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Enfermería Global

versão On-line ISSN 1695-6141

Enferm. glob. vol.20 no.64 Murcia Out. 2021  Epub 25-Out-2021

https://dx.doi.org/10.6018/eglobal.462441 

Originais

Representações sociais de travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida

Ana Lilia Souza Barbosa1  , Alef Diogo da Silva Santana2  , Ednaldo Cavalcante de Araújo1  , Paula Daniella de Abreu1  , Marcos Soares de Lima3  , Jefferson Wildes da Silva Moura1 

1 .Universidad Federal de Pernambuco. Recife - Pernambuco, Brasil. analilia.barbosa@ufpe.br

2 . Universidad de São Paulo. Ribeirão Preto - São Paulo, Brasil.

3 . Universidad de Pernambuco. Recife - Pernambuco, Brasil.

RESUMO:

Objetivo:

identificar as representações sociais de travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida.

Material e Método:

Estudo qualitativo, descritivo, exploratório, ancorado na Teoria das Representações Sociais, desenvolvido com sete travestis profissionais do sexo. A produção dos dados foi realizada com entrevistas semiestruturadas e posteriormente transcritas, validadas e analisadas a partir da Análise de Conteúdo Temática.

Resultados:

Emergiram-se três categorias: 1) O acesso à saúde como princípio à qualidade de vida; 2) Apoio das organizações não governamentais na visibilidade e respeito às demandas das pessoas trans e 3) Os laços sociais como ferramenta propositiva no significado da qualidade de vida.

Considerações finais:

As representações estão situadas na necessidade de acesso aos serviços de saúde livre de preconceitos; no apoio das organizações não governamentais no reconhecimento de suas potencialidades e singularidades estabelecendo vínculos afetivos, de apoio, lealdade e confiança; e no estabelecimento dos laços sociais produzidos com vizinhos e amigos para o enfrentamento das dificuldades vivenciadas diariamente.

Palavras-chave: Enfermagem; Pessoas Transgênero; Qualidade de vida; Profissionais do Sexo; Teoria Social

INTRODUÇÃO

A identidade de gênero é caracterizada pelo autorreconhecimento do indivíduo com o seu próprio gênero. Assim, travestis possuem a identidade de gênero que difere do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento. “A ambiguidade ou duplicidade sexual na própria afirmação identitária” que as travestis possuem fazem parte do contexto e da construção social que vivenciam e conFigura-se como processo contínuo que se apoia em performances femininas e em tecnologias de gênero em constante construção. A partir dessa não-linearidade entre sexo-gênero-corpo há a produção de processos que vão tensionar a lógica binária de gênero e às tornam vítimas da transfobia1)(2)(3.

A transfobia está associada ao contexto social de estigma, discriminação, violência e negação do exercício de sua cidadania, que pode resultar em danos físicos, psíquicos e até a morte, corroborando com a expectativa de vida de até 35 anos das travestis e mulheres transexuais. As condições precárias de vida decorrem da exclusão e marginalização social, direcionando como principais indutores as redes de apoio fragilizadas ou rompidas, e a exclusão/evasão das áreas de ensino, saúde e trabalho. Esse contexto resulta insuficientes alternativas de empregabilidade formal e direitos trabalhistas, situando entre elas, o trabalho sexual como uma das únicas formas de (sobre)vivência4)(5)(6)(7. À enfermagem, enquanto profissão alinhavada com os processos sociais e o processo saúde-doença, é esperado que se estabeleça críticas quando essencializam às práticas e vivências das travestis e que compreenda a natureza biossocial das suas experiências e existências. Além disso, cabe repensar o próprio conceito de individuo presente no metaparadigma da enfermagem, observando às armadilhas e o universalismo presentes ali8.

As travestis profissionais do sexo vivenciam processos sociais resultantes da hierarquização de poderes que legitimam quais vidas importam. Os corpos trans estão associados, ao imaginário social, à fetiches sexuais e a relação de dominação por clientes, que somado à falta de ações de educação em saúde e programas de proteção social, potencializa processos vulnerabilizadores, resultando em uma maior exposição às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), violência física, verbal, psicológica e sexual, discriminação, estigma, e as doenças psicossociais que vão impactar na sua qualidade de vida4)(5)(6)(7)(9.

