1. Enquadramento da questão. A contratualização da gestação humana
O legislador português regulou em 2006, através da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho (LPMA), a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), começando por as consagrar, numa primeira fase, como um método subsidiário e não alternativo de procriação, privativo das pessoas de sexo diferente casadas ou unidas de facto e proibindo a inseminação post mortem1. Cominou ainda com a nulidade os negócios de "maternidade de substituição" e proibiu a compra e venda de óvulos2.
Dez anos volvidos sobre a versão inicial da lei, já em Junho de 2016, o legislador veio alterar a orientação primeiramente adoptada, alargando as técnicas de procriação medicamente assistida a "todas as mulheres independentemente do diagnóstico de infertilidade"3, não obstante continuar a afirmar -em simultâneo, no mesmo normativo- o seu carácter de método subsidiário e não alternativo de procriação e a manter a regra de que estas técnicas só podem utilizar-se "mediante diagnóstico de infertilidade" ou em caso de doença, tal como acontecia na versão original da lei4. Por outro lado, as técnicas de procriação medicamente assistida passaram a ser acessíveis a todas as mulheres, discriminando a lei como beneficiários, de uma forma algo desconexa e com sobreposições, os "casais de mulheres", casadas ou vivendo em união de facto, bem como "todas as mulheres independentemente do seu estado civil e da respectiva orientação sexual", para além dos "casais de sexo diferente"5, que anteriormente tinham o exclusivo da PMA.
Relativamente à "maternidade subrogada" ou "gestação de substituição" (GS), o legislador nacional veio admiti-la dois meses depois, em Agosto de 2016, num contexto negocial, enquanto objecto de um negócio jurídico bilateral, necessariamente gratuito, cuja celebração -acrescenta a lei de forma algo prosaica- "é feita através de contrato escrito"6. Este contrato de GS surge em Portugal como algo radicalmente novo no mundo negocial, atendendo à especificidade do seu objecto, às particularidades das prestações impostas à gestante e até à delimitação dos sujeitos com legitimidade para contratar7.
Os problemas colocados por este novo regime levaram à recente tomada de posição do Tribunal Constitucional português (TC), através do Acórdão nº 225/2018, de 24 de Abril de 2018, suscitada por um pedido de fiscalização abstracta sucessiva de diversas normas da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho. O TC declarou a inconstitucionalidade das normas que constituem o cerne do regime jurídico da GS, ainda que admitindo o contrato qua tale, enquanto contrato gratuito e com carácter excepcional. É nosso objectivo neste texto proceder à análise do regime jurídico do contrato de GS, tal como consagrado no artigo 8.º da LPMA, e, ao mesmo tempo, apontar as posições que foram seguidas pelo nosso e que levaram à declaração da inconstitucionalidade das normas em questão.
2. Caracterização do contrato de gestação de substituição no direito português
2.1. O tipo legal gestação de substituição
Em face do disposto no artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, Lei da Procriação Medicamente Assistida (LPMA) -na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto-, podemos dizer que o "contrato de GS" é hoje, no direito português, um contrato nominado, definido pelo legislador como "qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade"8.
A disciplina legal de base que a LPMA veio conferir ao contrato permite identificar a existência de um tipo legal, ainda que com grandes espaços "em branco" e inúmeras "zonas cinzentas", e, deste modo, considerá-lo como uma modalidade típica do contrato de prestação de serviços9. São elementos essenciais do contrato de GS a obrigação de suportar uma gravidez; a obrigação de entrega da criança; a gratuidade do negócio; e a actuação da gestante por conta dos beneficiários.
O contrato de gestação regulado pela LPMA é um contrato obrigacional, pelo qual alguém (uma mulher) se obriga a submeter-se a uma técnica de PMA e a proporcionar à contraparte o resultado da gravidez por si suportada, sem retribuição10. Obriga-se, portanto, a um facere, num primeiro momento, e, posteriormente, a um dare, para utilizar a distinção clássica entre prestações de meios e prestações de resultado.
