INTRODUÇÃO
Um ano após o início da pandemia da doença causada pelo coronavírus 2019 (COVID-19)1 as marcas de 191 milhões de casos e 4,09 milhões de óbitos no mundo foram alcançadas2. O Brasil é um dos países que mais contribui para esses dados com 19,4 milhões de casos e 542 mil óbitos pela COVID-19 e suas complicações2. Até o momento, não há vacina ou tratamento para COVID-19 que seja acessível a todos3 e medidas de controle continuam sendo importantes para reduzir a velocidade de infecção e mortes (e.g., lavagem das mãos, uso de máscaras, limpeza e aeração do ambiente e quarentena ou isolamento social)4.
Apesar dos esforços investidos na identificação de estratégias efetivas para conter a pandemia, as ações de saúde pública têm sido desafiadoras, tendo em vista a divulgação de fake news, notícias não confirmadas ou exageradas sobre os riscos da COVID-19 e a falta de evidências confiáveis que podem levar à adoção de medidas de eficácia desconhecida5, como abandono de tratamentos farmacológicos6 e uso de medicamentos com sérios riscos de eventos adversos7.
Considerando a experiência com pandemias anteriores, estratégias para melhorar conhecimentos, atitudes e práticas (CAP) têm sido consideradas relevantes e úteis para prevenir a propagação de vírus e conter a pandemia8. Além disso, estudos identificaram que a falta de conhecimento sobre CAP está associada a um maior nível de pânico na população e, consequentemente, a uma diminuição na tentativa de prevenir a disseminação do vírus8,9. Portanto, além de conhecer as estratégias efetivas de prevenção e controle da infecção, é importante identificar quais são as estratégias mais efetivas para aprimoramento do CAP em relação à COVID-1910.
Revisões sistemáticas que relatam estudos quantitativos e qualitativos podem fornecer uma evidência mais útil para os tomadores de decisão no contexto da avaliação de intervenções complexas, como por exemplo intervenções educativas. Estas revisões avaliam sistematicamente os efeitos das intervenções, bem como complementam as lacunas de evidências quantitativas com pesquisas qualitativas, o que permite conhecer as percepções e experiências do público de interesse11. A maioria dos estudos sobre COVID-19 foca em explorar aspectos de epidemiologia, causas, manifestações clínicas, diagnóstico e possíveis terapias para o tratamento e manejo da doença12. Assim, não é de nosso conhecimento nenhum há uma revisão sistemática que sumarize as estratégias para melhorar o CAP das medidas de prevenção e controle do COVID-19.
Considerando que dados e evidências atualizadas e precisas sobre a pandemia aumentam e contribuem para a adesão às medidas de prevenção e controle da doença13, este estudo teve como objetivo identificar estratégias para melhorar o CAP sobre medidas de prevenção e controle da COVID-19 no mundo.
MÉTODOS
Desenho e registro do protocolo
Foi conduzida uma revisão sistemática de método misto com abordagem convergente-segregada14. A síntese e integração de dados foi realizada de acordo com os protocolos da Cochrane15 e recomendações do Joanna Briggs Institute14. O reporte desta revisão sistemática está de acordo com as instruções para revisões sistemáticas e meta-análises (PRISMA)16 e o protocolo desta revisão está disponível no Open Science Framework (OSF)17.
Critérios de elegibilidade
Foram incluídos os estudos que atenderam aos seguintes critérios de elegibilidade de acordo com a sigla PIPC14: (P) Population/População: população geral sem restrições; (I) Intervention/Intervenção: sem restrição; (P) Phenomenon/Fenômeno: conhecimento, atitudes e práticas em acordo com a teoria CAP10; (C) Context/Contexto: Nenhuma restrição para fatores culturais, localização geográfica, raça, gênero ou contexto.
Estudos em caracteres não romanos foram excluídos (e.g., russo, chinês). Esta revisão considerou estudos quantitativos, qualitativos e de métodos mistos. Os estudos quantitativos incluíram ensaios clínicos, coortes, estudos quasi-experimentais e analíticos descritivos. Os estudos qualitativos incluiriam evidências que complementassem a evidência quantitativa, respeitando os critérios de elegibilidade.
Fontes de informação e estratégias de busca
As buscas eletrônicas foram realizadas no PubMed, LILACS e Scopus, que inclui EMBASE, Medline, fontes de acesso livre, sites científicos e literatura cinzenta18, de 2019 (primeiros casos conhecidos da COVID-19) até junho de 2020 (mês da busca). Listas de referências de revisões e estudos incluídos também foram pesquisados (busca manual). As estratégias de busca completas são apresentadas na tabela 1.
