1. Introdução
Escassez de recursos, mortes em escala global e sem assistência adequada, medo e apreensão, todas essas palavras e expressões têm sido lidas e ouvidas na maioria dos canais de notícias em todo o mundo, devido a identificação da Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2), no mês de dezembro do ano de 2019, na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, e sua posterior disseminação mundial, trazendo à tona a palavra pandemia e seus diversos agravos à população.
Em meio ao estado caótico que enfrentamos, questões relacionadas ao preparo dos sistemas de saúde frente à crise foram levantadas, principalmente no tocante à alocação de recursos, considerando que os mesmos, nos momentos de pico de infecção da doença, foram insuficientes, trazendo aos profissionais de saúde e gestores dilemas éticos na tomada de decisão1
A Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), doença causada pelo vírus SARS-CoV-2, no contexto global, desde seu primeiro contágio até abril de 2021, infectou 136.739.552 de pessoas, resultando em 2.947.244 de mortes, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)2. Este avanço pandêmico pode ser atribuído não apenas às características do vírus em si, mas também ao pouco conhecimento deste e de sua fisiopatologia. No contexto brasileiro, tivemos 13.517.808 casos desde o início da pandemia até o mês de abril de 2021, com 354.617 mortes. Neste país, além dos pontos supracitados, faz-se necessário agregar aos motivos da expansão pandêmica, a crise político-econômica que se mostrou e ainda persiste3.
No entanto, a preocupação óbvia com os pacientes afetados pela COVID-19 fez com que os gestores em saúde dos diversos países voltassem sua atenção e seus recursos a estes, deixando os indivíduos com outras doenças e necessidades em segundo plano; entre estas pessoas, podemos citar aqueles cujas doenças precisaram de Cuidados Paliativos (CP)4. Tais cuidados são definidos como integrais, englobando os aspectos físicos, psíquicos, sociais e espirituais, objetivando o aprimoramento da qualidade de vida dos indivíduos a que se destinam, bem como suas famílias5. Os pacientes elegíveis para estes cuidados são aqueles que experimentam um intenso sofrimento, advindo de doença grave que os acomete, sendo esta entendida como "... qualquer doença aguda ou crônica e/ou condição que cause deficiência significante e que possa levar à condição de deficiência e/ou debilidade por um longo período, ou até a morte"6.
A falta ou alocação insuficiente de recursos também impactou de maneira negativa a vida dos pacientes em CP, onde os mesmos tiveram dificuldades no acesso a medicamentos e acompanhamento adequado de suas comorbidades, resultando, em alguns casos, em danos irreparáveis(5),7 . No cenário brasileiro, a Fundação Oswaldo Cruz, ligada ao Ministério da Saúde, emitiu uma nota técnica em que informa que no período em que houve mais mortes por COVID-19, também ocorreram mais mortes por outras causas. A Fundação associa este fato ao represamento de atendimentos eletivos, e ao direcionamento quase que exclusivo aos casos COVID-198.
Diante das adversidades relacionadas à alocação de recursos, faz-se necessário elucidar o princípio da equidade, enquanto um dos princípios do SUS, o qual incorpora e até mesmo substitui o conceito de igualdade -distribuição homogênea, ou seja, a cada pessoa uma mesma quantidade de bens e serviços. A equidade, considera que as pessoas são diferentes e têm necessidades diversas; por isso, a distribuição deveria ser heterogênea. Dessa forma, nota-se que a construção do conceito da equidade leva em conta a distribuição de bens e serviços em quantidade e de forma diferentes, guiada pelas necessidades dos indivíduos9.
Assim, direcionados pelo princípio da equidade, esta reflexão teve como objetivo elencar alguns dilemas éticos relacionados ao direito de acesso aos CP no contexto da pandemia da COVID-19 e fomentar a discussão dos mesmos visando a alocação de recursos de forma equitativa, segundo os pressupostos doutrinários da legislação do SUS.