O contrato é, necessariamente, gratuito, proibindo a lei "qualquer tipo de pagamento ou a doação de qualquer bem ou quantia dos beneficiários à gestante de substituição pela gestação da criança", actuando, a gestante, com espírito de liberalidade, com o altruísmo próprio de quem quer proporcionar a outrem a possibilidade de ser mãe de uma criança gerada propositadamente para o efeito, não se verificando a alternativa de a beneficiária suportar ela própria a gravidez11. Ao contrário do que acontece noutros sistemas, as obrigações assumidas pela gestante não têm uma contrapartida a proporcionar pelos beneficiários da gestação, e só nessa medida é que se considerou que este acordo era admissível à luz do direito constitucional português, porque garantia a liberdade da gestante e assim salvaguardava a sua dignidade.
O contrato de GS não é, porém, um contrato unilateral puro. O contrato começa por gerar apenas obrigações para uma das partes mas havendo despesas inerentes à gravidez suportada pela gestante surgirá a obrigação de reembolso dessas mesmas despesas. Estaremos perante um contrato bilateral imperfeito em que não existe um nexo de correspectividade entre as prestações das partes, um sinalagma, uma vez que o reembolso das referidas despesas não constitui contrapartida da actividade desenvolvida pela gestante, pelo que não serão aqui aplicáveis os institutos próprios dos contratos sinalagmáticos, nomeadamente a excepção de não cumprimento.
O contrato de gestação regulado pela LPMA é ainda um contrato formal, exigindo a lei a sua celebração através de documento escrito e exigindo também a inclusão no documento de um conteúdo mínimo cuja omissão é cominada com a nulidade do contrato. Diz o n.º 10 do artigo 8.º, que o contrato deve conter as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez. A lei delimita também o conteúdo do contrato pela negativa, assinalando, por outro lado, o que o contrato "não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição, nem impor normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade"12. Pretendeu o legislador salvaguardar a liberdade da gestante, obviando à introdução de cláusulas contratuais que ponham em causa, nomeadamente, o seu direito à liberdade física, psicológica, sexual. O TC não considerou, porém, estes cuidados suficientes, como assinalaremos no texto.
2.2. As partes no contrato
O contrato de GS surgiu, no nosso direito, como um contrato "de mulheres", paradoxalmente assumido em Portugal como uma reivindicação (um "direito a procriar", como defendem alguns13) de mulheres, quando em outras paragens é criticado pelos movimentos feministas com fundamento na instrumentalização que pressupõe do corpo da mulher e na exploração que potencia14. De acordo com o TC, porém, a GS, "com o perfil traçado pelo legislador português, ou seja, enquanto modo de procriação excecional, consentido autonomamente pelos interessados e acordado entre os mesmos por via de contrato gratuito previamente autorizado por uma entidade administrativa, só por si, não viola a dignidade da gestante nem da criança nascida em consequência de tal procedimento nem, tão-pouco, o dever do Estado de proteção da infância"15. Entendeu este Tribunal que a necessária gratuidade do contrato traduz uma garantia da liberdade da actuação da gestante e da sua autonomia e que a sua participação no projecto parental dos beneficiários é "co-constitutiva" e expressão de solidariedade activa, "não podendo deixar de ser vista como exercício da liberdade de exteriorização da personalidade ou liberdade de ação de acordo com o projeto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias (...) que é indissociável (...) [da] dignidade própria do ser humano"16. No entanto, a decisão esteve longe de ser unânime, havendo várias declarações de voto em sentido distinto, contestando a validade do contrato, apoiadas na ideia de instrumentalização da mulher e de violação da sua dignidade17.
