Introdução
A formação profissional na área da enfermagem tem sido objeto de discussões nas políticas públicas de saúde e nos órgãos de classe, como o Conselho Federal de Enfermagem (COFEn), o Conselho Regional de Enfermagem (COREn), e Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), sinalizando a lacuna que existe no âmbito da pesquisa sobre o ensino médio. Associado a isso, é sinalizado o despreparo profissional nas atividades de cuidado em enfermagem.1
No Brasil, a formação em enfermagem ocorre em dois níveis, que são: o de nível superior e o de nível técnico-médio. De acordo com os dados do Conselho Federal de Enfermagem, em 2022, há 655.012 enfermeiras, 1.560.060 técnicas de enfermagem e 44.3099 auxiliares de enfermagem atuando no Brasil.2 O perfil da enfermagem brasileira (dados de 2013) aponta que 77% são técnicas/auxiliares de enfermagem, e 85,1% são mulheres e jovens (61,7% tém até 40 anos), o que corrobora a divisão social do trabalho com presença maciça de profissionais de nível médio e a maioria de mulheres na profissão.3 Diante disso, há a necessidade de estudos e pesquisas sobre a formação de nível médio em enfermagem para a compreensão das mudanças na legislação educacional, assim como as propostas de mudanças nas práticas em saúde, de modo a torná-las mais qualificadas e preparadas para os desafios das políticas públicas de saúde.
Se há lacunas nas investigações sobre a educação profissional em enfermagem,1,4 o mesmo não ocorre em relação às mudanças curriculares no ensino superior dos profissionais em saúde. Com a Reforma Sanitária brasileira e a consolidação das políticas públicas de saúde, acentuadas nas duas últimas décadas, houve o interesse do governo federal, de coordenadores de cursos e de estudantes para que a formação garantisse a produção de novas práticas sociais e a busca de profissionais críticos e reflexivos para a implantação da integralidade em saúde.5
Considerando, pois, a educação profissional que não vise somente a inserção no mercado de trabalho, mas que seja um direito da classe trabalhadora da área de saúde, para seu reconhecimento no e pelo trabalho, que contemple a formação para a cidadania e maior articulação com a democracia, este artigo discute a formação de profissionais em nível médio em enfermagem para “entender as condições históricas que produzem e reproduzem o próprio sistema capitalista periférico e dependente, como é ocaso do Brasil, assim como, apontar formas de luta e de superação dessa mesma sociedade injusta e desigual, no passado e no presente”.6 (p. 13)
Utiliza-se como referencial de análise a historicidade das políticas educacionais de nível médio em enfermagem, traçando as contradições nas relações entre o trabalho e a educação em uma sociedade globalizada, sob o financiamento das políticas educacionais pelo capital estrangeiro, a formação voltada para o mercado de trabalho e seu cunho empresarial e a formação minimalista, acelerada e realizada, de modo geral, pela iniciativa privada.7
Diante disso, este ensaio tem por finalidade apresentar, de maneira crítica, a história das políticas de formação profissional de nível médio em enfermagem, trazendo, em suas análises, as contribuições de estudiosos sobre a temática e as perspectivas atuais relativas às políticas ministeriais no Brasil sobre essa formação. Foram utilizadas fontes bibliográficas de livros e artigos científicos consultados nas bases da Biblioteca Virtual em Saúde e Scielo sobre o tema em questão.