2. Responsabilização pela Razoabilidade
Nesta reflexão teórica, utilizamos como referencial a abordagem de Responsabilização pela Razoabilidade proposta por Norman Daniels. Este filósofo é especialista em Bioética e atua na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos da América (EUA). A abordagem supracitada se encontra em suas obras: Just health: meeting health needs fairly10 e Justice and Human Rights: priority setting and fair deliberative process11. Objetivando trazer soluções sólidas às questões da justiça distributiva em saúde, o autor busca responder entre outras questões, "... como poderíamos satisfazer as necessidades em saúde de uma maneira justa dada a escassez de recursos?"10. Tal questionamento fomentou a construção da abordagem de Responsabilização pela Razoabilidade10.
Baseada nos Direitos Humanos tem como aspectos chave: zelo com a presença da equidade na utilização de recursos; análise dos fatores limitantes ou catalisadores para intervenções planejadas; envolvimento das partes interessadas, de modo a auxiliar e assinalar quais intervenções terão maior impacto na saúde; e por fim, responsabilidade e transparência sobre as decisões tomadas pelos governos, bem como do seu provável impacto na saúde e bem-estar da população. O principal objetivo da Responsabilização pela Razoabilidade é que, frente a situações de escassez de recursos, a priorização da alocação de recursos seja entendida, pela população, como justa e justificável ao atender às necessidades em saúde11.
Frente a dilemas na alocação de recursos em saúde, o autor destaca condições a serem seguidas: 1. Condição de publicidade: transparência acerca das decisões que culminaram nas prioridades a serem aplicadas às necessidades de saúde; 2. Condição de relevância: deve haver uma explicação razoável acerca das decisões que levaram às prioridades, explicitando as evidências, razões e princípios que as direcionaram; 3. Revisão e condição de apelação: inserção de mecanismo que, frente a novas evidências e argumentos, permitam a revisão e aprimoramento das políticas estabelecidas; e ao final, 4. Condição reguladora: estabelecimento de regulação pública do processo, assegurando que as condições 1, 2 e 3 sejam cumpridas11.
O modelo sugerido por Daniels permite, adotando a transparência nas decisões e razões que levaram às prioridades, a otimização deste processo de priorização ao longo do tempo com a utilização de novas evidências trazidas pelas partes interessadas; e, também, legitimando-as mesmo quando há dificuldades em ter a presença da totalidade de grupos vulneráveis nas discussões. Desse modo, a abordagem mostra-se consoante aos Direitos Humanos, permitindo sua aplicação nas atualizações em sistemas de saúde e na priorização em saúde; pois demonstra preocupação com a justiça e os determinantes sociais em seu processo11.
3. Dilemas éticos e legais envolvendo pacientes em CP
Crises humanitárias são eventos extraordinários marcados por alta mortalidade, e o objetivo maior nesses cenários é o ato de "salvar vidas". Neste contexto, os CP, que são aqueles focados no suporte às pessoas com doenças severas ou terminais, até recentemente, têm sido excluídos nessas situações1. Durante a pandemia de COVID-19, o acesso a esses cuidados foi dificultado, devido ao enfoque dos sistemas de saúde aos pacientes acometidos pelo coronavírus12. Entretanto, a dignidade e conforto no processo de adoecimento e morte é um direito humano básico1. Por isso, a importância de discutirmos pontos relevantes do direito ao acesso a determinados recursos pelos pacientes em CP neste contexto.
Considerando que o direito sanitário além de objetivar a promoção, prevenção e recuperação da saúde dos indivíduos, através de um conjunto de normas jurídicas, também engloba a preocupação ética voltada para os temas que interessam à saúde; este zelo ético demanda constantes discussões sobre os critérios na alocação de recursos em todas as esferas públicas e no estabelecimento de políticas que possam impactar na saúde individual ou coletiva. As considerações éticas devem ser consoantes à ética universal e aos valores da sociedade, visando a conciliação de interesses e buscando primordialmente a pessoa humana e sua dignidade.13,14
3.1. Dilema relacionado aos respiradores artificiais
Ao pensarmos em uma doença que acomete principalmente o sistema respiratório, logo nos vem à mente que, em um contexto pandêmico, um dos primeiros recursos a se tornar escasso seria o respirador artificial e os cuidados intensivos que os acompanham. Na situação de escassez, a terapia intensiva não pode ser ofertada a todos que necessitam dela, gerando assim situações dilemáticas que impossibilitam seguir o princípio da beneficência, como também cumprir o dever ético, deontológico e jurídico de providenciar assistência necessária15.