No contrato de GS a gestante é, por imperativo biológico, uma mulher, e um homem ou um casal de homens não podem assumir a posição de beneficiários. A posição jurídica do beneficiário no contrato será sempre assumida por, pelo menos, uma mulher -que não pode levar avante uma gravidez-, só, casada ou em união de facto, com um homem ou com outra mulher, como resulta do artigo 6º da LPMA.
O Decreto Regulamentar n.º 6/2016, de 29 de Dezembro, que veio regulamentar a Lei n.º 17/2016, de 20 de Junho -que alterou a LPMA-, refere no seu texto preambular que esta lei veio alargar o âmbito dos seus beneficiários "garantindo o acesso de todos os casais e todas as mulheres à PMA, independentemente do seu estado civil, orientação sexual e diagnóstico de infertilidade", no sentido de assegurar, acrescenta, o "princípio da igualdade no acesso às técnicas de PMA e rejeitando-se a exclusão de qualquer mulher no acesso às mesmas". Igualdade, porém, que, reafirmamos, distingue em função do sexo, na medida em que os homens, não inseridos numa relação heterossexual, não podem recorrer a estes procedimentos18.
3. Informação pré-contratual e requisitos para a celebração do contrato
Nos termos do n.º 10 do artigo 8.º da LPMA, a celebração de um contrato de GS deverá ser supervisionada pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, entidade que também supervisiona todo o processo19 e que deverá, previamente, autorizar a celebração do mesmo contrato20. A Ordem dos Médicos, por outro lado, deverá sempre, em cada caso, ser ouvida21.
Por remissão expressa do n.º 8 do artigo 8.º é aplicável ao contrato de GS o disposto no artigo 14.º da LPMA: nos termos deste normativo, os beneficiários devem receber, antecipadamente, informação escrita "de todos os benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas"22, informação essa que deverá constar de um documento aprovado pelo mesmo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida que supervisiona a celebração do contrato. Dever-se-á aqui entender que estas informações têm ser prestadas a ambas as partes no contrato de gestação, esclarecendo o n.º 5 do mesmo artigo 14.º que o disposto anteriormente "é aplicável à gestante de substituição nas situações previstas no artigo 8.º".
A lei impõe, por outro lado, a necessidade de prestação de informação escrita - agora, especificando, à gestante e aos beneficiários - sobre o "significado da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal"23. E ainda, como resulta da remissão do artigo 8.º, n.º 9, para o artigo 12.º, alíneas c) e e), informação "sobre as implicações médicas, sociais e jurídicas prováveis dos tratamentos propostos" e sobre as "condições em que lhes seria possível recorrer à adopção e da relevância social deste instituto", repetindo, de forma parcial, o disposto no artigo 14.º já referido.
Do contrato teriam que constar também as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez24. Não se vê, contudo, como poderia o legislador pretender mais do que obrigar a transcrever no contrato o prescrito na lei, nomeadamente no Código Penal, sobre a matéria e regular a questão das despesas inerentes. A não ser assim, o contrato estaria a violar a regra consagrada pelo legislador logo no número seguinte, no n.º 11 do mesmo normativo, impondo "restrições de comportamentos à gestante de substituição", bem como "normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade". Ter-se-iam também que considerar inválidas as cláusulas do contrato de gestação que impusessem restrições a condutas da gestante no que toca ao seu estilo de vida, alimentação, medicação, hábitos desportivos, actividade sexual. O princípio da boa fé no cumprimento dos contratos não parece aqui justificar um comportamento abstencionista que se traduza numa limitação ao direito (também de personalidade) à liberdade positiva e negativa da gestante.
Mas, sobretudo, o que o TC entendeu foi que o contrato-tipo de gestação não poderá fixar limites às restrições admissíveis aos comportamentos da gestante, o que constitui matéria de restrições de direitos fundamentais. As matérias elencadas no n.º 3 do artigo 3.º do Decreto Regulamentar n.º 6/2017, e que constam do contrato-tipo de gestação fixado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida -como a escolha do obstetra que segue a gravidez, tipo de parto e local onde o mesmo terá lugar (alínea b)), a possibilidade de realizar viagens em determinados meios de transporte ou fora do país no terceiro trimestre de gestação (alínea d)), o número de tentativas de gravidez (alínea i))25-, situam-se no âmbito da reserva de lei parlamentar, não se compadecendo com a indeterminação a que a lei as vota, relegando o seu tratamento para "actos infralegislativos".
