1. Introdução
O trabalho nas interseções entre animalidade e deficiência tem tomado uma posição de destaque na filosofia, na bioética e no direito. Os encontros entre os dois campos, contudo, nem sempre são harmoniosos. Por um lado, é possível notar a utilização da deficiência como um "caso teste", a partir de sua exploração conceitual como objeto confirmatório e acessório de hipóteses de defesa de direitos dos animais não humanos. Por outro, um dos importantes artifícios usados pelos estudos animalistas consiste na utilização de metáforas que representam o comportamento opressivo em relação aos animais não humanos como uma prova do autismo, da psicopatia ou da esquizofrenia de determinados humanos. Esse labirinto teórico nos faz questionar: Em sendo possível o encontro animalidade-deficiência, quais são seus termos? Que caminhos interpretativos devemos percorrer para uma conversão genuinamente interseccional?
Nesse artigo, partimos dos estudos de deficiência, animalistas e bioéticos, com aportes da filosofia moral e política. Ressalvamos nossa concepção ampla do que é produção bioética - i.e., entendemos que "questões bioéticas" englobam tanto questões sobre o valor e o significado do desenvolvimento de diferentes vidas humanas e não humanas, quanto questões sobre estruturação de poder, dominação e dependência entre indivíduos diversos. Traçamos um mapa teórico para analisar os encontros e desencontros entre animalidade de deficiência. Nosso objetivo é tão somente apresentar três linhas teóricas para adentrar a mata do encontro animalidade-deficiência, de maneira que prefaciamos, desde já, a ausência de aprofundamento em cada senda. Nesse intento panorâmico, estabelecemos três caminhos de análise pautados em argumentos divergentes: o da comparação; o do cuidado e da dignidade; e o da cidadania e da opressão comum. Seguimos uma estruturação dialética, a partir da exposição das defesas e dos ataques aos argumentos expostos. Nossa metodologia se pautou por revisão de literatura, com abordagem hipotético-dedutiva, tendo esse estudo natureza eminentemente teórica. Sua contribuição deverá ser o fornecimento de um panorama dos referenciais a partir dos quais é possível abordar, conjuntamente, deficiência e animalidade não humana.
2. Abordagens morais interespécies: argumento da comparação
Na ética aplicada e na bioética, indivíduos com deficiência cognitiva, intelectual, mental e psicossocial severa têm servido como casos de teste em debates sobre o status moral de humanos em relação a indivíduos de outras espécies animais. Isso decorreria do fato de que humanos supostamente são marcados por atributos intelectuais intrinsecamente valiosos (como autoconsciência e racionalidade prática) (Wasserman et al, 2012). Contudo, dado que os sujeitos mencionados podem ser retratados como carentes desses atributos, surge a pergunta: teriam pessoas com determinadas deficiências status moral inferior ao do representante típico da espécie humana? Em virtude desse cenário teórico, Carlson (2009) considera que o reconhecimento do status moral de pessoas com deficiências tornou-se, direta ou indiretamente, um assunto de alto interesse filosófico, fundando-se uma literatura específica dedicada à compará-los com animais não humanos Essa literatura tem sua justificativa no desafio que a deficiência põe à filosofia moral, consubstanciado na questão: há indivíduos humanos menos moralmente relevantes que outros? (Wasserman et al, 2012).
A gênese dessa discussão está na escola utilitarista do filósofo e bioeticista Peter Singer (1974; 1993; 1994; 2009; 2010), do qual descende uma literatura que gera um forte impacto para o encontro animalidade-deficiência (McMahan, 1996; 2002; 2008; 2009; 2010). Nessa seção, analisamos dois quadros referenciais dotados de implicação moral, que nascem da fundação de analogias entre animais não humanos e pessoas com deficiência. São eles: o especismo e o pós-humanismo.
2.1. Especismo: o simples fato de se ser humano é moralmente indiferente
O conceito de "status moral" denota um ser que merece direitos morais e é capaz de agir moralmente. Argumentou-se, tradicionalmente, que apenas seres racionais podem ser morais (Kant, 2015), o que implica que animais não humanos, bem como pessoas com deficiências cognitivas e intelectuais graves são seres "amorais" (Vehmas, 2004, p. 34). Contudo, atribuir um status específico de moralidade ao ser humano, pelo simples fato de ser humano, não é válido - dizem os individualistas morais (Crary, 2016) -, dado que o fazer cria uma distinção injustificada, baseada essencialmente em um argumento circular, entre os membros da espécie humana e o de outras espécies. A injustificação se baseia em um coletivo antropocentrismo, que margeia a própria leitura e classificação humana dos grupamentos animais não humanos.
Para os animalistas do argumento da comparação1, atributos como "moralidade", estruturados em vista da percepção humana, não são, por si só, consistentes e objetivos. Para negar essa estruturação antropocêntrica de moralidade, esses autores partem da premissa que o mero fato de se ser humano é moralmente irrelevante (Crary, 2016; 2018; 2019). O que importa moralmente, argumentam eles, são os fatores moralmente significativos, como a senciência ou habilidade de sentir prazer ou dor. Atribuir relevância moral ao fato de se ser humano, sem um forte sistema moral que se justifique em si mesmo, significaria, portanto, discriminação injustificada contra os indivíduos pertencentes às demais espécies não humanas; em outras palavras, significaria especismo. Para a ética animal analítica, o especismo é um erro conceitual (Scotton, 2018). Em Horta, o especismo é a "consideração ou tratamento injustificado desvantajoso daqueles que não são classificados como pertencentes a uma ou mais espécies particulares" (2013a 2010, p. 245).
O argumento da comparação em Singer tem seu marco inicial em All animals are equal (1974), cujo objeto consiste em discutir a questão de se os indivíduos "permanentemente retardados" poderiam ser moralmente distintos dos animais humanos com características intelectuais e cognitivas normais e dos animais não humanos com determinadas capacidades cognitivas. Já nele, as bases do antiespecismo são estabelecidas a partir de uma pergunta que se tornará típica de seu trabalho: "(...) por que deveria haver qualquer desigualdade fundamental de reivindicações entre um cão e um humano imbecil?"2 (1974, p. 114). Em Animal Liberation (2009), livro cuja primeira edição data de 1975, o autor dá uma primeira definição explícita do que é especismo, equiparando-o ao racismo e ao sexismo; se, diz Singer, por um lado, racistas violam o princípio da igualdade ao dar mais importância aos interesses dos membros da própria raça e sexistas violam o mesmo princípio ao favorecer os interesses do próprio sexo, "similarmente, especistas permitem que os interesses da própria espécie se sobreponham ao melhor interesse dos membros de outras espécies" (Singer, 2009, p. 38-39).