Dessa forma, a exacerbação do dilema no contexto pandêmico se dá, no provento de salvar uma vida em detrimento a perda de outras vidas. Neste contexto, diante de uma situação em que tivéssemos disponível apenas uma vaga de unidade de terapia intensiva e um respirador, a quem os profissionais de saúde a disponibilizariam: ao paciente acometido pela COVID-19 e sem comorbidades ou ao paciente em CP terminais?
Países que experimentaram crises emergenciais verificaram a necessidade de desenvolvimento de guias éticos e de fluxos de tomada de decisão sobre a alocação desses recursos e a adoção de protocolos de triagem. No entanto, os protocolos de triagem a serem utilizados devem ser norteados pelos princípios éticos de justiça e beneficência, considerando também a avaliação clínica centrada no paciente(12).
Na Itália, um dos países europeus mais acometidos pela pandemia da COVID-19 ocorreram condições excepcionais de desequilíbrio entre necessidades e recursos disponíveis, sendo necessária a adoção de critérios de racionamento próximos ao contexto militar para identificar prioridades de tratamento em detrimento a uma tremenda desproporção entre recursos e grupos de pacientes. Nesse cenário, a Sociedade Italiana de Analgesia, Anestesia, Reanimação e Terapia Intensiva (SIAARTI), desenvolveu um documento norteador com recomendações de ética clínica para admissão e também para suspensão de tratamento intensivo aos pacientes que o demandassem; no entanto, ao não adotarem transparência acerca dos critérios utilizados e as razões que os amparavam, para a população geral, o guia foi altamente criticado tanto pelos cidadãos comuns, como pela comunidade científica e mídia. Este fato demonstra o quanto é importante a adoção de referenciais bioéticos na construção de guias éticos e de tomada de decisão, nos contextos de crises humanitárias(15).
Ao passo que um consenso europeu de recomendações éticas para tomada de decisões em terapia intensiva16, utilizou alguns dos critérios destacados por Daniels em sua elaboração como: a transparência na comunicação entre equipe e família sobre os motivos da tomada de decisão acerca do acesso; e também empregaram a aplicação do princípio da justiça com o uso de instrumentos, de forma a não utilizar apenas os critérios de comorbidade e idade cronológica para priorização, mas outras variáveis tais como: definir a idade biológica do paciente, utilizando-se de escalas de fragilidade; entrar em contato com a equipe de Atenção Primária que acompanha o paciente para entender seu contexto de maneira global; e ainda, conhecer os valores e preferências do paciente, indagando sobre a existência de uma Diretiva Antecipada de Vontade (DAV).
No tocante a tais protocolos de triagem no contexto brasileiro, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) elaborou um documento norteador para alocação de ventiladores mecânicos e leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) que visa promover transparência e clareza nas decisões; não discriminação quanto às condições clínicas dos pacientes; comunicação aberta a pacientes e familiares quanto a decisão da alocação; e respeito pelas DAV, quando houver. Este protocolo se utiliza da estratificação por grau de gravidade das disfunções orgânicas, da identificação de critérios clínicos-laboratoriais associado a presença de doenças em estágio avançado e estratificação de risco pela funcionalidade. Ainda explicita que, os pacientes que não serão contemplados com os recursos mencionados, mesmo em fase terminal, têm direito ao cuidado ativo de assistência nos aspectos psicológicos, sociais e espirituais; controle da dor e de outros sintomas17.
Em tempo, é importante ressaltar que alguns deles utilizam dos critérios estabelecidos pelo Modelo de Responsabilização por Razoabilidade, principalmente no momento em informar a decisão aos familiares. É importante que os critérios utilizados para a seleção sejam esclarecidos a essas pessoas (publicidade), que sejam trazidos à explicação as evidências utilizadas para a escolha (relevância) e que o serviço de saúde conte com uma comissão para avaliar novas evidências científicas que possam vir a modificar as diretrizes do protocolo em uso, assim como garantir seu uso e respeito nas futuras decisões (revisão e condição apeladora; e Condição reguladora) 11.