"Tratando-se de disciplina de sentido restritivo quanto ao exercício de direitos, liberdades e garantias, tanto por parte da gestante, como dos beneficiários (...), aquela indeterminação não é compatível com a exigência de precisão ou determinabilidade das leis, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição"26.
Assim, entendeu o TC que os n.ºs 4, 10 e 11 do artigo 8.º da LPMA são inconstitucionais, "por violação do princípio da determinabilidade da lei, corolário do princípio do Estado de direito democrático, e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, e 165, n.º 1, alínea b), ambos da Constituição, por referência aos direitos ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família da gestante e dos beneficiários consagrados nos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, do mesmo normativo"27. Esclareceu ainda o Tribunal que esta declaração de inconstitucionalidade "prejudica necessariamente a possibilidade de celebração de negócios jurídicos de GS na ordem jurídica portuguesa até que o legislador parlamentar venha estabelecer para os mesmos um regime constitucionalmente adequado", estendendo o juízo de inconstitucionalidade "às normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 8.º da LPMA, na parte em que admitem a celebração de negócios de GS a título excecional e mediante autorização prévia"28.
4. O consentimento dos intervenientes
O direito à informação pré-contratual, que a lei consagra, procura assegurar o cabal esclarecimento dos intervenientes de modo a salvaguardar a liberdade do processo de formação da vontade negocial e, consequentemente, do seu consentimento29.
A submissão a tratamentos médicos em geral e, no caso concreto, a aplicação de métodos de procriação medicamente assistida, contende com bens da personalidade juridicamente protegidos. Desde logo está em causa o direito à integridade físico-psíquica não só dos beneficiários dos tratamentos respectivos mas também dos demais envolvidos no procedimento. Concretamente, no caso do contrato de gestação, são convocados os direitos à integridade físico-psicológica da gestante, dos beneficiários -na medida em que o material genético utilizado seja deles- e, eventualmente, de um dador de material genético30. Através do contrato de gestação, as partes prestam o seu consentimento para uma intervenção no seu corpo, autolimitando o direito à incolumidade do corpo e autolimitando a sua liberdade, pelo exercício da própria autonomia privada.
No contexto dos direitos de personalidade, prevê o artigo 81.º, n.º 1, do Código Civil, que "toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos princípios da ordem pública". A ordem pública surge, desta forma, como uma linha de fronteira que demarca o espaço dentro do qual a pessoa pode autolimitar os seus direitos de personalidade, independentemente do consentimento em causa ser prestado num contexto negocial (maxime contratual) -consentimento vinculante- ou reflectir um compromisso jurídico sui generis pelo qual se confere a outrem um poder fáctico de agressão mas ainda não um direito subjectivo com esse conteúdo -consentimento autorizante31.
Na hipótese sobre a qual nos debruçamos, o consentimento que se exige aos intervenientes, maxime à gestante, corresponde à declaração de vontade que integra o contrato de GS, através do qual se limita o direito à integridade física e o direito à liberdade, atribuindo aos beneficiários um direito subjectivo de exigir o comportamento correspondente. O consentimento que se exige à gestante é um consentimento vinculante e o consentimento prestado por um eventual terceiro, dador de material genético, bem como pelo beneficiário cujo material genético é utilizado, é um consentimento autorizante, utilizando a terminologia de Orlando de Carvalho32.