Para melhor entender o argumento do especismo, é preciso sumarizar duas importantes definições presentes na literatura de Singer: a doutrina da santidade da vida e o conceito de habilidades cognitivas. A crítica à doutrina da santidade da vida começa a ser trabalhada pelo autor ainda na década de 1980, especialmente em trabalhos conjuntos com Helga Kuhse - tais como "Should the baby live? The problem of handicapped infants" (Kuhse & Singer, 1985). Nesse livro, os autores fazem uma das primeiras comparações entre capacidades cognitivas relevantes de pessoas com determinadas deficiências e animais não humanos, ao dizerem que "porcos, vacas e galinhas têm uma capacidade maior de se relacionar com os outros, melhor capacidade de comunicação e muito mais curiosidade do que a maioria dos humanos severamente retardados3" (Kuhse & Singer, 1985, p. 122). O que a doutrina da santidade da vida defende é que a vida humana - e apenas a vida humana - é sagrada (Singer, 2009, p. 50). Essa crença tanto nos impede de ter uma leitura mais flexível do infanticídio de bebês com deficiências severas4, quanto nos faz ter leituras demasiadamente flexíveis no que diz respeito ao sofrimento animal não humano. Nesse sentido, "só o nosso respeito descabido pela doutrina da santidade da vida humana nos impede de ver que aquilo que é obviamente um mal fazer a um cavalo é igualmente um mal fazer a um bebê deficiente" (1993, p. 213). Em que pese identificar bases religiosas para esse tipo de doutrina, Singer entende que sua influência se estende para um tipo de "moralidade oficial" da igualdade moral entre todos os seres humanos (Singer, 2010).
Para contestar a doutrina da santidade da vida humana, Singer entende que devemos rever nossa concepção de "nós" a partir da valorização de um nível de habilidade cognitiva (2010, p. 336), que se sustente sem referências à espécie. Seu argumento é o de manter a hierarquia moral entre indivíduos, mas reconhecer que ela se fundamenta não na filiação a uma espécie, mas sim nos funcionamentos cognitivos do sujeito considerado. Para reestruturar a hierarquia moral, sua sugestão é "abandonar a ideia do valor igual de todos os humanos, substituindo-a por uma visão gradativa em que o status moral depende de alguns aspectos da capacidade cognitiva", sendo essa visão aplicada tanto a humanos como a não humanos (2010, p. 338).
Contra o argumento da comparação que leva a delimitar o especismo, podemos localizar dois argumentos, estruturados pelos estudos de deficiência O primeiro deles, desenvolvido fortemente por Kittay (2005, 2010), reflete uma profunda insatisfação com a comparação de pessoas com deficiência e animais não humanos, "porque pessoas com deficiência são claramente seres humanos, não animais"5 (2005, p. 102). A recusa de entender pessoas com deficiências como animais humanos, tão pautados por sua animalidade quanto pessoas sem deficiências, no entanto, não responde adequadamente à crítica de Singer, dado que insiste em um pressuposto dispensado pelo autor: o de que a filiação humana - ou seja, o atributo de ser membro da espécie humana - tem relevância.
Outra contra-argumentação consiste na ideia de que o ponto de vista das próprias pessoas com deficiência, cujas vidas são instrumentalizadas como meros "casos" exemplares para provar a moralidade de animais não humanos, não é incluído quando da avaliação animalista. Dessa forma, diz Cuenca, qualquer exploração conceitual da deficiência nos estudos animalistas deve se pautar pelo "uso interessado de pessoas com deficiências cognitivas graves como protagonistas do que pode ser considerado o raciocínio fulcral da crítica ao especismo" (2016, p. 57). Devido a obliteração da perspectiva de pessoas com deficiência, os teóricos da deficiência têm criticado fortemente o uso irrefletido da terminologia referente às deficiências mentais e transtornos dentro do discurso dos direitos dos animais, argumentando que isso indica um afastamento mais amplo da teoria dos direitos dos animais em relação à experiência vivida de pessoas com deficiências (Scotton, 2018).
Para Cuenca, a ninguém beneficia a estratégia animalista antiespecista que utiliza a deficiência como caso. Ela tanto rebaixa o status moral dos indivíduos com deficiência em relação aos indivíduos sem deficiência, como abre o caminho para justificação de práticas eugênicas e para a experimentação desprovida de consentimento (2016). Suas consequências podem ser sentidas também por pessoas sem deficiência, em relação a pessoas mais dotadas intelectualmente - veja-se, por exemplo, que McMahan (2010), apesar de defender que o igual status moral deve ser dotado por todos os que ultrapassem um mínimo de capacidades intelectuais, também admite a existência de um maior status moral para "supra-pessoas" hipotéticas (2010). Além disso, Donaldson e Kymlicka (2016) têm defendido que o argumento da comparação estabelece uma competição na qual pessoas com deficiência e animais jamais poderão ganhar, dado que ela se pauta em premiar quem se aproxima da norma privilegiada, sem contestar a própria norma e o porquê de se a ter fixado.
2.2. Pós-humanismo animal da deficiência: a assembleia de agências humanas-animais6 7
O argumento da comparação pode, por outro lado, buscar a destruição de todas as hierarquias morais - ou seja, das ideias de que determinados indivíduos, em virtude de suas características ou funcionamentos, são mais relevantes moralmente e merecem mais proteção contra tratamentos degradantes que os demais. Dessa forma, a comparação entre animais não-humanos e pessoas com deficiência também abre espaço para uma defesa do pós-humanismo, que entende, por um lado, que animais humanos não deteriam primazia ética a priori sobre os animais não humanos (Crary, 2018; Vehmas, 2016, p. 10), defendendo, por outro lado, que qualquer hierarquia moral, bem como a divisão entre humanos e animais, é falsa e baseada em um "paroquialismo ético" (Wolfe, 2010).
O pós-humanismo da deficiência vale-se fortemente da proposta pós-antropocêntrica de Braidotti, para quem uma reflexão séria da condição pós-humana leva ao "deslocamento do antropocentrismo e ao reconhecimento da solidariedade transespécies" (2013, p. 67). Essa solidariedade exige romper com categorizações estáticas de pertencimento a uma espécie, reforçando-se, assim, o lugar do híbrido, onde acontece o encontro e a "interconexão vital" que "postula uma mudança qualitativa de relacionamento longe do especismo e em direção a uma apreciação ética do que os corpos (humanos, animais, outros) podem fazer" Braidotti, 2013, p. 71). Por esse motivo, as comparações entre animais não humanos e humanos abre o caminho para desmentir-se a si mesma8, enredando a percepção segundo a qual o "nós" é tomado por componentes transcorporais e humano-animais - somos todos, nesse sentido, humanimals (Braidotti, 2019). Assim, a deficiência adquire especial interesse, uma vez que é a condição pós-humana por excelência: "porque exige novas ontologias, maneiras de se relacionar, viver e morrer" (Goodley et al, 2014, p. 348).
Quais as consequências práticas colocadas pela teoria pós-humanista animal da deficiência? Podemos entendê-las como de três tipos. Primeiramente, se torna necessário repensar a dicotomia humano-animal, fundada no "excepcionalismo humano transcendental" (Braidotti, 2013, p. 86). Para explanar essa consequência, podemos lembrar que, embora estejamos geralmente dispostos a reconhecer que o "ser humano é um animal político" ou "social", dificilmente nos resguardarmos de usar metáforas animalescas de maneira pejorativa. Dessa forma, ao enunciarmos, por exemplo, "essa pessoa foi tratada como um animal", geralmente expressamos um desejo de mostrar o quão degradante é ser entendido como menos-que-humano e apenas-animal. Nesse sentido, o problema, de acordo com Goodley et al (2014), não é que algumas categorias de humanos sejam tratadas como animais; mas sim o desejo de tratar os animais de maneiras "menos-que-humanas". Assim é que as discussões pós-humanistas refocalizam o debate em torno da deficiência, entendendo que essa recolocação "fornece as condições e o ímpeto necessários para reavaliar os animais e os humanos como compartilhando um espaço pós-humano de devir" (Goodley et al, 2014, p. 355).