3.2. Dilema relacionado ao tratamento dialítico
Com o objetivo de prevenir a infecção pelo vírus da COVID-19, os países adotaram implementação de medidas restritivas, tais como proibição de eventos que gerem aglomerações, promoção do distanciamento social, todas elas muito importantes para o alcance do referido objetivo3. No entanto, esta última recomendação afeta um recurso muito importante, utilizado por pacientes que apresentam Insuficiência Renal Crônica (IRC), o tratamento dialítico. Pacientes com IRC são particularmente vulneráveis a COVID-19; evidências demonstram que pacientes em diálise acometidos pela COVID-19 experimentam maior mortalidade e agravamento comparados a população geral18 .Contudo, a maioria desses pacientes não pode praticar o distanciamento físico de maneira eficaz devido à necessidade de se locomover a centros de diálise, onde se expõe tanto no deslocamento quanto na permanência nas clínicas durante o tratamento(18).
Vale ressaltar que além de os pacientes com IRC serem mais vulneráveis a COVID-19, os demais pacientes acometidos pela COVID-19 também apresentam maior propensão a quadros de Insuficiência Renal Aguda (IRA), tal como demonstrou um estudo realizado nos Estados Unidos, em que 46% destes foi acometido por IRA, sendo que destes 30% necessitaram ser submetidos ao tratamento dialítico19. Fazendo com que a demanda por este tratamento seja significantemente aumentada em detrimento a quantidade de equipamentos e equipe necessárias a este atendimento20.
Diante dessas informações, considerando a escassez deste tratamento devido ao aumento da demanda de pacientes que necessitam dele, como seria realizada a priorização deste recurso numa situação em que tanto o paciente já acometido com IRC necessitasse dele quanto o paciente sem comorbidade anterior, mas acometido pela COVID-19 também tivesse a mesma demanda?
Os pacientes acometidos por IRC dependem desse recurso, não apenas devido ao aumento e continuidade de sua qualidade de vida, mas para sua sobrevivência. Portanto, as clínicas de hemodiálise necessitam de readequações, como: estabelecer protocolos de triagem, com aferição de temperatura e observação de sintomas; testagem para COVID-19 aos sintomáticos e posterior separação dos positivos em unidades de isolamento; investir em equipamentos de proteção individual para a equipe, e salientar sua importância aos mesmos; reorganização dos turnos de atendimento, abrindo mais horários e diminuindo o número de pacientes por sessão21; além de promover educação em saúde acerca dos modos de contágio do vírus, e sinais e sintomas; de modo a atender às demandas, ou seja, às medidas restritivas e não interromperem o atendimento a seus usuarios22.
Além disso, apesar de a incidência de IRA em infectados com SARS-CoV-2 ser baixa (cerca de 0,5%), observou-se em alguns centros médicos, por exemplo nos Estados Unidos, estes valores são muitos maiores. Assim, a capacidade de oferecer terapia renal substitutiva em pacientes com COVID-19 ou IRC tem sido afetada durante a pandemia. Mas, as equipes encontraram soluções para que seus pacientes não ficassem sem o tratamento, como a diálise peritoneal (DP)20.
A DP proporciona vantagens por poder ser realizada no ambiente domiciliar, evitando o contato com outras pessoas através do transporte e tratamento nos centros de diálise. E, apesar de que requer uma equipe treinada para sua realização e preparação dos familiares no gerenciamento deste tratamento, os meios online podem ser utilizados para tanto23.
