades e da diferença, conjuntamente, permitem compensar desvantagens arbitrárias e não merecidas, assim construindo uma justiça distributiva de benefícios e encargos, de direitos e deveres, a concepção de justiça como equidade. A maximização dos benefícios e a equidade são frequentemente considerados como os princípios estruturantes da alocação de recursos (Brock e Wikler, 2006). Em todo o caso, para Rawls, acusando assim também a influência do liberalismo, uma vez asseguradas as liberdades fundamentais de todos, são aceitáveis algumas desigualdades que procurem promover a igualdade ou que sirvam de estímulo para desempenho social de cada um.
O igualitarismo exigirá ao nível da macro-alocação a disponibilização universal de cuidados básicos, primários, à semelhança do que se verificou no Estado de Oregon. No plano da micro-alocação preconizará também um (máximo) mínimo de cuidados de saúde para todos os pacientes nomeadamente com COVID-19. Não obstante, um igualitarismo estrito admitirá o critério da ordem de chegada para acesso a cuidados diferenciados; num igualitarismo liberal, tipo rawlsiano como o que é desenvolvido por Norman Daniels, seria expectável que cada pessoa tomasse providências em relação à sua saúde ao longo da vida, podendo justificar-se, numa pandemia, a exclusão de pacientes em função da idade avançada em prol de um gozo mais equitativo de vida útil (Daniels, 1988).
Ainda a título de exemplo justifica-se referir a teoria comunitária que, na sua generalidade, em traços comuns que encontramos em Michel Sandel, Alasdair MacIntyre ou Charles Taylor, rejeita todo o modelo pré-estabelecido de justiça, considerando que a hipótese de um modelo único e universal de justiça, objectivo e válido para todas as sociedades, é utópico e desenraizado da realidade. Afirma então a importância de atender às diferentes comunidades, nas suas tradições culturais, nas suas vivências morais, nos direitos individuais e sociais que reconhecem, para se formular uma teoria ou princípio específicos da justiça que respondam às necessidades dessa comunidade, mantendo-se em consonância com a sua moral comum e contribuindo para o estreitamento e a consolidação da coesão social. O processo de auscultação cidadã na macro-alocação de Oregon ilustra bem o modelo comunitário de justiça que, no plano da micro-alocação, exigirá um debate contextualizado, um processo deliberativo para formulação de critérios de priorização consensuais com os valores da comunidade a que se aplicam.
Esta referência pontual a algumas teorias de justiça pretende evidenciar a dificuldade, ou impossibilidade, de adoptar um único modelo de justiça na exclusão de todos os demais. Mesmo supondo possível a identificação de uma amplamente consensual noção de justiça - como se tende hoje a verificar com a justiça como equidade -, e também de normas ou critérios da sua aplicação aos casos concretos - mais inverosímil porque a controvérsia surge na construção da equidade, nas formas de compensação pelas desvantagens naturais -, ainda seria necessário atender ao tecido socioeconómico da comunidade em que se intervém: sociedades mais ou menos igualitárias vão exigir diferentes estratégias para concretizar a justiça. Em síntese, a justiça social deve ser perspectivada como um processo deliberativo, plural e inclusivo, e permanentemente em aberto.
Aliás, esta é a razão fundamental para enunciarmos a exigência de um segundo princípio ético irredutível e transversal na alocação de recursos: o da transparência. A obrigatoriedade de transparência - formulada no domínio financeiro, desenvolvida no domínio político e em ambos associada à noção de dever de prestar contas ou de responder perante outros -, refere-se originariamente ao que deixa passar a luz, deixando assim também passar o olhar ou tornar-se visível, isto é, tornar uma determinada realidade publicamente acessível. No caso da distribuição de bens limitados pela população exige-se que os critérios sejam visíveis ou acessíveis ao conhecimento de todos, devendo poder ser amplamente explicados, racionalmente argumentados e consensualmente aceites. Todo o critério de priorização que seja tido por conveniente reservar da opinião pública é porque, afinal, não é ético. A transparência constitui o comprovativo do compromisso para com a justiça e requisito incontornável para sua legitimidade.