O consentimento para a implantação de um embrião, para suportar uma gravidez e dar à luz uma criança que será entregue aos beneficiários, bem como o consentimento para a transferência para a gestante de um embrião constituído com material genético de um dos beneficiários, constituem declarações negociais que integram o contrato e das quais decorrem as respectivas obrigações. Do mesmo modo, na medida em que exista um segundo beneficiário que não contribui com o seu material genético para o procedimento, também este assumirá as obrigações correspondentes ao projecto parental encetado no momento da celebração do contrato.
Quanto à revogabilidade do consentimento, o n.º 2 do artigo 81.º do Código Civil, prevê que "a limitação voluntária [dos direitos de personalidade], quando legal, é sempre revogável". Diferentemente, o n.º 4 do artigo 14.º da LPMA - aplicável à GS por força do n.º 8 do artigo 8.º e do n.º 5 do mesmo artigo 14.º -, diz-nos que o consentimento "é livremente revogável por qualquer das partes até ao início dos processos terapêuticos de PMA". Assim, não haveria dúvidas de que os intervenientes poderiam revogar o consentimento prestado até ao início do procedimento médico, ainda que esta revogação configure um incumprimento contratual, que gerará a correspondente pretensão indemnizatória da contraparte, sempre que sejam causados danos. No entanto, o que o TC contestou foi "se tal garantia, do ponto de vista da salvaguarda da dignidade da gestante, [seria] suficiente"33.
Iniciado o processo terapêutico, questiona-se se a gestante deverá manter a possibilidade de revogar a vontade expressa de suportar a gestação ou se, pelo seu lado, poderão os beneficiários "mudar de opinião" relativamente à sua vontade inicial de serem pais. Desde logo, como já observamos, o próprio texto legal exige a inclusão no contrato das disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez34. No entanto, este preceito não assegura à gestante a possibilidade de realizar uma interrupção voluntária da gravidez, nas situações em que a lei o permite, e sem quaisquer consequências indemnizatórias35.
A lei ao especificar a necessidade de as partes no contrato regularem este ponto parece indiciar que também os comitentes teriam a sua intervenção no processo de decisão de interrupção da gravidez. E o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, no contrato-tipo de gestação que disponibiliza no seu site36, incluiu uma cláusula onde se prevê que a decisão de interrupção da gravidez, em caso de ocorrência de malformações, cabe "em conjunto ao casal beneficiário e à gestante"37. Estaríamos, neste caso, perto do modelo da "subrogação comercial", no qual o contrato distribui os direitos e obrigações das partes e o Estado garante a tutela das respectivas posições jurídicas activas. Porém, no nosso sistema, não obstante a opção pela contratualização da GS, haverá que ter em conta os limites impostos à autonomia das partes, nomeadamente pela lei e pelas regras que conformam a ordem pública nacional.
Se a decisão de proceder a uma interrupção voluntária da gravidez nos casos admitidos pela lei penal, nomeadamente em caso de doença grave incurável do nascituro ou malformação congénita, até às 24 semanas de gravidez ou, de forma livre, por opção da mulher, até às 10 semanas de gravidez38, cabe -ou coube, até agora- à mulher grávida (do seu filho), no caso da maternidade de substituição já se poderá questionar se também será assim. Isto porque, nesta hipótese o filho não é seu. A eventual coercibilidade de um acordo alcançado neste domínio reconduz-nos para a questão de saber se as possibilidades de interrupção voluntária da gravidez admitidas na lei assentam numa relação genética existente entre a grávida e o feto ou antes no direito da grávida à integridade físico-psíquica e à liberdade. Claramente se deverá entender que o que está em causa é a integridade físico-psíquica da grávida e o seu controlo sobre o seu corpo. De outro modo, ter-se-ia que negar a possibilidade de aborto àquela mulher a quem foi implantado um embrião criado com material genético de terceiros contra a sua vontade. Por outro lado, a valorização da relação genética com o feto levaria à intervenção do pai na decisão de interrupção da gravidez, o que não acontece no nosso sistema.