A Teoria das Representações Sociais (TRS) possibilita um aporte teórico-científico para a compreensão das vivências diárias de pessoas e grupos sociais, como as travestis. Consideram-se as representações sociais como sistemas de valores, ideias e práticas com a dupla função - de conhecer e intervir na realidade, identificando-as para compreender os fenômenos construídos e compartilhados socialmente que se tornam familiares ao satisfazer o raciocínio argumentativo do senso comum10,11.

Acredita-se que adotando tal referencial teórico seja possível analisar as representações das travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida10, envolvendo o contexto sociocultural e o sistemas de valores na qual o indivíduo está inserido, levando em consideração expectativas e preocupações11 e a forma pela qual são reproduzidas no contexto que estão inseridas. A identificação de tais representações possibilitará a compreensão dos fenômenos construídos. Tais fenômenos se apresentarão como um recurso fundamental para a interpretação da qualidade de vida do grupo social em tela, se constituindo como um instrumento potente de reflexão e eixo norteador das práticas dos profissionais de saúde, de forma geral, e da enfermagem, de forma específica, possibilitando a articulação entre reflexão, história social e criticidade do saber social e científico11. Assim, definiu-se a seguinte questão de pesquisa: quais as representações sociais das travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida? E como objetivo identificar as representações sociais das travestis profissionais do sexo sobre qualidade de vida.

MATERIAL E MÉTODO

Aspectos éticos

O estudo atendeu as normas estabelecidas pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde12. A produção dos dados ocorreu após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CEP) da Universidade Federal de Pernambuco. Foi fornecido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a todas as participantes que aceitaram participar da pesquisa.

Para a garantia do anonimato das participantes, os depoimentos foram identificados pelas codinome “Participantes” seguido da ordem da condução das entrevistas: 1, 2, 3, etc.

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, exploratória, ancorada na TRS, que busca explorar o senso comum para caracterizar os conceitos antes desconhecidos. Salienta-se que esta teoria visa explicar a origem quanto a transformação do conhecimento, estando este em consonância aos interesses da humanidade10. Além disso, este estudo atendeu aos Critérios de Consolidação para Relatórios de Pesquisa Qualitativa (COREQ)13.

Cenário do estudo

Esta pesquisa teve como cenário a cidade do Recife, Pernambuco, Brasil, sendo utilizado como referência inicial um espaço social para atendimento exclusivo de pessoas LGBT. O local foi escolhido por acolher e prestar assistência médica, jurídica e social a população de interesse do estudo.

Participantes do estudo

As participantes foram selecionadas a partir da técnica em cadeia Snowball, na qual um indivíduo da população de estudo, chamado de semente, indica outros indivíduos de sua própria rede de sociabilidade. A amostragem se deu por conveniência, não probabilística, seguindo o critério de saturação teórica14, dessa forma, contou com sete travestis profissionais do sexo. Incluíram-se as travestis do gênero feminino, maiores de 18 anos, de qualquer orientação sexual e que fossem profissionais do sexo.

Coleta e organização dos dados

A coleta dos dados ocorreu no primeiro semestre de 2020, por intermédio de um questionário com variáveis sociodemográficas composto por: idade, estado civil, com quem mora e como se dá a procura pelos serviços de saúde; e entrevistas guiadas por um roteiro semiestruturado contendo as seguintes questões norteadoras: 1) Fale-me sobre sua história de vida; 2). Fale-me o que você entende por qualidade de vida; 3). Na sua opinião, você tem qualidade de vida? Se sim, me explique. Destaca-se que foram realizadas duas entrevistas antes da inclusão da primeira participante, com o intuito de obter a validação interna do instrumento de coleta de dados e para assegurar o rigor metodológico do estudo, evitando, assim, interpretações dúbias15. Os testes aplicados, portanto, não foram incluídos na amostra final.

Cabe mencionar que o roteiro foi utilizado mais como um guia durante o percurso de produção de dados empíricos14, devido ao reconhecimento, por parte dos pesquisadores, das dinâmicas presentes no campo e de considerar aspectos subjetivos do estudo. Foi realizada a imersão da pesquisadora no espaço social para conhecimento prévio da dinâmica de funcionamento e construção de vínculo com a equipe e público-alvo. Após esse momento, realizou-se a explanação da pesquisa a partir de uma informante chave do referido espaço, a qual indicou a primeira participante do estudo.