Um segundo tipo de consequência da teoria pós-humanista animal da deficiência é a ruptura com as delimitações do que "é" corpo humano e o que é dispositivo de assistência ou suporte animal9. Isso se dá porque a persuasão pós-humana é "cética sobre a centralidade do indivíduo no nosso pensamento cotidiano" (Goodley & Runswick-Cole, 2016, p. 8). Dessa forma, apesar de a utilização de próteses e apoios mecânicos escancarar a situação de continuidade do corpo humano em relação a seus aparelhos - que não são aditivos à condição humana, mas sim componentes dela -, o pós-humanismo argumenta que todos, em maior ou menor escala, estamos proteticamente situados em relação aos nossos co-habitantes. Assim, o "enquadramento pós-humanista questiona as fronteiras entre humano e não humano, matéria e discurso, e interroga as práticas pelas quais essas fronteiras são constituídas, estabilizadas e desestabilizadas" (Puar, 2012, p. 58).
Uma terceira consequência do pós-humanismo animal da deficiência consiste no desafio às noções estáticas de identidade e de responsabilidade. Isso porque a ética relacional exigida pelo pós-humanismo desintegra noções de subjetividade que não sejam tomadas em "assembleia". Pessoas com deficiência, estando interconectadas a animais, tecnologia, objetos e ecologia, são vistas como pioneiras nessa ética relacional, que redistribui agência e direitos (Maskos, 2020). Por esse motivo, responsabilidades e agências não podem ser entendidas como atributos de um indivíduo isolado - essa coletivização é representativa de "um período de tempo pós-antropocêntrico em que as alianças são feitas entre humanos e não humanos; entre o orgânico e o inorgânico, o nascido e o fabricado, carne e metal, circuitos eletrônicos e sistemas nervosos orgânicos" (Braidotti, 2013, p. 89).
No que diz respeito às críticas sofridas pelo movimento pós-humanista animal de deficiência, entendemos ser possível classificá-las em três vias. A primeira via infirma o pós-humanismo sugerindo que a argumentação nele erigida oblitera boa parte dos avanços progressistas no campo dos direitos e da filosofia moral, que se efetuaram em nome de um compartilhamento da condição humana por todos os que nascem de humanos. Mesmo que o humanismo já tenha sido usado como uma ideologia de justificativa para a dominação masculina branca e europeia, foi sua assunção que permitiu a confecção de projetos emancipatórios, como o de direitos humanos (Braidotti, 2013, p. 16). Dessa forma, é possível afirmar que foi a agenda humanista que fundamentou a institucionalização de importantes mecanismos, como a Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), adotada com status material e formalmente constitucional no Brasil em 2008. Dispensar o humanismo como eminentemente discriminatório pode ser uma postura arriscada para determinadas agendas consolidadas ou em fase de consolidação no quadro referencial de direitos humanos.
Como segunda crítica, é possível questionar a utilidade prática desse tipo de argumentação para fornecer um guia moral de decisões eticamente corretas que não entrem em contradição com nossas intuições morais. A confusão oportunizada pelo pós-humanismo se expressa quando observamos sua aplicação na formatação de políticas públicas e programas de ação. Em um mundo com recursos limitados, devemos priorizar, por exemplo, os cuidados com a saúde dos animais não humanos ou com a saúde dos humanos? Para Vehmas e Watson (2016), eleger a prioridade das ações voltadas para a saúde humana já significa, por si só, atribuir maior valor moral à espécie humana - embora se possa considerar que, uma vez diluídas as separações entre animais humanos e não humanos, todos seriam direta ou indiretamente favorecidos com investimentos gerais em saúde. Para os autores, o fato de ser intuitivo elegermos a priorização de humanos confirma pragmaticamente o "valor moral superior de todos os seres humanos em comparação com os animais", sendo essa "uma convicção amplamente aceita que não deve ser tão rapidamente abandonada. Assim, não estamos convencidos de que a agenda pós-humanista voltada para erradicar a divisão epistêmica e moral entre humanos e animais serve à teoria da deficiência" (Vehmas & Watson, 2016, p. 12).
Por fim, a terceira e a última via de contestação do movimento pós-humanista animal da deficiência diz respeito à delimitação da agência e da responsabilidade. Essa via se divide em dois caminhos: o primeiro é típico da filosofia moral ocidental e o segundo, da argumentação pós-estrutural. Primeiramente, é possível retorquir a coletivização da responsabilidade e da agência argumentando que a admitir significaria derrogar julgamentos sobre a responsabilidade moral e jurídica individual de sujeitos que podem e devem avaliar razões para agir. Nesse contexto, a coletivização da responsabilidade poderia significar um retorno subterfugioso de irresponsabilização por danos particularmente praticados contra animais não humanos e animais humanos vulnerabilizados. Por outro lado, ainda quando seguimos a intuição pós-estrutural, seria problemático coletivizar a responsabilidade em contextos de profunda desigualdade de distribuição de poder, nos quais alguns sujeitos têm - se não teoricamente, materialmente - mais poder de decisão que outros.
3. Abordagens morais neoaristotélicas: argumentos do cuidado e da dignidade animal
Autonomia, independência e autodeterminação: todos esses conceitos refletem o que MacIntyre chama de "Projeto do Iluminismo", a partir do qual se justificam as alegações de superioridade do indivíduo moral autônomo em relação aos demais (MacIntyre, 2006, p. 68). Deriva dessa tradição a ideia de que a independência na condução da própria vida e a autonomia factualmente manifestada se qualificam como dois atributos intrinsecamente conectados a um especial status moral - geralmente representado na ideia de pessoalidade (MacIntyre, 1999). Uma das consequências da desqualificação no âmbito da pessoalidade é a estruturação de uma marginalidade moral composta por sujeitos que, por não deterem igualdade moral, não participam da formatação dos princípios de justiça e, paralelamente, não recebem o mesmo grau de proteção que os demais - estes são os "casos marginais".
Em contestação ao projeto iluminista, MacIntyre e Nussbaum negam a separação dicotômica entre animalidade e racionalidade. Compondo o rol de neoaristotélicos do encontro animalidade-deficiência, ambos chamam atenção para o fato da nossa animalidade humana. Para os autores, a realidade de que nossos corpos são corpos animais é inescapável de qualquer teoria, sendo também relevante que essa animalidade revele uma vulnerabilidade a aflições e lesões. MacIntyre, por um lado, entende que a filosofia moral, além de ignorar a vulnerabilidade e superestimar a racionalidade, negou incisivamente a animalidade, ao propor que "nossa racionalidade, como seres pensantes, é, de alguma forma, independente da nossa animalidade" (1999, p. 5). Nussbaum (2013), por sua vez, argumenta especificamente de maneira contrária às variantes kantianas de pessoalidade, imputando-as a responsabilidade pela negação da animalidade. Sugere, nesse sentido, uma revisão do significado tradicional de dignidade a partir de uma tradição aristotélica/marxista.
Nesta seção, analisamos os argumentos fornecidos pela literatura neoaristotélica para o encontro animalidade-deficiência. Primeiramente, entendemos de que forma MacIntyre tanto nega a hegemonia da racionalidade como um atributo tipicamente humano, quanto propõe acolher teoricamente a permanência da dependência na vida humana, como fato biológico. Em um segundo momento, buscaremos entender o argumento da abordagem das capacidades de Nussbaum para a concepção da dignidade humana como um tipo específico de dignidade animal.