Dos anos de 1920 a 1970: a formação assistencialista para as camadas populares
No Brasil, o século XX foi marcado pelas condições de trabalho e de vida precárias; nesse período, as políticas de saúde visavam a melhoria do perfil epidemiológico da população, com medidas de higiene e profilaxia para prevenção de doenças. Nesse sentido, as políticas de saúde, desde o século passado, tencionaram o aumento da produtividade do país como alavanca para o setor econômico, sendo que esse contexto favoreceu a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, os serviços de enfermagem em Saúde Pública e a Escola Anna Nery na cidade do Rio de Janeiro.1
Além disso, as décadas iniciais do século passado no Brasil, que viveu a urbanização e o processo de industrialização, são caracterizadas pelos ideais hegemônicos da elite, do higienismo e da eugenia. A supremacia branca e a sua forma de organização social, que colocava à deriva os corpos de negros segregados social e racialmente, os colocou como pessoas inferiorizadas, “impuros, propensos aos vícios e à criminalidade”.8 (p. 8) Tais representações racistas, articuladas aos ideais higienistas e eugénicos,8 é uma perversa realidade da história brasileira.
Não sem razão, os obstáculos das mulheres negras para a inserção na enfermagem apontam que elas sempre estiveram ligadas ao cuidado humano: “foram excluídas da história da enfermagem brasileira e estigmatizadas pela disseminação de estereótipos distanciados da imagem simbolicamente instituída pela Reforma Sanitária de 1920”.8 (p. 12) Portanto, é possível dizer que, desde os primórdios da enfermagem brasileira, houve uma divisão social, sexual e racial, expressa pela impossibilidade de mulheres negras e pobres adentrarem na Escola de Enfermagem Anna Nery.9
Com relação à história da educação profissional brasileira, há consenso na literatura de que esta esteve historicamente marcada pelo caráter assistencialista às classes populares, visando a preparação e inserção no mercado de trabalho.6,10,11 A história da educação profissional é caracterizada pela divisão de classes sociais, na qual as mais favorecidas e elitizadas tiveram acesso aos saberes intelectuais (cursos normal e superior), e as camadas populares, aos saberes manuais, para exercerem a prática profissional. Na enfermagem, a divisão do trabalho também se fez presente, as atendentes ficavam com o trabalho rotineiro, e as atividades de supervisão e ensino, com as profissionais graduadas.11
A formação em educação profissional em enfermagem esteve marcada pelas atividades práticas em hospitais, residéncias e orfanatos, nos quais as novatas, sob a supervisão de enfermeiras, realizavam procedimentos básicos de saúde, sem, contudo, preocuparem-se com o desenvolvimento intelectual e teórico de suas alunas.6
Sob a perspectiva histórica, na década de 1930, ocorreu a regulamentação da prática profissional em enfermagem, por meio do Decreto n. 20109/31, que institucionaliza a formação em enfermagem na Escola Anna Nery,12 porém não fazia referéncia ao profissional de nível médio. No final dos anos de 1940, é instituída a formação das auxiliares de enfermagem. No entanto, por meio da Lei n. 4.024, de 1966, passa a existir a divisão do trabalho em quatro categorias: enfermeira, técnica, auxiliar e atendente de enfermagem.6 Sendo que esses trés últimos estavam sob a supervisão das enfermeiras.11
Ainda na década de 1960, houve a 4ª Conferéncia de Saúde, que explicitava a necessidade de formação dos profissionais de saúde ao nível médio e elementar, tendo como centralidade a formação para atender às demandas da população de maneira descentralizada e voltada para os problemas loco regionais. A formação de nível técnico em enfermagem deveria partir do princípio de que a formação requer investimento para a qualificação dos serviços de saúde e a humanização aos clientes. O acesso à educação é identificado como direito, e não apenas visando o aumento do nível de escolaridade.6 Portanto, ainda na década de 1960, há indícios de que a formação profissional de nível médio esteve relacionada com formação de mão de obra com menor custo, tencionando diminuir gastos com recursos humanos para implementação da política nacional de saúde.
Nessa mesma perspectiva, a Lei n. 5692/71 aponta que a formação de nível técnico deveria preparar os trabalhadores para fomentar a melhoria econômica e o desenvolvimento do país, ou seja, a educação voltada ao mercado de trabalho. A referida lei garantia ainda a supléncia profissionalizante para aqueles estudantes que tivessem pelo menos dois anos de trabalho em instituições de saúde.6 Ainda na década de 1970, a meta era “habilitar doze mil técnicos, qualificar trinta e um mil auxiliares, preparar cinquenta e dois mil atendentes”.11 (p. 15)
Dos anos 1980 aos anos de 2000: uma nova formação técnica?