A coleta de dados se deu a partir da aproximação da pesquisadora com a primeira participante indicada por uma informante chave do serviço estabelecido como ponto de partida. Prosseguiu-se com a aplicação do questionário e realização da entrevista em um local reservado. Ao fim da coleta, foi solicitada a indicação de uma nova participante. As participantes que integraram a amostra deste estudo possuíam vínculo com outras ONGs situadas na microrregião da cidade do Recife, possibilitada a partir do acesso a uma rede exclusiva de pessoas transgênero, identificada a partir das indicações. Apesar da localização e do acesso a uma rede exclusiva de sociabilidades de pessoas transgênero, houve, no decorrer do trabalho de campo, duas recusas para participação do estudo.

A saturação dos dados empíricos ocorreu a partir da 6º entrevista, sendo realizando mais uma para confirmação, que totalizou 7 entrevistas. Para determinar o alcance da saturação foram seguidos os oito passos procedimentais: I) Registro dos dados brutos (fonte primária); II) imersão nos dados; III) Compilação das análises individuais de cada entrevista; IV) Agrupamento dos temas e/ou pré-categorias; V) Nominação dos dados; VI) Alocação das temáticas em uma Tabela; VII) Constar a saturação teórica para cada pré-categoria e VIII) Visualização da saturação teórica. Para a gravação dos relatos, foi utilizado dois gravadores de voz16. Ressalta-se que todas as etapas para o alcance da saturação foram realizadas por três pesquisadores. As entrevistas tiveram duração média de 35 minutos, e estas transcritas e validadas pelas participantes posteriormente, visto que houve o acesso dessas mesmas interlocutoras a partir do contato telefônico disponibilizado anteriormente.

Análise de dados

A análise dos dados foi realizada a partir da técnica da Análise de Conteúdo Temática. A mesma foi sistematizada da seguinte forma: pré-análise - realizado a leitura flutuante aplicando os princípios da exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência; exploração do material - fase em que consiste nas operações de codificações, realizadas a partir de termos-chaves e temáticas inter-relacionadas resultando em categorias temáticas; interpretação - tratamento dos resultados e interpretação à luz do referencial teórico das RS17. Para validação e confiabilidade desta pesquisa utilizaram-se os seguintes critérios: triangulação metodológica e de pesquisadores18.

RESULTADOS

Este estudo compôs o universo representacional de sete travestis profissionais do sexo, com idade média de 29,1 anos. No que se refere ao estado civil, quatro eram solteiras e três estavam em um relacionamento estável. Em relação à escolaridade, quatro referiram ter estudado até o ensino primário, duas concluíram o ensino médio e apenas uma o ensino superior; todas mencionaram ser heterossexuais. Três residem com a família, duas sozinhas e duas com seus companheiros. Quando indagadas sobre a frequência em relação a procura aos serviços de saúde, cinco referiram ir frequentemente, e duas ocasionalmente. Nenhuma possui filhos.

Todas as participantes do estudo são provenientes de microrregiões do Estado de Pernambuco, Brasil. Das sete participantes nenhuma exerce trabalho formal, excluindo-se a profissão do sexo. Seis consideram sua situação econômica ruim, vivendo em condições econômicas desfavoráveis e uma participante considera média.

A partir da Análise de Conteúdo, emergiram 3 categorias temáticas: “O acesso à saúde como princípio à qualidade de vida”; “Apoio das ONGs na visibilidade e respeito às demandas das pessoas trans” e “Os laços sociais como ferramenta propositiva no significado da qualidade de vida”.

A classe temática “O acesso à saúde como princípio básico à qualidade de vida” é caracterizado pela importância de ter acesso aos serviços de saúde no contexto de ser uma profissional do sexo, além de ter profissionais de saúde que respeitem a sua identidade de gênero no atendimento. Ressalta-se que as barreiras postas pelo sistema binário e heteronormativo é um dos motivos que faz com que as participantes não procurem os serviços de saúde, ou quando fazem, experienciam a assistência dos profissionais de saúde que relativizam e/ou invisibilizam as suas necessidades, além de possuírem suas demandas manejadas a partir de um cuidado centralizado na identificação de ISTs.