3.1. MacIntyre: animalidade no tripé da filosofia moral e dependência como virtude
Embora se argumente que reconhecer a interdependência é fundamental tanto para a deficiência quanto para a justiça animal (Taylor, 2017), as vulnerabilidades de pessoas com deficiência e animais não humanos têm sido paradoxalmente associadas, na filosofia moral, à minoração (Monroe, 2018, p. 117). Para pessoas com deficiência, a experiência de ser cuidada frequentemente significa ter menos independência e agência, e, para animais não humanos, o cuidado está frequentemente relacionado à sua exploração violenta (Taylor, 2017, p. 205-206). Ocidentalmente, ser dependente é sempre algo negativo, tendo-se como comum a disseminação da perspectiva de que pessoas com deficiência e animais não humanos domesticados são um fardo. Nos últimos anos, uma perspectiva de refocalização do cuidado, da dependência e da vulnerabilidade tem, por um lado, fornecido uma interpretação positiva do que significa estar em relação de dependência, e, por outro, esclarecido que a vulnerabilidade é um aspecto intrínseco à vida humana.
É com o intuito de refocalizar o cuidado e acolher a dependência que MacIntyre encabeça a literatura de neoaristotélicos imbricados no encontro animalidade-deficiência, especialmente a partir do livro "Dependent Rational Animals" (1999). Nele, o autor pretende responder a duas perguntas: "Por que é importante observar e entender o que os seres humanos têm em comum com membros de outras espécies animais inteligentes?" e "O que torna a atenção à vulnerabilidade humana e à deficiência importante para os filósofos morais?"10 (Macintyre, 1999, ix). Para colocar a relevância dessas questões, Macintyre nos pede para consideramos o quanto a negação da deficiência como uma condição corporal representa uma falha ou uma recusa ao reconhecimento adequado da dimensão corporal de nossa existência. Essa falha ou recusa está enraizada e é reforçada por nossa autopercepção como "algo mais que animais", como seres isentos da vulnerável condição de "mera animalidade" (1999, p. 4). Em consequência, "nos esquecemos de nossos corpos e de como nosso pensamento é o pensamento de uma espécie de animal" 11(1999, p. 5). No esquecimento do corpo, reside a ideia de que, como humanos, além de animais, somos algo mais: "nós temos, para essa perspectiva, uma primeira natureza animal e, em adição, uma segunda distinta natureza humana"12 (1999, p. 49-50).
Para reformar a filosofia moral, incluindo a dependência e a vulnerabilidade como condições existenciais essenciais, devemos iniciar por uma reinscrição da humanidade na animalidade. É a partir dessa reinscrição que Macintyre retorna a Aristóteles, ressalvando, contudo, que ele também deve ser relido a partir de sua falha em incorporar a dependência e a vulnerabilidade em seu pensamento teórico, que antecipou a defesa moderna da superioridade autossuficiente (1999, p. 6-7, p. 127). Em sua releitura tomista de Aristóteles, MacIntyre avança a ideia de uma teleologia biológica, sem, contudo, atribuir ao animal humano a exclusividade do domínio da razão - por esse motivo, uma parte da obra é dedicada a entender manifestações de inteligência em espécies de animais não humanos. A inversão feita por MacIntyre parte de um enquadramento da humanidade na evolução animal13, de maneira que se torna preciso focar não no que nos afasta enquanto espécies diferentes, mas no que nos aproxima enquanto igualmente animais. A filosofia, ao destacar o que nos afasta, tem se enfocado na alegação de ausência de linguagem em animais não humanos, o que obstaria a formação de pensamentos, de crenças, da razão prática e da conceituação (1999, p. 12). Essa dicotomia entre seres com linguagem (humanos) e seres sem linguagem (não humanos), desenhou uma linha que não permite perceber nossas semelhanças com algumas espécies inteligentes.
Como caso-espécie, Macintyre menciona os golfinhos, ressaltando que esses animais, assim como os humanos, "vivem juntos em grupos e rebanhos com estruturas sociais bem definidas", "se destacam na aprendizagem vocal e se comunicam entre si de várias maneiras", "estão sujeitos ao medo e ao estresse", e "são propositivos" (1999, p. 21). Além disso, golfinhos manifestam capacidades essenciais para ações goal-oriented, tais como atenção, afeição, medo, cooperação e compartilhamento de objetivos. São essas capacidades que fazem com que tanto a ação humana como a ação de golfinhos seja bem-sucedida em seus interesses em comum (1999, 23-24). Entender que golfinhos possuem bens comuns leva a atribuí-los razões práticas, provando-se que a ausência de linguagem, no sentido humano, não é um obstáculo à atribuição de razão a esses animais. O autor conclui, portanto, que os golfinhos, da mesma forma que outros animais inteligentes, têm pensamentos, crenças e razões para suas ações. Em verdade, o próprio argumento de ausência de linguagem em animais não humanos tem sido contestado por Macintyre, que os atribui uma capacidade "pré-linguística" - a qual existe e persiste nos animais humanos, independentemente da aquisição de linguagem (1999, p. 34-37). Dessa forma, uma importante consequência do pensamento macintyreano é afirmar ser mais acurado se referir a algumas espécies não humanas, como gorilas, chimpanzés, cachorros e golfinhos, como pré-linguística, não como não linguísticas.
Se o pré-linguístico precede, no humano, a própria racionalidade - assim como em muitas outras espécies inteligentes -, isso não significa que não existem diferenças entre animais humanos e não humanos inteligentes. Em MacIntyre, essas diferenças se alocam em três dimensões. Humanos possuem, diz Macintyre, (1) a capacidade de refletir sobre a qualidade das próprias razões de ação; (2) a capacidade de se desapegar de seus desejos primais; e (3) a capacidade de ter consciência de futuros possíveis (1999, p. 71-74). Essas três capacidades marcam um desenvolvimento tipicamente humano e tê-las significa florescer qua membros da espécie humana, enquanto seres racionais práticos independentes. Contudo, ainda quando todas essas capacidades estão desenvolvidas, humanos jamais perdem sua condição animal, pois o desenvolvimento racional não deve negar a animalidade, mas sim partir dela. Assim, é essencial para o desenvolvimento de tais capacidades o reconhecimento de uma animalidade comum, compartilhada com outros animais inteligentes.
Imbrincada nessa animalidade comum, estará o reconhecimento da vulnerabilidade e da dependência - sendo esse precisamente o ponto em que a deficiência desempenha um papel próprio na teoria de MacIntyre. Frequentemente, o indivíduo típico da espécie humana é representado como um sujeito independente - que nunca passa por um estado de infância, de velhice ou de doenças -, em interação com outros indivíduos independentes. No entanto, a deficiência, em vez de ser um momento raro ou descaracterizante da espécie humana, é ela intrínseca, dado que "existe uma escala de deficiência na qual todos nós nos encontramos. A deficiência é uma questão de mais ou menos, tanto em relação ao grau de deficiência quanto em relação aos períodos de tempo em que estamos incapacitados"14 (1999, p. 73). A mesma escala de deficiência é passível de ser encontrada no mundo animal não humano inteligente, no qual os indivíduos passam igualmente por diferentes períodos de vulnerabilidade e dependência mútua.