Consideramos, pois, que existem dois princípios éticos que se impõem rigorosamente como indeléveis, ao nível macro e micro da alocação: o da justiça, na enunciação dos critérios de afectação dos recursos, principalmente em situação de escassez, e o da transparência, na sua aplicação.
2. Critérios de alocação: ponderação ética do 'racionamento' versus 'racionalização'
A alocação de recursos de saúde, particularmente a nível mais imediatista como é o micro, agrava-se em situações excepcionais como as de guerra, de desastres naturais e de pandemia, como a que tem dominado o mundo em 2020, sendo que as exigências éticas na formulação dos critérios e na sua implementação se intensificam também.
Nas situações de emergência torna-se mais frequente utilizar o termo 'racionar', ou limitar a quantidade, como sinónimo de "alocar", ou gerir o disponível, sendo ainda frequente a afirmação de que "alocar" é sempre "racionar". Consideramo-lo, porém, não só conceptualmente equívoco, mas também inquinador de um processo de deliberação já por natureza complexo. Com efeito, mesmo no contexto económico-financeiro originário destes conceitos, eles apresentam-se distintos: "alocar" focando-se nos bens disponíveis e o "racionar" nas pessoas a contemplar. No contexto específico da prestação de cuidados de saúde, "alocar" refere-se à distribuição dos recursos e o "racionar" a um método possível de alocação restritiva ou em quantidade limitada, sendo o primeiro conceito mais amplo que o segundo, o qual se reveste de uma conotação negativa que o primeiro não tem (Sulmasy, 2007). Os conceitos são efectivamente próximos o que, para além de facilitar a confusão entre ambos, torna mais premente a sua distinção sobretudo na medida em que esta é moralmente significativa: a "alocação" gere os recursos existentes, independentemente da sua escassez, o 'racionamento' limita a sua distribuição, apenas ocorrendo em tempo de escassez.
De facto, "racionar" é um modelo ou método de "alocar", não sendo, porém, o único. Alocar pode não ser racionar; pode ser também "racionalizar", sendo este um outro conceito que surge no âmbito da alocação dos cuidados de saúde, ainda que raramente. A sua conceptualização, sobretudo comparativamente à de "racionar", apresenta-se ambígua e difícil, agravada pela semelhança fonética entre os dois termos. Não obstante, "racionamento" e a "racionalização" constituem duas diferentes modalidades de alocação de recursos de saúde, que impõem uma lógica distinta de priorização (Patrão Neves, 2020). Não obstante, a literatura da área não tende a marcar as diferenças entre ambos e menos ainda a destacar as distintas implicações dos dois modelos, utilizando quase invariavelmente o termo 'racionamento' sempre que se refere ao contexto de uma procura de recursos de saúde superior à sua disponibilidade. Esta perspectiva homogeneizadora, e por isso redutora também, de dois modelos de actuação distintos é bastante penalizadora sobretudo em situações tão graves como a de pandemia. Eis por que a sua distinção importa.
2.1 Definição dos conceitos e sua operacionalidade
A distinção que se impõe entre "racionamento" e "racionalização" deve iniciar-se pela recuperação da sua etimologia como base objectiva para a sua definição.
Do ponto de vista etimológico, "racionamento" e "racionalização" têm um étimo latino comum, ratio (onis). Este substantivo, todavia, apresenta duas significações: pode referir-se ao à "conta", "cálculo", um cálculo numérico, ou seja, ao produto ou resultado de uma actividade mental; podendo também referir-se à "capacidade para calcular", à razão, inteligência ou juízo, ou seja, ao próprio exercício mental, à faculdade humana que é a razão. Daí que o termo latino ratio esteja na origem tanto do verbo ratiocinor (aris, ari, atus, sum), que significa "contar", "fazer cálculos", como no do adjectivo rationale (is), que significa "dotado de razão", "em que se emprega o raciocínio".