Esses anos foram marcados por políticas ministeriais voltadas para a formação dos auxiliares e técnicas em enfermagem, como o Projeto Larga Escala (PLE), em 1981, e o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (PROFAE), em 1999. Para Isabel dos Santos, a precursora de projetos de formação profissional em enfermagem, a centralidade das políticas ministeriais foi a qualificação dos trabalhadoras de enfermagem, estando estas relacionadas à política de saúde para o fomento do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse contexto, a luta pela democracia sinalizava a implementação da igualdade, equidade e integralidade no setor da saúde.13 Entretanto, a autora reitera que não havia preocupação com a qualidade da formação, sendo esta uma estratégia econômica para a não contratação de profissionais de nível superior. Nesse sentido, houve a “improvisação e uma racionalidade econômica para fazer saúde com o recurso que era mais barato, porque ficava mais barato trabalhar com atendentes. Quanto maior a qualificação, mais teria que pagar por isto. Pessoal mais qualificado custaria mais caro”.13 (p. 854)
Como estratégia de formação dos profissionais de saúde, foi desenvolvido o Projeto Larga Escala (PLE), em 1981. A intenção, durante os anos de 1980, foi a de capacitar em grande escala os profissionais de nível fundamental e médio, em consonância com a Reforma Sanitária e os Centros Formadores do SUS, após a Lei Orgânica da Saúde n. 8080/1990. Houve acordo entre o Ministério da Saúde, da Educação e a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), com a finalidade de formar os trabalhadoras de enfermagem de nível médio e fundamental que já participavam das ações de saúde. A metodologia da problematização foi utilizada pelo PLE com disciplinas profissionalizantes, conteúdos referentes à profissão, cidadania e sobre o trabalho na saúde, com a proposta de uma formação que priorizasse os atendimentos da população, com o cuidado de uma educação que aproximasse professores e estudantes e com uma formação crítica.11
Em se tratando da mobilidade na carreira, um estudo nacional mostra que os atendentes de enfermagem que haviam concluído PLE conseguiram a inserção na categoria profissional de auxiliar de enfermagem, melhorias nas condições de vida e de consumo, aquisição de novas habilidades, identidade e valorização profissional, concepção ampliada do trabalho em saúde, além da mobilidade social ascendente. É possível dizer que este projeto possibilitou a produção de conhecimentos e a inserção dos trabalhadores na educação profissional.14
Do ponto de vista das metodologias educativas, houve inovação pedagógica baseada na metodologia da problematização de Paulo Freire. O avanço esteve relacionado com a formação do profissional que, até então, havia sido marcada pela pedagogia da transmissão, do tecnicismo, pela fragmentação dos saberes e a desconexão entre os núcleos temáticos, já que, ao problematizar as situações do processo de trabalho, possibilitou, em certa medida, o cunho de uma educação que pensasse em sujeitos críticos.11 Importante ressaltar que, durante décadas, o modelo médico-hegemônico da doença e da reabilitação foi o enfoque do ensino em saúde. Considera-se que, com a consolidação do SUS enquanto política de saúde, a formação profissional enfatiza a compreensão do processo de trabalho desses profissionais da saúde como direito e da integralidade nas ações de assisténcia.
Nas duas últimas décadas do século passado, ao contextualizar as políticas de educação profissional em enfermagem, é preciso sinalizar as mudanças no mundo do trabalho e das políticas educacionais, principalmente após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, n. 9.394/96), que efetiva a educação profissional baseada sob a noção de competéncias.