Assim como os autores da primeira seção, MacIntyre faz comparações entre a espécie humana e algumas espécies "inteligentes". Essa comparação, contudo, não é uma "via de mão dupla", como o são as teorias antiespecistas e pós-humanistas. Em MacIntyre, observar as espécies não humanas inteligentes é uma forma de nos lembrar de nossas próprias animalidade, vulnerabilidade e dependência humanas. Uma segunda dificuldade do pensamento moral maintyreano é a estruturação de suas "redes de relações de dar e receber"15 (1999, p. 99). Uma vez que considera as relações de cuidado factualmente consideradas, em um contexto de prática comunitária, ele pode findar por reforçar pontos de vista antropocêntricos, que excluem uma consideração paritária dos interesses de animais não humanos. Uma terceira e última crítica ao pensamento de MacIntyre16 no que diz respeito ao encontro animalidade-deficiência consiste em sua perspectiva naturalista de florescimento (1999, p. 77-78). Embora admita que há maneiras diferentes de florescimento para cada uma das espécies, a análise de MacIntyre sobre os atributos comportamentais dos golfinhos parte de um ponto de vista demasiadamente humano - ou seja, de neles enfocar habilidades cognitivas que os humanos consideram como particularmente valiosas para si. Dessa forma, há um "viés especista não intencional" (White, 2013, p. 86) que determina a perspectiva humana como hegemônica.
Assim, ao se valer amplamente da afirmação de que há espécies animais não humanas inteligentes, MacIntyre não coloca a questão de que a própria régua dessa inteligência é antropocêntrica. Não por outro motivo, a "inteligência" de MacIntyre é definida exclusivamente em termos do que significa ter capacidades equivalentes à linguagem humana - frequentemente envolvendo, por exemplo, a aplicação de testes de inteligência humanos a animais não humanos para aferir que estes também possuem capacidades cognitivas superiores. São os mesmos testes de inteligência que avaliam o quanto pessoas com determinadas deficiências podem ou não cumprir sua sina naturalista e teleológica de serem "plenamente humanos".
3.2. Nussbaum: abordagem das capacidades e dignidades animais
Pessoas com deficiência, animais não humanos e membros de comunidades internacionais são os sujeitos da obra seminal de Nussbaum, "Fronteiras da Justiça" (2013). Segundo Nussbaum, os princípios das Teorias de Justiça Rawlsianas são adequados unicamente para aqueles que os desenvolveram, negando-se o acesso a determinados sujeitos que não atendem aos padrões de racionalidade, capacidade moral e capacidade de comunicação. Em Rawls, basta lembrarmos as características do sujeito com direitos iguais da sociedade organizada, quais sejam: a capacidade de ter senso de justiça - compreendida como a que possibilita o entender a concepção pública de justiça característica dos termos equitativos da cooperação social, bem como sua aplicação e a ação a partir e de acordo com ela - e a capacidade de formar uma concepção de bem - entendida como a que possibilita ter, revisar e buscar atingir de modo racional uma concepção de bem (1997, p. 560-561; 2006, p. 26-34).
Essa concepção fundamenta a marginalização moral, que coloca pessoas com deficiências específicas e animais não humanos como sujeitos não endereçados diretamente nas questões levantadas pelo processo de configuração da justiça. Para corrigir esses problemas, Nussbaum substituiria a ênfase da teoria do contrato procedimental por metas de distribuição dos bens, que considerem o real atingimento de determinadas capacidades. O enfoque das capacidades que propõe "vai direto ao conteúdo do resultado, o examina, e se pergunta se ele parece compatível com uma vida de acordo com a dignidade humana (ou, mais tarde, animal)" (2013, p. 105), permitindo desvelar questões de justiça ocultas sob o viés do contrato social.
Em sua proposta, Nussbaum mantém uma outra noção de pessoalidade, que "parte da concepção aristotélica/marxista do ser humano como um ser social e político, que se realiza através de suas relações com os outros" (2013, p. 103). Para formar essa pessoalidade, deve se considerar a "racionalidade simplesmente um aspecto da animalidade" (2013, p. 195). Ainda essa racionalidade, mesmo carregando esse nome, não deverá ser, em Nussbaum, idealizada, e, certamente, não deverá ser reconhecida como o único aspecto de uma funcionalidade verdadeiramente humana. Em verdade, a razão prática constitui apenas uma de sua lista de dez capacidades básicas, mediante a qual Nussbaum busca "dar forma e conteúdo à ideia abstrata de dignidade" (2013, p. 90). Em virtude dessa racionalidade materialmente corporificada, Nussbaum entende que a dignidade humana é tão somente um tipo de dignidade animal. Assim, além de engendrar a dignidade humana na animalidade, a abordagem das capacidades "reconhece um amplo número de tipos de dignidade animal e as necessidades correspondentes para seu florescimento" (2013, p. 401).
O balizamento de cada dignidade deve ser, para Nussbaum, a "norma da espécie", a qual é avaliativa, não meramente descritiva. Assim, uma vez que uma capacidade é considerada essencial para o florescimento de uma vida digna, se consolida uma razão moral para a sociedade política oportunizar seu desenvolvimento. No caso de seres humanos, diante da ausência do atingimento do mínimo de cada capacidade, os indivíduos serão considerados incapazes de "funcionar autenticamente" como humanos: "uma vida sem nenhuma possibilidade de exercer alguma dessas capacidades (...) não é uma vida verdadeiramente humana, uma vida de acordo com a dignidade humana" (2013, p. 221-222). Por esse motivo, quando uma pessoa com determinada deficiência não atinge o mínimo de capacidades, sua existência não é um exemplo da diversidade humana, mas sim um evento lastimável (2013, p. 237). Nussbaum entende que as capacidades constantes em sua lista são realmente importantes e boas e que não ter aptidão para atingi-las é uma tragédia - em verdade, "se pudéssemos remediar a sua condição (...), se pudéssemos interferir nos seus aspectos genéticos já no útero, de modo que ela não nascesse com impedimentos tão graves, então (...) isso seria o que uma sociedade digna deveria fazer" (2013, p. 236). No caso de animais nãohumanos, sua teoria de dignidade é estendida para a relação humanos-animais, de maneira a entender que jamais se deveria negar a um ser senciente a chance de florescer como indivíduo de sua espécie.
Como crítica ao encontro animalidade-deficiência promovido por Nussbaum, destacamos dois de seus argumentos para animais e pessoas com deficiência: a dignidade humana incorporada por capacidades ideais e a funcionalidade compulsória paternalista. Cuenca entende que a teoria de Nussbaum, embora promissora em muitos aspectos, mostra-se menos inclusiva do que declara (2012, p. 109-111). Similarmente, Francis e Silvers afirmam que fixar parâmetros mínimos de capacidade pode conduzir a opressões, derivadas, tanto da identificação dos que jamais atingiram estes padrões, os anormais, que poderão vir a ser estigmatizados, quanto da secundarização na distribuição dos recursos alocados para a aquisição do grau mínimo de capacidades (Francis & Silvers, 2005, p. 42).