Já deixei de frequentar serviços de saúde, pois me sentia afetada por causa de uma médica que me negou tratamento hormonal, alegando que no posto ninguém cuidava disso e que hormônio era coisa de mulher e não de homem. (Participante 1)

Qualidade de vida é ter saúde, em primeiro lugar tem que ter acesso à saúde, porque sem saúde não tem como batalhar por uma vida melhor. (Participante 2)

Eu já deixei várias vezes de frequentar o serviço de saúde por conta de preconceito, o posto de saúde mesmo, eu nunca ia, eu peguei sífilis quando tinha 18 anos, mas eu tinha medo de ir porque o preconceito é enorme, tanto dos profissionais quanto das pessoas ao redor. (Participante 3)

Em relação ao acesso nos serviços de saúde hoje em dia é muito relativo, preconceito sempre vai existir, a transfobia e homofobia. A gente sempre passa por um ou outro constrangimento, porque têm funcionários que estão ali, mas não querem nos atender e sempre arruma um jeito de soltar uma “gracinha”. (Participante 4)

“O apoio das ONGs na visibilidade do respeito e existência das vidas trans” foi outra classe desvelada na análise temática. É possível observar como o apoio das ONGs têm fundamental importância na representação de uma qualidade de vida digna para as participantes dessa pesquisa e como estas impactaram positivamente na mudança de suas vidas, identificando o apoio moral, companheirismo, cumplicidade, ações de conscientização da população e acesso às questões de saúde promovidos pelas ONGs, como é destacado:

Hoje não tenho mais dificuldades de acesso os serviços de saúde, mas isso é por causa da ONG, porque antes a gente tinha, principalmente a gente que mora em periferia. (Participante 7)

O apoio moral da ONG melhorou bastante minha situação, principalmente depois que a gente começou a se conhecer melhor, o autoconhecimento pra gente que vive na prostituição é muito importante. (Participante 4)

A ONG facilita muito na questão saúde, porque primeiro nós não tínhamos um ambulatório para LGBT e agora tem, então já facilita, pra quando você chegar não ser olhada com preconceito. Porque por mais estudos que os profissionais de saúde tenham, sempre vai ter um olhar de preconceito, já aqui não tem isso. Essa ONG tem um grande impacto positivo, tanto para mim como pra toda a comunidade LGBT. (Participante 2)

A ONG é maravilhosa, o atendimento com a gente é muito melhor, porque o atendimento é específico pra nossa necessidade, a gente se sente mais acolhida, a gente é muito bem atendida pelos profissionais de saúde é um aconchego tão gostoso, você se sente em casa, a questão da cumplicidade, do companheirismo do respeito, da reciprocidade dos profissionais é muito gostoso, eu me sinto muito bem, muito bem aqui, porque eu tenho o privilégio de marcar minhas consultas, exames e explicar tudo direito. Depois da ONG a minha saúde melhorou muito. (Participante 5)

Antes da ONG só jesus na causa, era uma agonia, uma penitência. Os profissionais de saúde não queriam atender, sempre falavam que as fichas acabavam, tinham sempre que levar a mãe como acompanhante, era uma dificuldade; mas com a ONG ficaram bem mais tranquilas, a gente marca as fichas tudo certinho, a gente chega é bem atendida por todos, eles acolhem, respeitam a gente com educação. (Participante 6)

“Os laços sociais como ferramenta propositiva no significado da qualidade de vida” foi a última classe temática que emergiu no contexto da produção dos dados. A interpretação dessa classe perpassa por contextos de autoidentificação das participantes como travestis; dos processos que fragilizaram as redes de apoio na família e que culminam em cenários que vão produzir sofrimento e proporcionar dificuldades na vida adulta, tendo, dessa forma, o acolhimento e suporte de redes estabelecidas a partir de vizinhos, amigos e até mesmo estranhos, como é descrito:

É como eu costumo dizer, você passou toda a vida naquele sofrimento, quando você conhece amigos que lhe apoiam, pra você isso é muito importante, principalmente por tantos momentos ruins quem você passou na prostituição. (Participante 4)

Com 16 anos conheci um amigo que era gay, e ele me ajudou bastante, ele viu que eu estava precisando de umas coisas, pois tinha ligado pra minha mãe do orelhão chorando, e ela me disse que não ia me dar, que não tinha responsabilidade comigo, que eu já não morava com ela, jogou um monte de coisa na minha cara. (Participante 1)