Contudo, até a data, as recomendações éticas para alocação de recursos escassos são direcionadas somente a respiradores e não a este tipo de terapia20. Pois, apesar de haver soluções alternativas, como a DP, não são todos os pacientes que podem ser beneficiados pela mesma, sendo necessários guias éticos de direcionamento, que auxiliariam a tomada de decisão pelos profissionais e otimizariam o tratamento dos pacientes24. Estes protocolos norteadores, poderiam utilizar o modelo de Responsabilização por Razoabilidade; de modo que a tomada de decisão do porquê o ente querido não obterá o tratamento dialítico usual a que está acostumado e sim a DP, ou ficará mais tempo sem este tratamento, seja compreendida como justa e devidamente justificada11.
3.3. Dilema relacionado a medicações analgésicas
Um dos diversos desafios gerados pela pandemia COVID-19, é a dificuldade dos pacientes com dor crônica de receber o manejo adequado de seus sintomas por meio de medicações. Pois, além do contexto pandêmico exarcerbar os sintomas devido às orientações de isolamento social, que limitam as interações sociais e afetam o aspecto psicológico dos pacientes, estas restrições também impedem a execução de alguns tratamentos alternativos ao uso de fármacos, que necessitam ser presenciais para serem colocados em prática25.
Apesar da OMS e outros órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecerem os CP e o alívio da dor como elementos do direito a saúde, países em desenvolvimento não buscam alternativas para que suas populações, que necessitam dos chamados medicamentos analgésicos controlados, como os opióides, por exemplo, tenham um acesso mais facilitado a esses insumos. Considerando este cenário já desfavorável, a eclosão da pandemia da COVID-19, fez com que a situação se agravasse levando a escassez e falta de estoque dessas medicações, principalmente nestes países. Pois, como é sabido esses medicamentos são utilizados tanto para tratar alguns dos sintomas relacionados a doença, como também são necessárias para o procedimento de entubação e durante a ventilação mecânica dos pacientes26.
Dessa forma, numa situação de escassez, como os medicamentos para dor seriam priorizados entre pacientes acometidos pela COVID-19 que necessitam da medicação para intubação/ventilação e pacientes em CP que precisam destas drogas para o alívio de suas dores?
O controle da dor é considerado um direito humano fundamental, entretanto, o fechamento de serviços durante a pandemia tem dificultado o acesso a este tipo de assistência. A triagem de pacientes com dor pode auxiliar a diferenciar os que poderiam ser tratados por telemedicina daqueles que necessitam de cuidados presenciais. Consideram-se como critérios de triagem a acuidade e severidade da dor, a presença ou não de comorbidades psiquiátricas, aspectos ocupacionais e situação social27.
Contudo, segundo o guia da OMS28, essas medicações devem ser fornecidas a todos os pacientes que necessitem independente de categoria de triagem. No entanto, quando os recursos são escassos, seria inevitável categorizar pacientes e limites de cuidados. Em situações de vida ou morte e escassez de recursos, a primeira dimensão de categorização seria claramente: quem tem chances de sobreviver e quem não tem. Entretanto, essa categorização seria eticamente contrária ao direito humano de prover cuidados a todos os pacientes, principalmente considerando aqueles em CP1.
Assim, mediante à situações de escassez de medicamentos durante a pandemia, torna-se necessária a utilização dos critérios elencados por Daniels, pois mesmo que a escolha de um paciente seja suplantada por outro com melhor prognóstico de saúde, a decisão seria compartilhada entre familiares e equipe, utilizando de uma explicação razoável, demonstrando evidências e princípios (Condição de relevância) para aquela priorização; e também transparência acerca da tomada de decisão (Condição de publicidade), mesmo sendo está uma notícia negativa para a família11.
Pensando em uma solução para dirimir a questão das medicações para pacientes em CP a médio prazo, a OMS forneceu direcionamento aos países que experimentaram a escassez desses insumos. Entre elas estão: a utilização de mecanismos de aquisição conjunta como a Pan American Health Organization Strategic Fund, The Pharmaceutical Procurement Service in the Organization of Eastern Caribbean States, the Gulf Corporation Council, e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a fim de reabastecimento e construção de estoques de segurança e o emprego do Pacote Essencial desenvolvido pelo The Lancet Commission on Pain and Palliative Care, que estabelece equipamentos e medicações mínimas necessárias para CP seguros e eficazes, principalmente relativa a dimensão de assistência paliativa relacionada ao aspecto do alívio da dor, tanto para adultos como para crianças. Os insumos deste pacote podem ser administrados com segurança em um ambiente de cuidados primários; e finalmente, treinamento clínico de enfermeiras e enfermeiros especializados para prescrever e dispensar opióides para pacientes em CP em todos os ambientes de atendimento domiciliar(25).