As mudanças no mundo do trabalho advindas com a acumulação flexível e as novas configurações do modo de gestão do sistema capitalista trouxeram não somente transformações no modo de gestão, mas também exigéncias aos trabalhadores de todas as atividades produtivas, sendo que a capacidade de saber lidar tecnicamente com o objeto de trabalho é requerida. Salienta-se que a noção de competéncias está estreitamente relacionada às exigéncias de um novo trabalhador subjetivamente envolto com a produção de suas atividades de trabalho e que deve “aprender a aprender”, acentuando as mudanças no mundo do trabalho. Nos processos educativos e nas políticas educacionais, a centralidade das pedagogias das competéncias legitima os currículos, as avaliações e a formação de professores.15
Nesse sentido, a área de saúde também é influenciada pelas mudanças no mundo do trabalho e das políticas educacionais, embora os vestígios da gestão taylorista-fordista permaneçam na área de saúde, há de considerar as novas exigéncias para este trabalho, ocorrendo “as influéncias do planejamento estratégico e da administração participativa e a preocupação com o maior envolvimento e comprometimento da força de trabalho, tendo em vista a melhoria da qualidade da assisténcia”.16 (p. 57)
Portanto, há evidéncias de que as mudanças advindas com a crise do capital da década de 1970 é precursora de transformações no mundo do trabalho e no sistema educacional, exigindo a qualificação dos trabalhadores, sendo refletida pela LDB de 96. A educação profissional passa a ter a finalidade de preparar os alunos para a inserção no mercado de trabalho, apoiada na noção de competéncias, pois, de acordo com os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico do ano de 2000, são expressas as noções de competéncias como a énfase no saber ser e o saber fazer,17 o que distancia das propostas pedagógicas que envolvem as críticas aos efeitos do sistema capitalista, às inúmeras desigualdades e ao comprometimento comunitário para as mudanças sociais.18
Destaca-se que, dentro deste contexto, as políticas de educação profissional influenciaram a enfermagem, já que, após a LDB, ocorreu a flexibilização nos módulos complementares e sequenciais dos cursos, a expansão de ofertas na área privada e a formação acelerada e minimalista, pautada na noção de competéncias e na formação para atender às demandas do mercado de trabalho. Na análise crítica à noção de competéncias na educação profissional em enfermagem, por meio do Parecer n.16/99, não há evidéncias sobre a integração das políticas de formação em saúde como interlocutora de uma educação emancipatória crítica e de direito ao conhecimento.7
De maneira geral, as discussões sobre as políticas educacionais na enfermagem trazem, para a atualidade, sua história com a formação marcada pela divisão social do trabalho e para a empregabilidade permeada por uma educação tecnicista e sob a influéncia dos conhecimentos médicos e biológicos. Logo, para a análise das políticas de educação profissional em enfermagem na atualidade, há de se compreender as relações entre educação e trabalho, a especificidade do trabalho na área de saúde e as políticas de saúde que acenaram para a necessidade da formação dessas trabalhadoras.
As políticas federais da formação técnica em enfermagem no Brasil nos anos 2000.
No Brasil, há evidéncias da necessidade da qualidade da formação de nível técnico em saúde, tendo em vista que o Censo Escolar de 2010, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), identificou que 28,14% das matrículas da educação profissional no país são da área de saúde. Entre os anos de 2005 e 2009, houve aumento no número de postos de trabalho ocupados por técnicas em enfermagem, “aumentando em 105% enquanto houve uma redução de 21% nos postos destinados aos auxiliares. No total, esses trabalhadores ocuparam 72,8% das vagas destinadas a auxiliares e técnicos”.19 (p. 13) Uma das explicações para a diminuição de auxiliares e o aumento significativo de técnicas de enfermagem seria a implantação do Parecer n. 10/2000 do Conselho Nacional de Educação (CNE), que possibilita a complementação do auxiliar em técnico com aumento da carga horária. A tendéncia é que, nessa categoria, permaneçam as técnicas e as enfermeiras.19
A Secretaria de Gestão do Trabalho em Educação na Saúde (SGTES), vinculada ao Ministério da Saúde, foi criada em 2003, por meio do Decreto n. 4.726/2003, tendo em vista a formação e o trabalho na área de saúde: “que possibilitou a institucionalização da política de educação na saúde e o estabelecimento de iniciativas relacionadas à reorientação da formação profissional, com énfase na abordagem integral do processo saúde-doença, na valorização da Atenção Básica e na integração entre as Instituições de Ensino Superior (IES), serviços de saúde e comunidade, com a finalidade de propiciar o fortalecimento do SUS”.20 (p. 10)
Este órgão do governo federal é responsável pela implementação e divulgação de duas importantes políticas de formação de profissionais de enfermagem: o PROFAE, como já dito anteriormente, e o PROFAPS (Programa de Profissionais de Nível Médio para a Saúde).