Às vezes a gente tem mais apoio de um estranho, de um vizinho, de um amigo, mas não tem da própria família, em muitas também ocorre a questão delas se suicidaram por causa disso, porque não tem apoio familiar. (Participante 7)

O processo de aceitação com a minha família sempre foi difícil, eles suportam né, porque são cristãos, mas também nunca vão aceitar. (Participante 2)

DISCUSSÃO

O senso comum difundido e constituído socialmente integra a realidade das travestis no decorrer de suas vidas à medida que se estabelece o processo de exclusão social e a conformação desses grupos marginalizados, sobretudo em espaços de prostituição. As formas de comunicação, pensamentos e práticas das participantes que são profissionais do sexo se fundamentam no processo histórico de significações atreladas a abjetificação de seus corpos, expressões e experiências que rompem a concepção de normalidade social e às vulnerabilizam.

Foi possível identificar que a RS das travestis sobre qualidade de vida está associada a ter saúde e acesso aos serviços de forma respeitosa e inclusiva, no entanto, a objetivação perpassa pelo medo do preconceito e se expressa em repulsa e não busca por cuidados à saúde. A apropriação da realidade pelas interlocutoras se expressa em relatos sobre as dificuldades enfrentadas para uma relação respeitosa com os profissionais da saúde e do despreparo destes para a implementação de ações de cuidado a este grupo social.

As representações sobre a qualidade de vida emergem num cenário social resultante da exclusão vivenciada diariamente e historicamente pelas participantes, além disso, os dados empíricos demonstram a condição e os processos multifatoriais que as vulnerabilizam, evidenciando que suas vivências cotidianas estão atreladas às práticas e normas que reproduzem processos discriminatórios e transfóbicos. É preciso compreender que ter acesso à saúde é, antes de tudo, entender que este é um elemento essencial na estruturação dos serviços de saúde, público ou privado, permeado desde a entrada dos usuários aos serviços, até a finalização do tratamento, ou ainda, a sua participação em qualquer ação ofertada pelo serviço de saúde19.

A discussão sobre o acesso à saúde de pessoas transgênero mostra-se em voga na literatura, demonstrando como esta é permeada por exclusão, discriminação e violência20,21. Evidencia-se, ainda, uma desigualdade no atendimento das demandas específicas da população trans quando comparada a outros grupos sociais22. É importante pontuar que a concepção da qualidade de vida das participantes sofre influências e é resultante, em alguma medida, das diversas estruturas sociais que hierarquizam vidas, as situando em posições subalternas. Viabilizar o acesso à saúde das interlocutoras demanda articulações das ações direcionadas para além da promoção da saúde e prevenção de doenças, mas que possibilitem espaços de diálogos, construção e uma contínua ressignificação de conhecimentos germinados a partir de uma visão que essencializa as potencialidades, experiências e narrativas das interlocutoras.

As relações de classe e poder constituídas historicamente na sociedade relativizam as vidas das travestis, visto que há processos que vão além de reproduzir mecanismos de opressão, designar quais vidas são consideradas importantes para a sociedade. Os espaços e as relações sociais, por vezes, são projetados por meio de imagens, linguagens e pela lógica binária para pessoas que compõem a cisheteronormatividade. Neste sentido, as representações das travestis se constituem entre o pensar e agir formas de sobrevivência a partir da busca por espaços de acolhimento, ainda que clandestinos, sendo a prostituição um dos principais reflexos de sua realidade.

É fundamental pensar serviços (sociais, e de saúde especialmente) e profissionais que estejam capacitados para atender às demandas das interlocutoras de forma integral, pois, sabe-se que a representação e o significado de determinados conceitos, como a qualidade de vida, é uma construção coletiva e individual que está permeada por concepções que podem ser criadas e recriadas a partir da vivências, experiências e valores culturais e sociais23. E quando se discute ter o acesso à saúde, significa antes de tudo, que este é um direito fundamental e garantido pelo Estado, entretanto, o que se ganha relevo é que esse acesso é insuficiente e fragilizado no contexto das participantes dessa pesquisa, limitando e rompendo significativamente as experiências e a qualidade de vida das travestis, afinal, como ter qualidade de vida sem saúde? Um direito que, teoricamente, é garantido pela Constituição Federal de 1988 e pelas leis orgânicas do Sistema Único de Saúde (SUS).