Na medida em que o bem jurídico valorizado pela lei penal é o da integridade e liberdade físico-psíquica da grávida -e esta é a única justificação para a despenalização do aborto ad nutum nas primeiras 10 semanas- o contrato de gestação não pode dispor de forma diferente nem sequer pode admitir uma renúncia antecipada à possibilidade de interrupção da gravidez39. O TC começou precisamente por salientar este aspecto, da necessária actualidade do consentimento da gestante, em cada momento, e que pretere a estipulação de quaisquer limites à possibilidade de revogação do consentimento prestado em momento e circunstâncias anteriores:
"Ou seja, tendo a gestante deixado de querer continuar no processo de gestação de substituição tal como delineado no correspondente contrato, deixa também de poder entender-se que a sua participação em tal processo corresponde ao exercício do seu direito ao desenvolvimento da personalidade.
Deste modo, atentas as aludidas características físicas, biológicas, psíquicas e potencialmente afetivas da gravidez e do parto, a revogabilidade do consentimento inicialmente prestado é a única garantia de que o cumprimento das obrigações específicas de cada fase daquele processo continua a ser voluntário e, por isso, a corresponder ao exercício de tal direito. A pura e simples autovinculação antes do início do processo de gestação de substituição não permite acautelar suficientemente tal voluntariedade ao longo de todo o processo. Por outras palavras, a aludida revogabilidade corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, o qual constitui um alicerce fundamental do modelo português de gestação de substituição"40.
Poderá também acontecer que em face de um diagnóstico de malformação ou doença grave os comitentes queiram interromper a gravidez e a gestante se recuse a fazê-lo. Desde logo, seria muito difícil definir no contrato todos os casos de malformações e doenças (e o seu grau de gravidade) em que o aborto deveria ser feito, no sentido de permitir aos beneficiários accionar as cláusulas contratuais e exigir o aborto. Por outro lado, temos o problema adicional de saber qual o destino a dar à criança se a gestante consegue fazer valer o seu propósito de levar a gravidez até ao final, tendo em conta que esta não será a sua mãe biológica e os comitentes já manifestaram a sua intenção de não querer criar uma criança com os problemas detectados, restando a hipótese da adopção41. Uma sentença judicial que viesse reconhecer a obrigação de realizar um aborto ou viesse negar a possibilidade da gestante abortar com fundamento no cumprimento de uma cláusula do contrato de GS a que aquela se vinculou ultrapassaria os poderes de intervenção do Estado no domínio da autodeterminação da pessoa42. A decisão de realizar ou não um aborto em determinadas circunstâncias não pode ser condicionada por via contratual. E, definitivamente, as limitações impostas à revogação do consentimento pela LPMA não asseguram a liberdade, que em última instância, o TC entendeu constituir "a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante"43, conduzindo a uma "instrumentalização inadmissível da sua pessoa"44. Concluiu o TC que
"(...) a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA para o n.º 4 deste último, é inconstitucional por restringir desproporcionadamente o respetivo direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 26.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição)"45.
Poderá ainda suceder que uma das partes repense os termos do contrato e pretenda revogar a sua vontade de entregar a criança, ou de a receber, após o parto, consoante seja a parte "arrependida" a gestante ou os beneficiários. Neste caso, supondo que é a gestante que incumpre o contrato e recusa a entrega da criança, a filiação já se encontraria estabelecida a favor dos beneficiários, nos termos do artigo 8.º, n.º 7, LPMA, pelo que o problema passaria a ser resolvido pelos tribunais de família.
Contudo, na perspectiva do TC, um conflito entre o projecto parental dos beneficiários e o projecto parental da gestante não pode deixar de ter em conta o "superior interesse da criança", no quadro de uma avaliação casuística, pelo que a solução legal de acordo com a qual a criança que nascer em consequência de um procedimento de gestação subrogada é sempre tida como filha dos beneficiários deve ser considerada inconstitucional por se traduzir, uma vez mais, numa limitação à revogabilidade do consentimento da gestante46. A gestante deverá prestar o seu consentimento no momento da entrega voluntária da criança, ou seja, deverá cumprir voluntariamente o contrato de gestação47.