Seleção dos estudos
As etapas de triagem, elegibilidade e extração de dados foram realizadas de forma independente e em duplicata. A triagem dos títulos e resumos dos estudos recuperados objetivou identificar registros irrelevantes e, em uma segunda etapa, os artigos lidos na íntegra. As discrepâncias foram resolvidas por meio de reuniões de consenso e consulta a um terceiro pesquisador, quando necessário. O processo de seleção foi realizado na plataforma Rayyan (https://rayyan.qcri.org)19.
Processo de extração de dados
Os seguintes dados foram extraídos: (i) estudo e características dos participantes (identificação, tipo de estudo, mês de submissão, tamanho da amostra, características e financiador); (ii) dados da estratégia (tipo, frequência, momento, responsável); e (iii) tópico e fenômeno, (ou seja, CAP) e resultados.
Risco de viés em cada estudo e entre os estudos
Uma vez que apenas estudos transversais foram identificados, as avaliações críticas da qualidade metodológica e de reporte dos estudos foram realizadas por dois revisores independentes usando a ferramenta do Joanna Briggs Institute20. Na ausência de consenso, os pontos de discordância foram resolvidos pela opinião de um terceiro pesquisador.
Uma análise de risco de viés entre os estudos foi realizada por meio de método informal qualitativo21, uma vez que uma meta-análise não foi possível.
Síntese e análise dos dados
Especificamente, os dados quantitativos incluíram resultados baseados em dados de testes estatísticos descritivos e/ou inferenciais. Os resultados estão apresentados de forma narrativa e estatística descritiva, incluindo tabelas para auxiliar na apresentação dos dados, quando apropriado. Uma vez que uma síntese meta-analítica não foi possível devido à alta heterogeneidade dos achados, bem como a integração de evidências qualitativas devido à falta de estudos contemplados pelos critérios de inclusão, os métodos fornecidos para essas duas análises são descritos apenas no protocolo publicado17. Análises adicionais não foram previstas.
Compartilhamento e acessibilidade de dados
Os dados que suportam os resultados deste estudo estão disponíveis abertamente no OSF em http://doi.org/10.17605/OSF.IO/Y6ND717.
RESULTADOS
Nossa revisão sistemática identificou 2.196 registros nos bancos de dados eletrônicos após a remoção das duplicatas. Destes, 2.136 foram considerados irrelevantes durante a triagem e 48 foram excluídos durante a avaliação de texto completo (figura 1) (Lista dos estudos excluídos na elegibilidade estão disponíveis em OSF como tabela S2)17. Os 12 registros restantes foram incluídos e constituíram estudos transversais e/ou quasi-experimentais, recebidos para publicação entre março e junho de 2020 (tabela 2). Nenhum estudo qualitativo atendeu aos critérios de inclusão.
Os estudos foram realizados na China (n=3), Estados Unidos (n=3), Arábia Saudita (n=2), Finlândia (n=1), Paquistão (n=1), Índia (n=1) e Japão (n=1). No total, 23.825 participantes foram incluídos (tabela 2). Nenhum dos autores declarou receber financiamento, embora Mark et al.22 reportou receber isenção do conselho de revisão institucional.
Entre os 12 estudos identificados, nove foram realizados com profissionais de saúde (e.g., médicos, enfermeiros, residentes) sendo oito em serviços de saúde (e.g., hospital e departamento de emergência) e um em Universidade. Três estudos foram realizados com a população geral, totalizando 18.270 participantes. Três abordagens foram identificadas: educacionais (n=10), teoria da motivação de proteção (n=1) e uma estratégia educacional associada à motivacional (n=1) (tabela 3).
a)A: Atitude;
b)P: Prática;
c)C: Conhecimento;
d)ABG: arterial blood gases (gases do sangue arterial);
e)IC: intervalo de confiança;
f)DHCWs: dental health care workers (Trabalhadores de saúde bucal);
g)OR: odds ratio;
h)PPE: personal protective equipment (equipamento de proteção pessoal);
i)PA-PRS: powered air-purifying respirators (respiradores purificadores de ar alimentados).
Em suma, os principais tópicos abordados nas estratégias educacionais para prevenção e controle da COVID-19 foram o uso correto de equipamento de proteção individual (n=4) e swabs nasofaríngeos para detecção da COVID-19 (n=3), por meio de treinamento baseado em simulação (n=6) e vídeo (n=4). O estudo que fundamentou a estratégia na teoria da motivação de proteção explorou como fenômeno a intenção de auto-isolamento, enquanto o estudo que associou estratégia educacional à motivacional explorou como fenômeno o impacto do incentivo aos indivíduos a pensarem sobre a veracidade das notícias e na decisão de compartilhamento nas redes sociais (tabela 3).