Além dos recursos materiais citados anteriormente, tais como medicações e equipamentos voltados para o tratamento da dimensão física/biológica do ser humano, as terapêuticas voltadas para os aspectos psicológicos, sociais e espirituais do paciente também são essenciais tanto para aqueles em CP quanto aos acometidos pela COVID-19 e necessitam de alocação equitativa, como veremos a seguir.
3.4. Dilema relacionado ao acompanhamento psicossocial
Podemos notar que o aspecto psicológico é considerado como uma parte essencial dos CP, conforme o conceito apresentado pela International Association for Hospice Palliative Care (IAHPC). No entanto, devido ao contexto pandêmico em que vivemos, muitos serviços dessa categoria de cuidado foram descontinuados visando a adequação às estratégias de prevenção da propagação da COVID-19. No entanto, devido a situação de proximidade da morte que enfrentam, os pacientes em CP são afetados mais exacerbadamente quando experimentam medo e ansiedade. Esses sentimentos podem afetar negativamente a adesão ao tratamento; aumentam a sensação de dor, incidência de náuseas e vômitos, e até os efeitos colaterais das medicações utilizadas. E foi evidenciado que a pandemia COVID-19 é uma razão para a ocorrência de alterações mentais, como estresse, sintomas depressivos, insônia, negação, raiva e medo29.
Considerando o explicitado, o que seria mais razoável: suspender os serviços psicossociais a estes pacientes, visando às medidas protetivas contra a propagação do vírus e gerando ansiedade e depressão, pela falta dele; ou prestar os serviços e correr o risco que esses pacientes vulneráveis contraiam o vírus?
Levando em conta a vulnerabilidade destes pacientes, as notícias relacionadas à mortalidade pelo vírus e as situações de perda e luto de pessoas conhecidas, suscita-os a indagar sobre a proximidade do vírus e sua situação de saúde já deteriorada. Esta situação gera angústia e ansiedade nos mesmos, fazendo-se ainda mais necessária a continuidade de serviços psicossociais. Respeitando as medidas preventivas impostas pelo contexto, é possível utilizar-se de estratégias para que estes serviços cheguem aos pacientes que tanto necessitam, entre elas está o uso da telemedicina30.
Embora as tele consultas não substituam inteiramente as consultas face-a-face, evidências apontam que podem ser efetivas, acessíveis, aceitáveis pelos pacientes, ter um baixo custo, além de auxiliar na limitação do risco de contágio por COVID-1931. No entanto, algumas barreiras a este tipo de atendimento foram apontadas como dificuldades de acesso pela população idosa relativa a questões tecnológicas; e por parte dos profissionais que não se sentem à vontade com consultas não presenciais, relacionadas a questões de confidencialidade a segurança das consultas online32.
Contudo, outro ponto a ser levantado nesta modalidade de atendimento seria o acesso da população geral à internet e aos instrumentos necessários para acessar as plataformas de atendimento neste modo. No caso do Brasil, a implementação dessa tecnologia não alcança um número considerável de pacientes, considerando todas as regiões do país em especial as mais vulneráveis, sendo necessário um maior investimento para este atendimento, a fim de que todos os pacientes que necessitem sejam contemplados de modo equânime33.
Portanto, para resolução deste dilema em países com iniquidades no acesso a tecnologias e internet, seria importante o equilíbrio entre os atendimentos presenciais, com a adoção de todas as precauções sanitárias possíveis e o fornecimento de programas psicossociais online, por meio de plataformas, para os que tem essa oportunidade.