Se os comitentes forem um casal que entretanto se divorciou ou se separou deverão os tribunais de família estabelecer quem fica com a guarda da criança, não sendo tarefa fácil determinar em que sentido irá o interesse da criança, não se colocando a questão em moldes exactamente iguais àqueles que se verificam depois de um parto da mãe divorciada ou separada. Certo é que o contrato não poderá ser resolvido com base numa alteração anormal das circunstâncias48, desde logo não se verificando os requisitos de excepcionalidade ou anormalidade necessários à relevância de uma deficiente ponderação do projecto encetado ou de um optimismo irrealista quanto a uma felicidade eterna.
5. A (in)validade do contrato de gestação de substituição
De acordo com o n.º 12 do artigo 8.º, são nulos os negócios de GS, "gratuitos ou onerosos", que não respeitem o disposto no mesmo artigo 8.º. Assim, serão nulos os contratos com este objecto que sejam onerosos; celebrados sem que se verifiquem as razões médicas excepcionais especificadas na lei; sem recurso a gâmetas de qualquer dos beneficiários ou com recurso a ovócito da gestante de substituição; quando existir uma relação de subordinação económica entre as partes; com preterição da forma escrita; sem a menção das disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez; com preterição dos requisitos de informação prévia dos intervenientes ou de autorização prévia, supervisão ou consulta das entidades referidas na lei; ou ainda, que restrinjam os comportamentos da gestante ou imponham normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade.
Sendo o contrato nulo, não se produzem quaisquer efeitos jurídicos ainda que se possam verificar, e neste caso com especial relevância, efeitos de facto. As prestações já realizadas deverão, por sua vez, ser devolvidas, o que levanta especiais problemas neste contexto, na medida em que a gestante entregou uma criança em cumprimento do contrato nulo, sendo ressarcida das despesas inerentes à gestação e parto49.
A ineficácia jurídica do negócio decorrente da sua nulidade deixa em aberto a questão da filiação da criança que nasce, nomeadamente, em consequência de um acordo informal, de um procedimento médico clandestino ou, simplesmente -hipótese eventualmente mais frequente- de um contrato remunerado, havendo simulação relativa objectiva quanto à natureza gratuita do negócio50.
A resposta à questão de saber de quem seria o filho em caso de celebração de um negócio nulo de GS era dada na versão original do artigo 8.º da LPMA, onde se afirmava que a "mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer"51. Esta solução surgia num contexto legal em que os contratos de gestação eram necessariamente nulos. Depois de cominar com a nulidade a "maternidade de substituição", o legislador esclarecia que à produção de efeitos de facto do contrato nulo não era associado qualquer efeito jurídico em termos de filiação.
Com a alteração da perspectiva legal em matéria de maternidade de substituição, o legislador veio afirmar que "a criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respectivos beneficiários"52. Porém, parece claro que esta atribuição de consequências jurídicas em matéria de filiação ao contrato de gestação não significa que se tenha consagrado com a última alteração legislativa o princípio inverso daquele que vigorava anteriormente ou, sequer, que a solução preteritamente afirmada tenha deixado de valer no contexto do novo espírito da lei.
O normativo transcrito que atribui a filiação aos comitentes pressupõe a celebração de um contrato de GS válido, produtor de efeitos jurídicos53. A atribuição de eficácia jurídica a um contrato que dela carece teria que decorrer de forma clara da lei, o que nesta hipótese não se verifica. A nulidade do contrato não pode deixar de ter como consequência, também hoje, a maternidade da gestante, solução que também se afigura clara para o TC, no acórdão em análise54.