Contra Nussbaum, podemos argumentar que, embora oposta à idealização da racionalidade kantiana, a lista de capacidades inclui uma definição individualizada e sofisticada de algumas capacidades, como a razão prática, conceituada como "ser capaz de formar uma concepção do bem e de ocupar-se com a reflexão crítica sobre o planejamento da própria vida" (2013, p. 92). Apesar de atribuir à sua lista um aspecto prático material, Nussbaum finda por fixar padrões altos, cuja perfectibilização pode ser difícil na vida de pessoas com determinadas deficiências. A idealidade da lista se faz sentir, ainda, quando de sua adaptação para animais não humanos, especialmente no tocante à razão prática e ao engajamento com outras espécies. A razão prática, por exemplo, não possui, para a autora, um análogo no caso de animais não humanos, sendo necessário fazer uma avaliação humana (por meio de uma imaginação empática) do quanto a criatura animal não humana tem capacidade de construir objetivos e projetos, e de planejar sua vida (2013, p. 487), o que evidencia uma ética antropomórfica e um extensionismo moral acrítico (Clark, 2009, p. 602).
Para animais não humanos, sua mais problemática sugestão está na oitava capacidade - no original, Other Species - que exige a "formação gradual de um mundo interdependente, no qual todas as espécies apreciam relações cooperativas e mutuamente assistentes. (...) [E]ssa capacidade requer a suplantação gradual do natural pelo justo" (2013, p. 489). Para tanto, Nussbaum defende que a interferência humana no mundo animal não humano teria tornado os seres humanos derivativamente responsáveis pelo florescimento de outras espécies (2013, p. 458-459). Embora essa defesa pareça favorecer a conservação e a preservação ambiental, seus efeitos mais intrincados se transparecem na individualização das capacidades. A ideia de responsabilidade pelo atingimento das capacidades na vida de indivíduos não humanos exige um policiamento da natureza, a partir do qual humanos devem permanecer em vigília para impedir, por exemplo, a atividade predador-presa17.
Por fim, - e ainda como consequência paternalista - Nussbaum permitiria, diz Cuenca (2012), uma infração forte da autonomia de pessoas com deficiências "mentais". Para a autora, obrigar os cidadãos a realizar suas funcionalidades seria antiliberal (2013, p. 210-211). Contudo, em muitos casos e em muitas áreas, já que pessoas com as deficiências mentais "não podem tomar decisões sobre seus cuidados médicos, consentir em relações sexuais ou avaliar os riscos de um trabalho ou ocupação em particular, o objetivo será o funcionamento adequado, e não a capacidade. Assim, na teoria de Nussbaum, diante de pessoas que não tenham liberdade para escolher exercer ou não uma capacidade, o objetivo deve ser a funcionalidade independentemente da vontade - ou seja, a funcionalidade compulsória.
4. bordagens políticas: argumento da cidadania e da opressão
Enquanto as abordagens morais têm se esforçado para garantir que determinados sujeitos "saiam" da margem moral, galgando posições de relevância e de igual consideração, as abordagens políticas têm se devotado a entender a própria concepção de margem e de subalternidade moral como não neutra e politicamente situada. Essas abordagens entendem que "os casos marginais, em vez de desafiar o privilégio de humanos adultos neurotípicos, o reinscreve e gera comparações perversas" (Donaldson & Kymlicka, 2016, p. 174). Embora a vulnerabilidade nos marque a todos - humanos e não humanos -, dizem, existe uma diferenciação, posta pelos estudos políticos, entre a vulnerabilidade existencial e a vulnerabilidade material situada, fruto de injustiças sociais, opressão e dominação (Mackenzie et al, 2014).
É no reconhecimento do compartilhamento das condições de precariedade que nasce a literatura política sobre animalidade-deficiência pautada pelo argumento da opressão comum. Por um lado, trata-se de uma filosofia política imbricada no multiculturalismo, que propõe formas culturalmente enredadas de cidadania e de participação política (Donaldson & Kymlicka, 2014; 2016; 2017). Por outro, a literatura política do encontro animalidade-deficiência exige uma refocalização nos tratamentos degradantes experimentados por aqueles rotulados como "animais" (humanos ou não humanos) (Taylor, 2017). Nessa seção, buscamos abordar segmentadamente o argumento político da opressão comum, tanto a partir da perspectiva multiculturalista quanto da perspectiva pós-estrutural, discutindo o potencial de aliança interespécies reconhecido em ambas (Donaldson & Kymlicka, 2016, p. 175; Adams & Gruen, 2018).
4.1. Construindo a concidadania: the animal is political18
Nos Estudos de Deficiência, a ideia de cidadania se tornou um princípio organizativo central (Donaldson & Kymlicka , 2016; 2017 ). Para Donaldson e Kymlicka 19, a inclusão de pessoas com deficiência como sujeitos dignos de cidadania significou uma profunda revisão da terceira dimensão da cidadania: a agência política democrática. Até recentemente, as pessoas com deficiência eram tratadas como recipientes passivos de políticas paternalistas decididas por seus responsáveis, com pouca ou nenhuma contribuição para esse processo. Contra esse modelo mais antigo, o movimento da deficiência tem insistido nos direitos de agência, participação e consentimento, capturados no conhecido slogan "nada sobre nós sem nós". Este é o cerne da reivindicação das pessoas com deficiência de serem tratadas "como cidadãos" (2011, p. 59).
Para Donaldson e Kymlicka, do mesmo modo que pessoas com deficiência foram indevidamente não entendidas como cidadãos (2016), o motivo de se obstruir a cidadania a animais não humanos reside em um mau entendimento, pautado em dois postulados incorretos: o de que a cidadania consiste no exercício da agência política; e o de que a agência política requer capacidades cognitivamente sofisticadas para a razão e deliberação públicas. Os autores defendem que cidadania é mais do que agência política, e agência política assume outras formas além da razão pública. A cidadania tem múltiplas funções - alocar indivíduos em territórios; alocar membros em povos soberanos; e permitir diversas formas de agência política -, e todas elas são aplicáveis aos animais. Assim, não apenas é conceitualmente coerente aplicar as três funções de cidadania aos animais, mas é a única maneira de dar sentido às nossas obrigações morais Donaldson e Kymlicka, 2011, p. 60).
A revisão operada pelo reconhecimento da cidadania de pessoas com deficiência se dá através da noção de exercício da cidadania em colaboração, que fornece a assistência necessária para cada indivíduo em estado de dependência, seja essa dependência permanente ou passageira (Francis & Silvers, 2007). Para institucionalizar a colaboração, Francis e Silvers sugerem um modelo de "confiança", em vez do tradicional modelo de negociação, como artifício de derivação das articulações políticas. O modelo de confiança enfatiza que as condições facilitadoras da cooperação se desenvolvem ao longo do tempo, à medida que a atividade social evolui - do mesmo modo, são formatados lentamente os princípios de cooperação que fortalecem e sistematizam a tendência das pessoas de dependerem umas das outras (Francis & Silvers , 2005, p. 67).
A partir dessa revisão, Donaldson e Kymlicka defendem uma cidadania que desafia restrições cognitivistas pautadas em capacidades específicas - como a possibilidade de possuir e expressar uma concepção de bem e de participar como agente na vida social (Donaldson e Kymlicka, 2011, p. 103-105). Além de alocar essas capacidades em um plano materialmente situado - entendendo-as, portanto, como não ideais e como parte de um espectro de desenvolvimento -, o movimento de deficiência permitiu igualmente a reconcepção do modo como a cidadania é reconhecida e exercida - "não apenas em termos de quem pode ser concebido como um cidadão, mas também em termos de como devemos pensar sobre a cidadania"20 (2016, p. 169). Isso porque a dependência, que exige o exercício da capacidade de agência por meio do apoio, não é obstrutiva do reconhecimento das capacidades para a cidadania.