No cotidiano das travestis deste estudo a materialização do pensamento e da linguagem sobre a qualidade de vida também se expressa na busca por apoio mútuo em movimentos sociais e organizações não governamentais (ONG). Essa busca está relacionada como uma forma de enfrentamento à marginalização, que está presente a todas às pessoas que tensionam a lógica binária e vem sendo, nas últimas décadas, combatida sistematicamente por movimentos sociais e as próprias ONGs que dialogam com as necessidades e especificidades do público em tela. Esse movimento possibilitou uma concepção e construção de ideias e práticas que possuem como um dos objetivos o auto empoderamento e autorreconhecimento dos sujeitos (política e socialmente) em todos os espaços sociais, aspectos fundamentais para a construção de processos que legitimam e fazem parte do cotidiano, da vida e experiência de qualidade de vida das interlocutoras.

As representações que estruturam o papel simbólico e afetivo das ONGs desenvolvem uma função de extrema importância na vida das interlocutoras, pois a partir do vínculo estabelecido há o reconhecimento das suas demandas, que ultrapassam o modelo hegemônico, biomédico e biomecanicista. Na perspectiva da saúde, é possível situar uma série de ações elaboradas e partilhadas socialmente que visam proporcionar espaços que vão contribuir de forma propositiva para o exercício pleno da sua cidadania, tendo impactos positivos na qualidade de vida. Tais ações, possibilitam RS que situam a influência e importância positiva das ONGs em suas vidas, pois o apoio e as relações estabelecidas nesses espaços estão centrados em condutas biopsicossociais que englobam fatores biológicos, psicológicos, culturais e sociais. É tido assim, como a representação de uma construção coletiva de um espaço propositivo para o exercício pleno de sua cidadania, favorecendo o respeito e o estabelecimento de vínculos afetivos, amorosos e sociais.

No processo de identificação das representações do papel social das ONGs, atribuíram-lhe um novo significado, reconstituindo-o como um local a qual traz segurança e empatia, pois há, de alguma forma, um porto seguro que dentro do bojo histórico e sociopolítico o qual as interlocutoras estão imersas, se caracteriza por ser uma das poucas instituições que as reconhecem como cidadãs e seres potentes de outras narrativas positivas. É dessa forma que as ONGs possuem uma posição social singular na eclosão das vozes que são, sistematicamente, silenciadas por normas cisgênero e heterossexuais. A ancoragem é realizada pelas interlocutoras na estruturação simbólica das ONGs como principal articulador de espaço assertivo para a garantia dos direitos humanos e da cidadania; apoio; respeito; acolhimento e aconchego, que convergem para elementos fundamentais quando se discute qualidade de vida.

As ONGs se constituem como um dos principais vínculos que possibilitam o compartilhamento de experiências, concepções e vivências em determinados grupos sociais, potencializando as relações de apoio que vão contribuir para o empoderamento e ativismo social. Na concepção construída pelas interlocutoras, as representações foram fundadas a partir das relações (individuais e coletivas) estabelecidas entre as interações positivas com as ONGs, gerando significados possíveis envoltos em processos culturais. As ONGs por serem uma rede de vital importância na construção e reconhecimento das subjetividades de ser travesti e estar profissional do sexo, favorece diálogos e reflexões críticas no combate a opressões operacionalizadas pela lógica cis-heteronormativa, instigando e instrumentalizando as interlocutoras no âmbito do empoderamento e reconhecimento de seus direitos. Desempenham, assim, um papel crucial na qualidade de vida das mesmas, pois ao mesmo tempo que se constituem como espaços sociais potentes para socialização de grupos e indivíduos que vivenciam processos vulnerabilizadores, são também considerados enquanto espaços que possibilitam a construção de outras narrativas de vida, em que o protagonismo das interlocutoras está alicerçado no acolhimento, na escuta qualificada, no respeito, na confiança e na promoção à vida.