Esta nulidade pode ser provocada pela preterição de requisitos considerados "menores" para a validade do contrato -ainda que esta hierarquização dos requisitos seja mais do que discutível tendo em conta, por exemplo, os interesses que se visam acautelar com as informações a prestar, a forma das declarações, etc.55- mas pode também decorrer do facto de a gestante ser a mãe biológica da criança ou ter recebido um preço como contrapartida do serviço prestado. Em qualquer dos casos, entendeu o TC que, ao prever esta "solução indiferenciada", o legislador violou o dever do Estado de protecção da infância, constitucionalmente consagrado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa:
"Na verdade, a possibilidade de a todo o tempo questionar com fundamento na simples inobservância (por oposição a uma inobservância qualificada) de um qualquer pressuposto (e não apenas de pressupostos fundamentais como, por exemplo, o de não ser a gestante dadora de qualquer ovócito usado no concreto procedimento em que é participante) a validade do contrato de gestação permite que se crie um grau de incerteza e indefinição quanto à filiação já estabelecida, o que não se compadece com a segurança jurídica exigível em matéria de estatuto das pessoas"56.
6. Síntese conclusiva
A admissão ou não do procedimento de GS e mesmo a opção de legislar ou não sobre o tema é, desde logo, uma opção política57 que deverá ponderar os variadíssimos interesses, eventualmente conflituantes, e bens jurídicos em jogo. A solução ensaiada pelo legislador português em 2016 não resistiu ao "teste de esforço" da constitucionalidade.
Se por um lado se entendeu que a celebração de um contrato gratuito de gestação não põe, "só por si", em causa a dignidade da gestante e da criança que venha a nascer por esse método nem viola o dever do Estado de protecção da infância, por outro lado também se considerou que a regulamentação prevista para este contrato ofende o princípio da determinabilidade das leis e da reserva de lei. A "excessiva indeterminação" da lei relega para uma entidade administrativa e para a autonomia das partes matérias que implicam restrições de direitos fundamentais, nomeadamente à liberdade e dignidade da gestante, não sendo definidos parâmetros de actuação previsíveis -desde logo no que toca à interrupção voluntária da gravidez ou à existência de um "direito de arrependimento"- para aqueles que queiram recorrer a este método.
O TC não transigiu também com a necessidade de assegurar a revogação do consentimento da gestante até ao cumprimento da última obrigação decorrente do contrato -a entrega da criança nascida através de maternidade de substituição aos comitentes-, como única forma de garantir o exercício por parte da gestante do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, fundamento último da admissibilidade do contrato de gestação.
Considerou, por outro lado, que a solução da nulidade do contrato, sempre que sejam preteridos os requisitos de forma e de substância para a sua celebração, põe em causa a segurança jurídica no que toca ao estatuto das pessoas, decorrente do princípio do Estado de direito democrático.
Por último, entendeu-se ainda que a regra do anonimato dos dadores e da gestante de substituição configura uma "restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade" dos nascidos com recurso a técnicas de PMA.
A intervenção do TC transformou, em suma, o contrato de GS num "invólucro vazio", numa cápsula desprovida de conteúdo, prejudicando a possibilidade de celebrar novos contratos de GS na ordem jurídica portuguesa enquanto o legislador não aprovar um regime jurídico que assegure os valores constitucionais postos em causa. A presente inexistência de uma entidade com competência para autorizar os contratos e a indefinição legal dos critérios que devem nortear essa autorização levam à sua inadmissibilidade. Note-se, porém, que o TC ressalvou de forma expressa dos efeitos retroactivos da sua decisão os contratos de GS "autorizados pelo Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida em execução dos quais já tenham sido iniciados os processos terapêuticos de procriação medicamente assistida a que se refere o artigo 14.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho"58, com base em imperativos de segurança jurídica. Relativamente aos demais contratos, esclareceu o TC que terão que ser considerados como não autorizados e, portanto, "celebrados ao abrigo de um regime que não admite contratos de gestação de substituição"59.