Colhendo os frutos dessa teoria, os autores argumentam que é possível defender a concidadania de animais domesticados21. Se baseando no mecanismo de "agência dependente", defendem que animais domesticados só são excluídos da agência política quando a conceituamos de uma forma racionalista, excludente não apenas de animais não humanos, mas de uma parte significativa de animais humanos. Além de excludente, essa perspectiva desvirtua o sentido da cidadania, que é o de reconhecer quem é um membro do povo em cujo nome o Estado governa, e cujo bem subjetivo deve ser considerado na determinação do interesse público e na formação das normas sociais das relações cooperativas (Donaldson & Kymlicka, 2016, p. 170). Sua proposta é, então, de uma "nova e mais inclusiva concepção de cidadania" (2011, p. 106). Não se trata de uma expansão do círculo de indivíduos acolhidos pela teoria da cidadania, mas de uma redefinição da própria teoria da cidadania para todos, independentemente das capacidades detidas e dos estados de dependência e independência. Nesse ponto, a principal pergunta dos autores é: "se indivíduos com deficiência podem ser cidadãos, ainda quando não capazes de reflexão racional, poderiam também os animais domesticados exercerem essas capacidades e, portanto, serem cidadãos?" (2011, p. 108).
É preciso que se diga que a principal intenção dos autores ao proporem a atribuição de cidadania é ultrapassar a ideia de que animais não humanos seriam "apenas indivíduos sencientes com direitos negativos universais" (Taylor, 2014, p. 144). Para os autores, há também obrigações positivas para com esses indivíduos, dado que eles são membros de distintas comunidades políticas com direitos de filiação. No caso de animais domesticados, a comunidade política relevante é uma comunidade mista humano-animal, dentro da qual são concidadãos. Já no caso de animais verdadeiramente selvagens, os autores propõem que estes formam reinos soberanos próprios, detendo, assim, direitos de viver com autonomia no seu próprio território (2011, p. 156-161). Por fim, há também uma preocupação com as obrigações devidas aos "animais liminares", que transitam entre a comunidade animal selvagem e a comunidade humana, detendo, assim, tanto aspectos de cidadania quanto de soberania - a quase-cidadania que, embora também seja uma relação de justiça, é uma mais flexível do que a existente entre concidadãos (2011, p. 210-214).
As maiores críticas do encontro animalidade-deficiência proposto por Donaldson e Kymlicka são de dois tipos: o mau entendimento do significado do abolicionismo animal e o problema das fronteiras transnacionais e interespécies quando da vindicação multicultural contra o universalismo. Quanto ao primeiro problema, Donaldson e Kymlicka entendem que o movimento abolicionista consiste na proposição de abolição de todas "as relações entre humanos e animais domesticados, e, visto que os animais domesticados raramente podem sobreviver por conta própria, isso significa a extinção das espécies domesticadas" (2011, p. 77). De acordo com os autores, para o abolicionismo, apesar de devermos ter cuidado para com animais existentes, deveríamos, concomitantemente, empregar uma política de esterilização sistemática para impedir que novos animais domesticados venham a viver. A radicação do abolicionismo se pauta, dizem, pelo fim da domesticação e pelo fim da interação entre humanos e não humanos. Essa argumentação consistiria, contudo, tanto na falsa ideia de que a dependência criada pela domesticação é essencialmente negativa, quanto na falácia do retorno ao estado natural de separação animal-humano. O próprio fato da domesticação cria um destino de interação entre humanos e não humanos. Assim, "nós precisaríamos partir da premissa que as relações contínuas entre animais domesticados e humanos são inevitáveis - nós trouxemos animais domesticados para nossa sociedade e nós devemos cidadania a eles" (2011, p. 100).
Um dos aspectos implícitos do multiculturalismo que impede uma aceitação mais ampla do abolicionismo consiste na vindicação do universal pelo particular e pelo cultural. Donaldson e Kymlicka endereçam superficialmente essa problemática, apontando que a reclamação de universalidade dos direitos animais não é o mesmo que sua imposição a outras sociedades. Isso porque "existem razões morais e práticas poderosas para limitar a intervenção coercitiva às violações mais graves e para concentrar nossos esforços no apoio às sociedades para que avancem em direção ao cumprimento dos direitos humanos e animais" (2011, p. 48). Contudo, dado que um histórico de dominação e desigualdade política internacional aponta para a questionabilidade do modelo de confiança, é preciso que nos perguntemos os limites de seu funcionamento, especialmente em contextos de assimetria - os quais existem tanto entre pessoas com deficiência e seus cuidadores e animais domesticados e seus cuidadores, quanto entre nações subalternizadas e hegemônicas. Deveríamos aceitar que chegaremos a níveis de confiança interespécies para que animais tenham seus interesses autenticamente representados, enquanto continuamos a tomar por inalcançáveis as confianças intersoberanas?
4.2. Libertação animal e da deficiência: eco-ability e eco-crip theory
Engendrando o argumento de que tanto animais não humanos como pessoas com deficiência sofrem opressões interconectadas, os estudos críticos animais de deficiência - um novo campo interseccional operado pelo encontro estrutural entre deficiência e animalidade - têm seu zênite comum no livro de Sunaura Taylor, Beasts of Burden (2017). Nele, Taylor propõe que a animalização consiste em uma estratégia de dominação tanto dos animais não humanos quanto daqueles humanos marcados por uma deficiência, motivo pelo qual a libertação só pode ser intercruzada: animal e da deficiência. Na contramão da comparação pejorativa, Taylor considera a união animalidade-deficiência como o "prefácio de uma aliança, uma potencialidade que foi dispensada tanto por aqueles que estão dentro da defesa dos animais, quanto por aqueles que estão fora dela" (Adams & Gruen, 2018, p. 22). O fundamento dessa aliança consiste na ideia de que animais não humanos e pessoas com deficiência podem firmar um local de solidariedade contra a opressão especista e capacitista (Monroe, 2018, p. 112) - seja pelo reconhecimento de uma matriz de dominação comum, seja pela consideração da semelhança entre as opressões experimentadas.