Dessa forma, em relação a este dilema, poderiam ser aplicados protocolos de triagem socioeconômicos, contemplando as condições da Razão pela Razoabilidade, em que a tomada de decisão, que seria quais pacientes direcionar para o tratamento presencial e quais para a telemedicina, sejam entendidas como justas e justificadas. Assim, explicitando os critérios utilizados para alocação dos pacientes em cada categoria de atendimento (Condição de publicidade), informando em quais evidências a priorização foi realizada (Condição de relevância), criando uma comissão para garantir a aplicação do protocolo, bem como sua revisão quando necessária (condições de revisão e reguladora) 11.
3.5. Dilema relacionado ao acesso aos locais de exercício da espiritualidade
No cenário pandêmico em que nos encontramos, o vivenciar da espiritualidade se torna essencial para o andamento da vida das pessoas. Os pacientes em CP têm no aspecto espiritual um agente transformador que regula suas emoções, podendo atuar na redução da depressão e ansiedade, possibilitando ainda reflexões sobre a finitude da vida34. Complementando este aspecto, um artigo de reflexão estadunidense afirma a necessidade do reconhecimento da importância dos cuidados espirituais nos momentos de crise, tanto na vida dos pacientes quanto nas dos profissionais de saúde envolvidos, e demonstra que a falta desse recurso impacta de maneira negativa pacientes próximos a terminalidade da vida acometidos pela COVID-19 e suas respectivas famílias35.
Segundo Dame Cecily Saunders (1918-2005), assistente social, enfermeira e médica, reconhecida como fundadora do movimento moderno de hospice, os CP se fundamentam no conceito de dor total, desenvolvido por ela, em que o cuidado deve abranger a multidimensionalidade do ser, abarcando os aspectos físicos, psíquicos, sociais e espirituais. Nessa perspectiva, a espiritualidade é um recurso de enfrentamento significativo, constituindo-se num meio de lidar com a terminalidade, minimizando a angústia, sofrimento e dor infligidos pelas doenças incuráveis que acometem alguns pacientes em CP; transfigurando a prática espiritual no palium, ou seja, o manto que traz conforto36.
Entretanto, mesmo evidenciada a importância da espiritualidade para a população, devido à continuidade da pandemia, exigindo cada vez mais medidas restritivas, o acesso aos locais de prática da fé foi sendo reduzido, e no Brasil, até mesmo proibido seu acesso37. No entanto, chegamos novamente a um dilema: restringir o acesso aos locais onde esses pacientes exercem sua espiritualidade, acarretando o aumento da depressão, ansiedade e pensamentos destrutivos; ou permitir esse acesso colocando tanto os pacientes vulneráveis, como os em CP, quanto às demais pessoas em risco de contrair o vírus causador da COVID-19?
Um estudo que explana sobre a religiosidade/espiritualidade como recursos no enfretamento à COVID-19 expõe, entre outros pontos, os aspectos positivos que beneficiam às pessoas que frequentam ambientes congregacionais, tais como a redução de mortes, os baixos níveis de depressão e os melhores níveis de saúde. Explana ainda que, para os idosos, devido à situação de pandemia, seria melhor investir em atividades espirituais intrínsecas não congregacionais, optando ainda por alternativas online. No entanto, levando em consideração a população brasileira, grande parte dela não tem acesso a dispositivos eletrônicos que permitam o acesso a essas estratégias e, ainda que tenham, boa parte não sabe como manuseá-las38.
Portanto, temos pacientes que necessitam do exercício de sua espiritualidade para dirimir sentimentos negativos provenientes do estado pandêmico, que podem acarretar depressão, ansiedade e pensamentos destrutivos, em detrimento a medidas de restrição para sua própria proteção. Tendo em conta que os locais de culto podem facilmente implementar ações que alcancem os objetivos de distanciamento, como: adição de horários extras para realização dos cultos, restrição do número de pessoas por encontro, utilização de álcool e controle de temperatura na entrada dos locais; e que a atuação da vigilância sanitária ou órgãos governamentais instituídos podem fiscalizar esses lugares, impondo inclusive multas para os locais que desrespeitem as normas, considera-se que a liberação de tais atividades religiosas seria uma medida razoável nestes contextos38.