O PROFAPS integra a qualificação profissional nas áreas de radiologia, patologia clínica e citotécnico, hemoterapia, manutenção de equipamentos, saúde bucal, prótese dentária, enfermagem, vigilância em saúde, agentes comunitários de saúde e de cuidadores de idosos. O programa teve início com a Portaria no.3.189 de 2009, com diretrizes para os programas de formação contínua e inicial, cursos de curta duração e o ensino técnico articulado com o médio.21
A génese do PROFAPS surge da necessidade de qualificação dos trabalhadores técnicos da área de saúde, incluindo a enfermagem. Utiliza-se a noção de competéncias e as experiéncias e conquistas do PROFAE, expandindo para outras áreas da saúde. O avanço deste programa está no seu financiamento, que ocorre por meio do bloco de Gestão do SUS, do Pacto pela Saúde. No ano de 2011, por exemplo, foram destinados 63 milhões de reais para a execução do PROFAPS.21 O fato de contar com o financiamento do próprio sistema de saúde, coloca em prática a valorização e o reconhecimento da necessidade de políticas de educação profissional de nível médio. Com relação às propostas pedagógicas, assemelham-se as do PROFAE, entretanto, articuladas as especificidades de cada área.
A formação de professores do ensino técnico em saúde é uma preocupação deste órgão do governo federal. Considera-se que a formação para a docéncia de nível técnico em saúde deve ser uma das centralidades das políticas de educação profissional. Na regulamentação do Conselho Nacional de Educação (CNE), o professor que atuar na educação profissional deverá ter a licenciatura plena para o exercício profissional. Dentro desta perspectiva, há dois enfoques que merecem destaque. O primeiro é a desvalorização desses professores, quer seja pelas condições salariais, quer seja pelo status social. O outro está relacionado ao grande contingente de professores que não possuem o ensino superior para o exercício da docéncia, sendo necessária a formação.22
No âmbito das propostas pedagógicas dos cursos técnicos em saúde, há evidéncias das influéncias da pedagogia baseada em competéncias na contramão das críticas sobre a educação profissional: há produções que dialogam com a concepção de educação que tende a formação integral dos estudantes de enfermagem de nível técnico, com vistas à educação politécnica e à compreensão das contradições da sociedade capitalista. A revogação do Decreto n. 2.208/97 previu a separação da educação técnica do ensino médio e, assim, a dicotomia entre o ensino para a cidadania e para o trabalho. Entretanto, após negociações e lutas, foi instituído o Decreto n. 5.154/2004. A partir deste documento, o currículo profissional de nível técnico e médio pode ser integrado em um mesmo curso e traz fundamentações teóricas para a construção de uma educação contra hegemônica, “de forma que os conceitos sejam apreendidos como sistema de relações históricas que constituem uma totalidade concreta”.23 (p. 776)
Nesse sentido, resgata a concepção do princípio educativo do trabalho, destacando o processo histórico das relações entre capital e trabalho e o caráter ontológico nas práticas educativas. Ainda que o Decreto n. 5.154/2004 tenha sido instituído, chama-se à atenção para as disparidades na implementação dessa política. Para os docentes da educação profissional, ainda permanece a visão tecnicista e mobilizadora de ascensão social para os estudantes e a inserção rápida no mercado de trabalho.23
A contribuição deste artigo está em sinalizar que a formação em enfermagem, com vistas às políticas de saúde no Brasil, pode servir como diretrizes para se contrapor à alienação dos trabalhadores em saúde, pois a integralidade, equidade, universalidade e conceito ampliado de saúde (programas de prevenção, humanização da assisténcia e qualidade de vida) são direitos adquiridos pela população brasileira, advindos com a Reforma Sanitária, incluídos na Constituição Federal de 1988. É preciso que se faça, no processo de formação, discussões sobre a garantia pela democracia e pela universalização da saúde, ou seja, um espaço de aprendizagem desses estudantes de nível médio-técnico, além de proporcionar uma visão ampliada de saúde.