Os actuais termos "racionamento" e "racionalização" recuperam respectivamente os dois sentidos originais de ratio: o "racionamento" foca-se no produto, no rácio ou coeficiente entre dois valores, como sejam os bens a atribuir e as pessoas deles carenciadas, que permite estabelecer a relação entre ambos; a "racionalização" foca-se no exercício da razão, no acto de racionalizar ou aplicar a razão a qualquer decisão, inclusivamente a de alocação de recursos, no sentido de obter o máximo benefício, tornando-a mais eficaz.
Assim também, do ponto de vista conceptual, construído a partir da etimologia dos termos, mas sobretudo da sua utilização ao longo do tempo e em vários contextos, particularmente o económico-financeiro em que se têm desenvolvido, "racionar" refere-se ao processo de carácter administrativo, de regulação e principalmente de controle na distribuição de bens limitados. "Racionalizar" refere-se ao processo de reorganizar os sistemas ou processos em causa, podendo incluir reduzir ou eliminar linhas de actuação ou reforçar o investimento em outras, tornando a acção mais lógica e justificável, assim como mais consistente e eficiente.
Do ponto de vista operatório, ou seja, da aplicação dos conceitos à realidade concreta, na consideração das suas modalidades e impactos, e muito especificamente à alocação de recursos de saúde, o "racionamento" classifica restrições oficiais ao consumo de determinados bens tornados acessíveis a um determinado número limitado de pessoas. Por exemplo, no início da pandemia, os desinfectantes esgotaram da venda pública. À medida que reduzidas quantidades destes produtos chegavam ao mercado, a sua venda ia sendo racionada, permitindo-se que cada pessoa adquirisse apenas uma quantidade limitada, na base do "primeiro a chegar, primeiro a ser servido", até o produto se gastar de novo. O objectivo foi tornar estes bens acessíveis a um número máximo de pessoas, através da redução da quantidade disponível a cada um. Um outro exemplo pertinente é relativo às máscaras de protecção que não só se esgotaram no mercado de consumo público, mas também no de fornecimento aos profissionais de saúde. Quando a sua produção se intensificou, atribui-se prioridade de acesso a profissionais de saúde e outros na primeira linha de combate ao coronavírus. Esta é uma outra forma de racionamento de acesso através da priorização de pessoas.
Neste mesmo contexto, a "racionalização" reporta-se à reorganização dos espaços, equipamentos e actuação dos profissionais de saúde no sentido de, com os meios existentes e seu eventual reforço, satisfazer as necessidades num dado momento. Na situação de pandemia do SARS-CoV-2, houve uma afluência excepcional de pacientes de elevado nível infecioso que importava manter isolados de todo o contacto físico, pelo que se tornou também imperioso reestruturar procedimentos. A reformulação dos espaços de circulação de doentes e profissionais e dos protocolos de higienização pessoal e de desinfecção dos espaços hospitalares, por exemplo, corresponde a acções de racionalização de recursos. Neste processo, também se fecharam serviços hospitalares e tornou-se necessário reprogramar, por exemplo, consultas e cirurgias para doentes não-COVID-19, o que terá sido feito em função da rentabilização dos meios disponíveis. Esta é uma outra forma de racionalização dos cuidados de saúde, através da priorização de serviços e não de pessoas.
A priorização em saúde não é sinonimo de racionamento, tal como a generalidade da bibliografia da área assume, mas pode ser feita também através da racionalização dos recursos, o que implica distintos procedimentos, com diferentes fundamentações e implicações éticas.
2.2 Fundamentação ética da priorização em saúde
A situação de escassez de recursos para a satisfação das necessidades de cuidados de saúde da população impõe uma exigência ética acrescida na formulação de critérios de priorização justos e transparentes, o que se agrava no estado excepcional de pandemia pelas consequências dramáticas das decisões tomadas.