Além do acesso aos locais de prática religiosa, se faz importante atentar-se também aos pacientes que se encontram hospitalizados e que devido às restrições de acesso a estas instituições religiosas, justificadas pelas medidas sanitárias relacionadas ao COVID-19, não têm suporte para suas práticas religiosas. O acesso ao apoio espiritual na terminalidade da vida, sendo o paciente religioso ou não, os auxilia a lidar com medos, encontrar esperança e significado, oferecendo suporte na preparação para a morte e o luto. Assim, o papel dos capelães é de fundamental importância para este aspecto39.
Logo, com a aplicação do modelo da Responsabilização pela Razoabilidade, neste dilema, em que é apresentada a iniquidade de acesso aos locais de exercício espiritual, seria possível criar diretrizes de orientação a população geral (Condição de publicidade), utilizando-se dos critérios para estabelecer a rigidez das restrições de distanciamento social40, de modo a fundamentar a necessidade desta priorização (Condição de relevância). A fim de que aqueles que tem condições de acesso à internet e facilidade no manejo dos equipamentos necessários sejam direcionados a exercer sua espiritualidade através das plataformas online; e aqueles que não tem essa disponibilidade e habilidades, que sejam direcionados ao modo presencial, mas ressaltando a importância do respeito às normas de prevenção para evitar a propagação do vírus causador da COVID-19.
4. Conclusões
O cenário da pandemia de COVID-19 gera várias reflexões sobre aspectos relacionados à saúde, a proliferação do vírus tem ocasionado o aumento de mortes e do consumo de muitos recursos, demonstrando o quanto despreparados os sistemas de saúde se encontram para o enfrentamento deste tipo de crise. No entanto, esses mesmos sistemas não podem se voltar unicamente para a doença emergente em detrimento às já existentes, quando pensamos em alocação de recursos escassos.
Diante dos dilemas discutidos, é de primordial importância que as esferas responsáveis pela alocação de recursos em saúde utilizem de instrumentos baseados em decisões éticas, alicerçados em evidências cientificas, que tenham em conta a discussão ética e tenham sido revisados por todos os atores interessados, em contextos de escassez. Pois de nada adianta as decisões serem tomadas de acordo com o surgimento de demandas relacionadas aos recursos escassos, pois a falta de planejamento nesta área afeta desde municípios a países, gerando consequências irremediáveis. Portanto, a construção desse direcionador pode facilitar a utilização desses recursos, tanto para gestores como para os profissionais que atuam na ponta.
Desse modo, é possível concluir que há uma maneira ponderada de alocar recursos de forma que estes sejam destinados a dirimir os problemas acarretados por uma crise em saúde pública que gera escassez de fomentos e ainda assim prover, de certa forma, assistência de qualidade a pacientes vulneráveis que precisam desta para seu bem-estar e sobrevivência. No entanto, este trabalho não esgota a temática em torno da alocação de recursos escassos a pacientes em CP na pandemia, sendo necessários estudos teóricos e objetivos visando esclarecer todas as nuances em torno dos dilemas.
Os CP são uma abordagem direcionada ao alívio da dor, manejo de sintomas e otimização da qualidade de vida de pacientes portadores de doença grave e terminal. E nesse contexto pandêmico, embora o objetivo principal seja salvar vidas, ele não deveria ser o único, pois nem todas as vidas poderão ser salvas deste mal, mas podemos perder outras pelas comorbidades que já existiam, se o mínimo de cuidado que estas necessitam não for provido. Mesmo porque, as vidas que resistirem à COVID-19, podem passar pelo processo de sofrimento, seja no aspecto físico, social, psíquico ou espiritual que atualmente os pacientes em CP passam e necessitam dos mesmos cuidados.
Portanto, é de extrema relevância a discussão exaustiva dos dilemas éticos apontados neste artigo, de modo que a alocação de recursos em saúde seja feita de maneira equitativa, como direciona a equidade, que é um dos princípios do SUS; e que possa se utilizar de referenciais bioéticos, como o utilizado neste trabalho, para dar maior transparência às decisões, de modo que a população possa entendê-las como justas e justificadas.