Em se tratando da formação de nível técnico em enfermagem, de acordo com o censo nacional, verificou-se que 72% das técnicas/auxiliares de enfermagem são oriundos das instituições privadas, sem a garantia de uma formação de qualidade, sendo que a maioria (78%) deseja ingressar em um curso de nível superior. De acordo com os dados do Coren, no ano de 2018, havia 3.977 escolas de ensino técnico.3 Estes dados trazem a reflexão sobre a importância do desenvolvimento de políticas públicas para a formação do grande contingente de trabalhadoras em enfermagem, pautadas na qualidade formativa com embasamentos teóricos e práticos de uma assisténcia humanizada, mas associadas à perspectiva pedagógica da formação humana para além de uma educação bancária, nas palavras de Paulo Freire.18
Outra perspectiva é sobre a necessidade da qualidade da formação docente nos cursos de licenciatura em enfermagem para que possam ter acesso e desenvolverem conhecimentos sobre o processo educativo e a construção dialógica com e para seus educandos,18 além da evidente garantia de condições de trabalho, como o pagamento não apenas das aulas realizadas, mas de toda a atividade que inclua a preparação, o ato e a avaliação educativa. Ainda é pequena a quantidade de cursos de licenciatura em enfermagem, pois, de acordo com Corréa e Sordi,24 no ano de 2015, havia 24 cursos, sendo 18 oferecidos em universidades públicas, e seis nas particulares.
Se a história das políticas de educação profissional de nível médio em enfermagem mostrou a interlocução do processo de ensino e aprendizagem com a prática dos fazeres em saúde, como a inserção do profissional no cotidiano de trabalho, por que não fazer desse espaço um local de aprendizagem significativa e de construção da educação emancipatória? Eis o desafio para as políticas de educação profissional em enfermagem.
Conclusões
Os avanços no debate sobre a educação profissional em enfermagem estão pautados na énfase à qualidade da formação de técnicas em enfermagem, contextualizando a história e as influéncias das políticas educacionais e de saúde no Brasil. A formação deve ser crítica e proporcionar a reflexão sobre as práticas em saúde com o uso de metodologias ativas, havendo o desenvolvimento de projetos pedagógicos, currículos e formação docente para implementação da educação profissional em enfermagem. As mudanças em curso no mundo do trabalho e na legislação educacional para o ensino profissionalizante requerem análise das repercussões destas no contexto da enfermagem brasileira.
Com isso, tem-se, na contrapartida da educação baseada nas competéncias, discussões com énfase na educação emancipatória, pautada no entendimento das contradições da sociedade capitalista, nas dimensões de classes sociais e da área de saúde como campo a ser explorado no processo educativo. Há de se pensar a educação profissional para além da inserção no mercado de trabalho e de cursos profissionalizantes aligeirados para que a garantia da educação como direito seja alcançada pelos trabalhadores da área de saúde. A formação, enquanto busca pelo reconhecimento no e pelo trabalho, pela crítica e reflexão das práticas em saúde, traz um novo cenário no processo educativo.