A maioria das estratégias a avaliação do impacto das estratégias no aprimoramento de competências, em geral, foi avaliada imediatamente após a aplicação das estratégias e foi planejada ou conduzida por profissionais de saúde. Os responsáveis envolvidos nesse planejamento e na condução das estratégias foram: especialistas em doenças infecciosas23, enfermeiros, médicos, paramédicos, simuladores e especialistas em integração de sistemas, controle de qualidade e gestão de desastres24, enfermeiro, um supervisor de aprendizagem e dois enfermeiros com títulos intermediários25, um grupo principal de membros do corpo docente e um residente26, corpo docente principal e um estagiário22 e anestesista experiente27. Em cinco estudos os responsáveis pelas estratégias não foram reportados (tabela 3)28-33.
Em relação ao CAP, a maioria dos estudos foi classificado como melhoria do conhecimento (n=7), prática (n=7) e atitude (n=4), sendo que alguns estudos avaliaram duas competências simultaneamente. Todos os estudos identificaram melhora nas competências, independente da população, tipo de estratégia, tipo de avaliação, tema, formato ou duração (tabela 2). Uma sumarização estatística não foi possível, uma vez que os estudos foram heterogêneos na forma de avaliação do impacto das estratégias.
Todos os estudos apresentaram pelo menos uma resposta "Não" na análise da qualidade metodológica, sugerindo uma baixa qualidade metodológica ou de reporte. As perguntas com respostas "Não", ou seja, sugerindo limitação, referiam-se à descrição dos participantes, ambiente e fatores de confusão. A resposta "Pouco claro" esteve presente na apresentação dos critérios de inclusão, e o "Sim" foi identificado na mensuração válida dos resultados e nas questões de análise estatística (tabela 4). Quanto ao risco de viés entre os estudos, a análise informal qualitativa sugere potencial viés de publicação, uma vez que todos os estudos, independente do poder estatístico, apresentaram resultados favoráveis às estratégias avaliadas, quando o esperado seria que estudos com reduzido poder estatístico identificassem tanto resultados favoráveis, quanto desfavoráveis ou incertos.
DISCUSSÃO
Esta é a primeira revisão sistemática a identificar e sumarizar estratégias para melhorar CAP quanto às medidas de prevenção e controle da COVID-19. Uma revisão não sistematizada com uma pesquisa realizada em abril de 2020 descreveu CAP durante a pandemia da COVID-19, mas não detalhou estratégias para modificar as competências34. Os autores identificaram sete estudos, observando níveis adequados de conhecimento, atitudes otimistas e de boas práticas34.
Na presente revisão, foi identificado que todos os estudos apresentaram melhorias nas competências CAP, independentemente do público-alvo, tipo de estratégia, tópicos ou duração. A maioria das estratégias foi direcionada a profissionais de saúde com treinamento baseado em simulação, visando melhorar o conhecimento e a prática. Apesar de a maioria dos estudos reportarem melhora no saber (conhecimento teórico) e no saber fazer (prática), poucos avaliaram o fazer (atitude).
A atitude tem especial importância no contexto pandêmico por refletir a confiança pública. Kye et al. identificaram melhora na confiança na sociedade sul-coreana, nas pessoas e nos governos central e local. Essa melhoria foi associada a respostas proativas à crise pandêmica, e o fracasso em fazê-la resultou na deterioração da confiança, sugerindo a importância em investir em estratégias que melhorem o comportamento da população35.
Enquanto as simulações seguidas de avaliação parecem adequadas para promover e avaliar melhorias no conhecimento e na prática, a avaliação da atitude parece ser desafiadora pela dificuldade de medir as ações dos agentes que foram alvo das estratégias especialmente quando não as barreiras e facilitadores do cotidiano do participante da pesquisa, além de sofrer a influência do viés do observador36.
Considerando o papel de revisões sistemáticas para destacar as fortalezas e fraquezas da evidência atual como forma de contribuir na concepção de pesquisas futuras, é importante destacar a baixa confiança nos achados: potencial viés de publicação e reduzida validade externa (e.g. pequeno tamanho amostral ou representatividade) e interna (e.g., falta de ajuste para variáveis de confusão). Nesse sentido, o desenvolvimento de evidências de baixa qualidade ou a disseminação da opinião de especialistas37, podem custar vidas38, bem como refletir no desperdício de recursos humanos, financeiros e materiais no desenvolvimento de pesquisas com evidência fraca e no investimento de políticas ineficientes.