A recusa de formulação de critérios de priorização, como seria a manutenção da regra "primeiro a chegar, primeiro a ser servido", na sua intrínseca aleatoriedade, poderia ser subscrita por igualitários estritos decorrente do reconhecimento da incapacidade de formulação de um princípio de justiça objectivo. Porém, as entidades envolvidas cairiam na crítica de falharem ou de se demitirem das suas responsabilidades.
A adopção do critério "maior gravidade, maior prioridade", mantendo o modelo clássico de triagem nas urgências e alargando-o ao domínio da saúde pública é desafiado nomeadamente por utilitaristas que criticam o investimento dirigido a doentes sem perspectiva razoável de sobrevida, desviando os escassos recursos de outros doentes menos carenciados, mas com maior probabilidade de recuperação.
Há, pois, urgência na consideração dos modelos alternativos de "racionamento" e de "racionalização" no estabelecimento de prioridades no acesso aos escassos cuidados de saúde.
2.2.1 Como cumprir a justiça social e respeitar a dignidade pessoal
O racionamento, como já dissemos, refere-se à distribuição de recursos limitados por um número também limitado de pessoas, segundo critérios, que se querem justos e transparentes. Estes critérios são formulados a partir da apreciação de características pessoais como vimos no exemplo das máscaras: a profissão - ser profissional de saúde ou polícia, ou trabalhar na cadeia de abastecimento alimentar - será factor de preferência para acesso prioritário às máscaras. Além da profissão há outras características habitualmente consideradas como sejam o género, a idade, a etnia, a nacionalidade. Na pandemia de SARS-CoV-2 a característica mais debatida foi a idade da pessoa doente. O debate ético tende então a centrar-se na justiça inerente a cada uma destas características.
Porém, a questão fundamental, e prévia, é a da justiça de um critério de acesso prioritário baseado em características pessoais (muito em particular naquelas de que o próprio não é responsável). Afinal, qualquer que seja a característica distintiva considerada, discrimina-se sempre uns grupos de pessoas em relação a outros. Tratar-se-á de uma discriminação positiva. Esta diz respeito ao favorecimento de uns sem prejuízo dos demais, tendo em vista a maximização do bem colectivo. De facto, qualquer beneficio privilegiado de uns prejudica inevitável e comparativamente outros, mesmo que estes se mantenham factualmente na mesma circunstância. No caso da priorização dos profissionais de saúde no acesso a meios de protecção pessoal é óbvio que não só se contempla quem está mais exposto à infecção (circunstância diferente dos demais), mas também aqueles que são mais decisivos na preservação do bem comum, pelo que a discriminação positiva parece justificar-se, mesmo no reconhecimento do prejuízo comparativo de outros que verão diminuir as suas probabilidades de acesso a máscaras. Se, porém, considerarmos como exemplo uma característica em que o próprio não tem qualquer responsabilidade, como a idade ou a etnia, qualquer priorização se torna dificilmente justificável (Carrieri, Peccatori e Boniolo, 2020) e constituirá uma flagrante violação do princípio da dignidade humana e dos Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (Nações Unidas, 1948[2009] online) reitera, ao longo do seu texto, a igualdade entre todos os seres humanos e afirma, no ponto 2 do art.º 21º que "todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país", entre os quais o da saúde. Afirma também, no art.º 1, que todos são "iguais em dignidade e direitos". A "dignidade humana" refere-se ao valor absoluto (total, sem graus), incondicional (independente de qualquer condição), inalienável (não eliminável) e intrínseco (constituinte identitário) de todo o ser humano, o que não é compatível com qualquer forma avaliação a partir de características naturais.