Taylor (2017) argumenta que todos os animais não humanos - desvalorizados tanto pelo especismo quanto pelo capacitismo -são crippled22 isso porque os corpos e mentes típicos da espécie que valorizam a capacidade são sempre humanos - e, em realidade, são sempre de um tipo específico de ser humano. Como afirma a autora, concepções estigmatizantes de deficiência e animalidade se entrelaçam para moldar como as pessoas com deficiência "são", por meio de discursos científicos, médicos e filosóficos que buscam classificar e conter a deficiência como desvio do protótipo humano. Simultaneamente, as instituições e discursos que subscrevem a exploração animal são literal e simbolicamente debilitantes para animais não humanos; um acerto de contas mais completo com "como os animais são", então, deve envolver a compreensão de animais não humanos como sujeitos, não apenas objetos ou figuras para os discursos de incapacidade (Scotton, 2018, p. 135)
Paralelamente a Taylor, a ecocrítica, a teoria animal crítica e os estudos críticos de deficiência avançaram, em seu entrelaçamento, duas teorias que sistematizam a análise pós-estrutural da opressão comum: a eco-ability e a eco-crip theory. Essas teorias, apesar de não se sobreporem, não estão completamente separadas, dado que a "eco-ability reflete e habilita uma cripistemologia, que consiste em uma maneira de conhecer a partir das experiências particulares e dos contextos de deficiência, priorizando a atenção à posicionalidade, aos limites e às possibilidades" (Pellow, 2017, p. xiii). O conceito de eco-ability surge no contexto da coletânea Earth, Animal, and Disability Liberation: The Rise of the Eco-Ability Movement (Nocella II et al, 2012), na qual se inicia a consolidação de um debate de interseccionalidade entre acessibilidade, privilégio capacitista e justiça ecológica. Sua intenção global é a de produzir um movimento radical de libertação a partir de uma variedade de experiências e teorias que endereçam sistemas de opressão (Nocella II et al, 2017, p. xxi).
Uma das formas de estruturação desse movimento consiste em infirmar a metodologia racionalista ocidental, que busca obliterar as experiências pessoais da derivação de conceitos políticos e morais. A isso serve a cripistemologia, consubstanciada em um processo de produção de conhecimento que situa os discursos de poder e privilégio em condições estruturais que subjazem a subvalorização das vidas. Nesse sentido, são relevantes pontos de análise as posicionalidades marginais, dado que oferecem uma perspectiva única para a exposição dos sistemas de opressão. Esse conhecimento produzido marginalmente, com aporte na experiência material situada, tem a seu favor, em relação ao conhecimento "neutro", sua produção socialmente incorporada, que expõe tanto valores capacitistas quanto mecanismos de reprodução do sofrimento (Patsavas, 2014, p. 205-206). Embora busque situar as experiências pessoais, é importante entender que a eco-ability propõe-se a fazer uma leitura de ação política menos baseada na ação individual - cuja consideração exclusiva pode criar, preconceitos externos e pressões internas nos movimentos - e mais voltada para táticas relacionais (Nocella II, 2017).
Para Taylor, to crip something não significa quebrá-lo, mas radical e criativamente investi-lo com a história política da deficiência, questionando simultaneamente os paradigmas de independência, de normalidade e de medicalização" (Taylor, 2017, p. 29-30). Fazê-lo inclui ter uma percepção positiva do que venha a ser estar crippled - um estado comungado por animais humanos e não-humanos quando os padrões de normalidade são opressores e dominadores. Para ativistas e estudiosos de deficiência, crip é uma ação: um modo de radicalmente alterar o sentido. Por isso, "nomear animais como crips é uma maneira de nos desafiar a questionar nossas ideias sobre como os corpos se movem, pensam e sentem e o que torna um corpo valioso, explorável, útil ou descartável" (2017, p. 43).
Duas críticas principais podem ser desenvolvidas ao trabalho de Taylor. A primeira delas é de que, embora seu chamado ao acolhimento da animalidade possa ser fonte de uma profícua intersecção, a aceitação de uma comparação historicamente negativa como um artifício neutro pode ser uma prática não disponível a todas as pessoas com deficiência. Nesse sentido, Carlson (2009) pergunta, porque, ao falarmos de "acolhimento da animalidade", exemplos de pessoas com deficiência surgem mais frequentemente do que pessoas sem deficiência?
Uma segunda crítica se direciona ao tema da empatia, que, em Taylor, deve superar uma simpatização humana com o sofrimento animal não humano, para oportunizar uma compreensão de desejos, vontades e necessidades (2017, p. 198). Contudo, conforme Monroe (2018), nem sempre o ato de melhor entender como se sente e o que deseja um membro de uma espécie não humana significa que seus interesses serão considerados; nesse sentido, o caso típico a ser mencionado é o de Temple Gradin - pessoa autista reconhecida mundialmente por sua capacidade de projetar matadouros "humanizados" (Davidson & Smith, 2012; Lion, 2016). Além disso, nem sempre esses desejos serão estritamente autênticos, especialmente em casos de condicionamento e treinamento, como aqueles pelos quais passam os animais de assistência - indivíduos cujo comportamento é modulado para o trabalho de assistência de pessoas com deficiência, crianças e idosos. Por esse motivo, é preciso especificar que nem sempre o entendimento interespécies terá em mente um benefício de ambas as partes - especialmente quando uma delas está encarregada de traduzir e institucionalizar os termos desse entendimento.
Por fim, vale ressaltar a crítica contundente de Taylor à eutanasia de animais não humanos com deficiência, frequentemente considerados indesejados. A autora reconhece que a narrativa que retrata animais com deficiência como "melhor mortos" é uma exposição do capacitismo e do especismo que oprime não humanos (2017, p. 34). Assim, se mostra crítica à questão da "humanização" da eutanásia de animais não humanos, cujo interesse foi despertado publicamente tão somente quando o consumo de determinados animais em condições degradantes passou a se mostrar perigoso (2017, p. 47). Em virtude da proliferação da prática da eutanásia misericordiosa em abrigos não humanos, a própria autora decidiu adotar Bailey, sua cachorra de assistência com deficiência (2017, p. 209). As razões para o sacrifício animal geralmente encontradas na literatura são a existência de doenças incuráveis ou extremamente dolorosas (Passantino et al, 2006), falta de recursos para continuar o cuidado do animal (Turner et al, 2012) e a pesquisa científica (Reilly, 2001). Para Taylor (2017), essas práticas se revelam igualmente condenáveis, visto que se expressa, por meio de seus endossos, que tipos de vidas são "vivíveis" e quais são "matáveis", sendo que argumentos de estrutura semelhante foram desenvolvidos na defesa da eugenia e da eutanásia involuntária de pessoas com deficiência.
5. Conclusão
Nesta incursão, tratamos, primeiramente, da fundamentação de teorias antiespecistas e pós-humanistas, pautadas pela comparação das características e das experiências de animais não humanos e pessoas com deficiência. Em seguida, avaliamos como a afirmação neoaristotélica de reconhecimento da animalidade humana foi interpretada para sustentar as noções de vulnerabilidade e dignidade animal, respectivamente na teoria do cuidado e na abordagem das capacidades. Por fim, abordamos o reconhecimento da cidadania e da opressão comum experimentada por pessoas com deficiência e animais não humanos, como geradores, por um lado, de uma renovação da concepção de cidadania e, por outro, da instauração da eco-ability e da cripnormatividade.
Cada linha teórica investigada mereceria teses específicas por seus próprios respectivos méritos. Buscamos apenas apresentar possibilidades teóricas de interseção, demonstrando - a partir de um entendimento panorâmico dos argumentos de comparação, de cuidado e dignidade animal, e de cidadania e opressão comum - que abordagens anticapacitistas e antiespecistas são não apenas possíveis, mas também imperativas. A afirmação revolucionária de igual importância entre a vida de todos os seres humanos - com ou sem deficiência - e todos os animais não humanos exige a construção teórica sólida, apta a responder a questões que pairam quando intentamos promover o encontro animalidade-deficiência. Para que ele ocorra, é preciso romper com as falsas dicotomias e explorar o lugar da tensão como um locus adequado para tratar do interseccional. Nesse sentido, buscamos, aqui, fornecer mais um passo em direção a uma libertação animal e da deficiência.