No que se discute sobre o processo de construção de laços e vínculos ligados à família, e a convivência, foi possível identificar como alguns processos ocorridos na infância das interlocutoras podem estabelecer relações que vão resultar em negativas experiências de qualidade de vida. A objetivação da qualidade de vida é expressada pelo excesso de significados que tais experiências possuem nas vidas das participantes, materializando-as e estruturando o seu conhecimento10. Os vínculos com os vizinhos e amigos desempenham um papel importante na (sobre)vivência diária das participantes, conFigurando-se como o estabelecimento e fortalecimento de vínculos entrelaçados em confiança, companheirismo, lealdade e pertencimento, possibilitando, assim, um tipo de suporte concreto, atribuindo um significado específico e influente quanto a qualidade de vida. É possível identificar a partir a categorização de que tais laços, vínculos e relações favorecem um papel de trocas afetivas e recíprocas, e que possibilitam o estabelecimento de respeito, cuidado e relações positivas que influenciam nas RS da qualidade de vida das interlocutoras.

O estabelecimento dos laços e relações sociais é uma ferramenta fundamental para que haja a construção de vínculos afetivos e que vai potencializar o fortalecimento da autoestima, confiança e segurança. Para as interlocutoras os vínculos, sobretudo familiares, se mostram fragilizados, que se iniciam a partir da legitimação de uma série de processos que vão fundamentar discursos conservadores e transfóbicos. As travestis estão em constante contato e recebem influência contínua do meio social, assim, deve-se considerar a importância do fortalecimento de relações que proporcionem bem-estar mútuo, autoestima, conforto e segurança, que promovam dinâmicas a uma plena experiência de qualidade de vida24.

Observou-se, ainda, que o insuficiente apoio e a carência do núcleo básico familiar, proporcionou, em vários níveis, uma relação de dependência das interlocutoras no estabelecimento de laços com vizinhos, amigos e até mesmo estranhos, que apesar de serem construídas numa perspectiva de dependência, desempenham papéis importantes e singulares na grande teia de relações sociais. Assim, as representações que os vínculos desempenham em função de novas conFigurações devido às suas individualidades e o seu autorreconhecimento enquanto travestis, operou como um papel singular e importante na qualidade de vida das interlocutoras, pois houve a ancoragem do objeto de estudo entre as participantes a partir da comunicação e compartilhamento dos processos já experienciados. A partir das considerações de Moscovici10 foi possível identificar que houve a objetivação dos possíveis “laços” que poderiam atuar como forças acolhedoras e de suporte frente às problemáticas vivenciadas socialmente.

A materialização e o significado dado aos vínculos construídos a partir das relações sociais com amigos e vizinhos, se constitui como uma importante ferramenta resultante das representações construídas no cotidiano e na articulação entre sujeito e sociedade interlocutoras e sociedade, e que vai possibilitar, em vários níveis, a utilização desses afetos como “teias sólidas” para a vivência e a experiência de forma minimamente segura em vários processos sociais, como nos cuidados em saúde e na socialização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações sociais das travestis profissionais do sexo sobre a qualidade de vida estão construídas e imbricadas a partir de processos sociais que deslegitimam suas identidades e existências, influenciando suas percepções e construções do que é concebido à qualidade de vida. Essa elucidação está permeada pelas relações sociais que vão evidenciar, na visão e experiência das interlocutoras, que a qualidade de vida está atrelada ao acesso aos serviços de saúde livre de preconceitos, discriminação e estigma para atender às suas demandas, incluindo o atendimento e respeito dos profissionais de saúde; bem como o apoio e existência das ONGs no reconhecimento de suas potencialidades e singularidades, sendo estabelecido vínculos afetivos, de apoio, lealdade e confiança; e o estabelecimento dos laços sociais produzidos a partir do vínculo com vizinhos e amigos para o enfrentamento das dificuldades e obstáculos vivenciados diariamente numa sociedade permeada pela lógica cis-heteronormativa, descreve-se, ainda, que tais laços desempenham um papel fundamental no que se discute a qualidade de vida das interlocutoras: a ressignificação dos vínculos para o fortalecimento da confiança e segurança.

Por fim, as travestis profissionais do sexo comunicaram seus conhecimentos, numa perspectiva de representação do que conceberam a qualidade de vida, reconhecendo-as em seus contextos diários. Afirmam-se, no entanto, que tais representações estão espelhadas a uma compreensão de qualidade de vida ideal ou ainda possível na sociedade, reconhecendo, entretanto, que estas não são vivenciadas, ainda, por elas.

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Recebido: 07 de Janeiro de 2021; Aceito: 27 de Março de 2021

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