A racionalização, por sua vez, e tal como também já adiantámos, diz respeito à utilização racional dos limitados recursos disponíveis, numa lógica de obtenção da sua máxima rentabilização: é através da optimização de qualquer recurso de saúde que este se torna acessível a um maior número de pessoas, isto é, quanto mais eficiente for a sua utilização mais alargada é a sua disponibilização. Assim sendo, a distribuição dos limitados recursos disponíveis processa-se a partir do impacto do seu desempenho em cada um dos seus possíveis beneficiários, num exercício maximizado da sua função: os recursos terapêuticos existentes são alocados às situações clínicas que deles mais possam beneficiar, em que o seu desempenho possa ser optimizado, independentemente, por exemplo, da profissão (escolhida pelo) do doente ou da sua idade (que natural e inevitavelmente vai somando).
À semelhança do que se confirma com o racionamento, a concepção utilitarista da justiça é observada também na racionalização; porém, ao contrário do que se verifica com o racionamento de bens de saúde, a sua racionalização também respeita o princípio da dignidade humana uma vez que a priorização da sua atribuição não se processa a partir da avaliação de características das pessoas doentes, mas sim das características dos recursos de saúde disponíveis a serem alocados às situações clínicas que poderão melhorar maximamente.
Em suma, enquanto o racionamento se foca nos doentes e suas características pessoais, a racionalização foca-se nos recursos e no seu desempenho. Ambas as abordagens podem ser apoiadas por uma concepção utilitarista da justiça pois, por vias diferentes, ambos visam a maximização do bem; porém, o racionamento permite o sacrifício de algumas pessoas em prol da maioria o que a fidelidade ao principio da dignidade humana, por via da racionalização, impede.
2.2.2 Como exercer eticamente o "racionamento" e a "racionalização" dos recursos
O "racionamento" e a "racionalização" na alocação de limitados recursos de saúde são eticamente legítimos quando aplicados em domínios específicos diferenciados.
O "racionamento" apenas se deverá exercer em relação a recursos de saúde não-vitais, como as máscaras. A este nível, a discriminação negativa que impõe a alguns, reverte a favor de um maior bem social (e.g. priorizar os profissionais de saúde), de que os próprios prejudicados poderão beneficiar, além de poderem ainda vir a ser compensados no futuro pelo seu prejuízo presente. Cumpre-se, pois, o princípio utilitarista da justiça, sem que o princípio da dignidade humana seja colocado em causa, num contexto temporal alargado.
Eis o que não se verificará se considerarmos recursos de saúde vitais, como sejam os ventiladores mecânicos. Neste caso, a priorização de alguns ditará a exclusão de outros cujas vidas serão sacrificadas, em prol das vidas privilegiadas, e sem possibilidade de recuperação do prejuízo sofrido. O princípio da dignidade humana, que afirma o valor absoluto, e por isso idêntico, de todas as vidas humanas, será assim desrespeitado pela avaliação feita da vida de alguns.
Pelo contrário, o modelo de "racionalização" pode ser aplicado tanto a recursos não-vitais como vitais, porque cumpre tanto o princípio da justiça, sob a perspectiva utilitarista de maximização do bem do maior número, quanto o da dignidade humana. Este é um marco indelével nas sociedades democráticas contemporâneas que pode e deve ser integrado numa concepção rawlsiana de justiça como equidade, a qual exige não só o providenciar de bens fundamentais universais, mas também o respeito por direitos humanos estruturantes.