Ao passo que os estudos que relataram estratégias por meio da internet como plataforma principal foram os estudos que incluíram o maior número de participantes. De fato, o alcance da internet e o fácil acesso favorecem a disseminação das informações, apesar da necessidade de cuidados quanto a sua veracidade. De acordo com D'Souza et al.39, 69,9% e 8,8% dos vídeos no YouTube sobre COVID-19 foram classificados como, respectivamente, úteis e enganosos. Nesse paradigma, um dos estudos29 identificados na presente revisão objetivou estimular a prática do discernimento da verdade sobre as notícias da COVID-19, sugerindo que incentivar as pessoas a pensarem sobre a veracidade é uma forma simples de melhorar as escolhas sobre o que compartilhar nas redes sociais.
Com base em informações confiáveis, é possível que o conteúdo divulgado pela internet influencie positivamente as práticas da COVID-19. Li et al. identificaram que os participantes que receberam mais informações de saúde relacionadas a COVID-19 online relataram esforços mais frequentes para se envolver em todos os tipos de comportamentos preventivos40.
No âmbito dos serviços de saúde, a formação baseada em simulação se destacou em detrimento de palestras, aulas ou material escrito. Aldekhyl & Arabi41 propõem uma estrutura quanto a stakeholders (i.e., partes interessadas) e tópicos sobre COVID-19 que podem ser desenvolvidos a partir de treinamento baseado em simulação. Segundo os autores, um dos motivos que torna esse tipo de estratégia poderosa é que a prática além de impactar significativamente nos cursistas, não exige necessariamente investimento financeiro ou tecnológico.
Na época em que esta discussão é escrita, vários países ao redor do mundo estão lidando com uma nova onda da COVID-19 e, ao contrário da primeira onda em que o otimismo do governo sobre uma cura ou vacina era tímido, neste momento podemos esperar por medidas profiláticas mais eficazes e acessíveis para os próximos meses42. Porém, os investimentos para a melhoria do CAP devem ser contínuos, afinal, tão importante quanto a adesão às medidas não farmacológicas de prevenção e controle da COVID-19, como o distanciamento e uso de máscara, será a adesão à vacinação, que depende da minimização da hesitação em receber a vacina43 ou dos problemas para compreender a importância de doses múltiplas.
A principal fortaleza deste estudo é sua a originalidade e a abordagem sistemática. Esta revisão sistemática considerou métodos recomendados para reduzir o impacto de potenciais vieses de seleção, extração, síntese e análise com uma busca abrangente, reprodutível e sistemática. No entanto, algumas limitações precisam ser consideradas:
como qualquer busca sistemática, estudos elegíveis podem não ter sido encontrados e, especialmente no contexto da COVID-19, a disseminação de preprint tem sido ampla. Entretanto, a literatura cinzenta foi contemplada pela busca no Scopus, enquanto a busca manual de lista de referências de revisões e estudos incluídos não retornou estudo adicional;
não foi realizada análise integrativa das evidências quantitativas e qualitativas, uma vez que não foram identificadas evidências qualitativas que avaliassem o impacto das estratégias;
foi necessária restrição de estudos relatados em caracteres romanos, o que impediu a inclusão de um único estudo em língua persa; e
como muitas revisões sistemáticas que abrangem tópicos relacionados à COVID-19, esta revisão pode estar desatualizada uma vez que todos os dias novas evidências sobre COVID-19 são divulgadas. Entretanto, não foi identificada outra revisão publicada com pergunta semelhante e busca mais recente, de forma que esta revisão apesar de não poder ser considerada conclusiva, deve contribuir para a definição de uma agenda de pesquisa.
Conclusão
Nesta revisão sistemática, todas as estratégias identificadas melhoraram CAP na prevenção e controle do COVID-19, independentemente do público-alvo, tópico ou formato da estratégia. A maioria das estratégias foi direcionada aos profissionais de saúde por meio de treinamentos baseados em simulação, visando o aprimoramento do conhecimento e da prática sobre a COVID-19.
A evidência geral sugere baixa confiança uma vez que potencial viés de publicação foi identificado, bem como todos os estudos apresentavam pelo menos uma limitação metodológica ou de reporte. Estudos futuros devem considerar relato e tamanho da amostra adequados, bem como ajuste para fatores de confusão para informar adequadamente a decisão política em ambientes institucionais ou outros níveis de governança.