2.2.3 Como considerar eticamente o factor "idade" na priorização dos recursos
Na reflexão sobre os critérios de priorização de doentes COVID-19, a característica "idade" foi recorrente no escrutínio do acesso à ventilação mecânica, um recurso vital. Quase invariavelmente foi constituída factor de exclusão - não se admitindo doentes a partir de uma determinada idade -, ou de secundarização no acesso (Beauchamp e Childress, 2009) - admitindo-se o idoso apenas na ausência de pressão sobre os recursos. Entre as justificações de racionamento destacam-se as que se fundamentam no princípio utilitarista da justiça: os idosos já viveram mais tempo que os outros; a sua 'expectativa de vida' é mais reduzida; tal como a sua "qualidade de vida" é menor (Emanuel et al., 2020). Aliás, estas expressões, axiologicamente neutras, tendem a substituir a referência à 'idade' numa pouco transparente política de linguagem. Ainda denotando falta de transparência, a orientação utilitarista preconiza o cálculo da eficácia do ventilador (numa perspectiva de racionalização) não pela probabilidade de recuperação da COVID-19, mas pelos anos de vida saudável que poderá vir a ter o que, sub-reptícia mas inexoravelmente, penaliza os mais velhos. Também se argumenta que a "idade" não é uma característica análoga a qualquer outra (etnia ou género) (Daniels, 1985), numa tentativa para contornar a violação da dignidade humana.
A "idade" como factor de "racionamento" não toma em consideração a diferença entre idade cronológica e idade biológica, tornando-se possível priorizar um doente cronologicamente mais jovem em detrimento de um outro biologicamente mais jovem, pelo que com mais e melhor horizonte temporal. Em segundo lugar, subestima os critérios médicos, nomeadamente comorbilidades. Em terceiro, a mesma lógica de exclusão por características físicas (proscritas em democracia quando se referem ao género, etnia, etc.) poderia ser coerentemente alargada à exclusão de muitas outras pessoas: portadoras de deficiência (Solomon, Wynia e Gostin, 2020), com doenças genéticas ou crónicas. Por fim, o estabelecimento de uma idade cronológica de exclusão varia bastante, sendo decidida não em função das pessoas em causa, mas em função de outros factores arbitrários.
O factor "idade" biológica terá de ser ponderado na priorização de acesso a recursos terapêuticos vitais sempre conjuntamente com os demais indicadores relevantes para a avaliação clínica da pessoa (Caplan, 2020) e nunca só por si (Deutscher, 2020; Ministerio Sanidad de España, 2020), a partir da qual se procederá à racionalização dos meios disponíveis.
A racionalização na atribuição de ventiladores a doentes COVID-19, acautela os quatro aspectos apontados, cumprindo a justiça como equidade, na maximização dos benefícios sociais e no tratamento igualitário de todos os cidadãos, assim também respeitando a dignidade humana, não excluindo ninguém.
A legítima distinção entre "racionamento" e "racionalização" contribui para uma mais eficiente e ética alocação de recursos em qualquer circunstância.
3. Justiça, Transparência e Dignidade para uma alocação ética em saúde
A alocação em saúde é, primeira e essencialmente, uma boa gestão dos recursos disponíveis, sendo uma exigência técnico-profissional de todos os tempos. É também uma exigência ética, que deve ser reconhecida e assimilada, na medida em que requer escolhas de priorização a partir de critérios humanamente formulados. Em tempos de escassez de recursos, e mais ainda em situações excepcionais como é a de pandemia, as escolhas tornam-se mais difíceis, sobretudo pelo facto de o privilegiar de uns implicar a exclusão de outros, com grande prejuízo para estes. Eis por que a formulação de critérios justos se perfila como um imperativo incontornável. Porém, porque existem várias teorias ou modelos de justiça, importa acrescentar o imperativo de transparência na implementação dos critérios adoptados.
Estes dois princípios não são, todavia, suficientes para garantir a eticidade da alocação em saúde porque existem casos em que a sua aplicação não previne a discriminação de algumas das pessoas mais vulneráveis nas nossas sociedades, como são os idosos. Só o respeito pela sua dignidade os pode proteger, pelo que este é o terceiro principio ético a considerar em toda a alocação em saúde.
A observância destes três princípios facilitará também a compreensão da necessidade de distinguir o "racionamento" e a "racionalização" como dois modelos de alocação em saúde, que não têm sido sistematizados na caracterização do seu diferente procedimento, nem, sobretudo, nas suas diferentes implicações éticas. Só a "racionalização" cumpre os requisitos éticos básicos apontados.