INTRODUÇÃO
Considerando a comercialização de medicamentos isentos de prescrição (MIP) no mercado farmacêutico, sua parcela em relação ao total de vendas difere bastante entre países e reflete a receptividade da população a esses produtos em função de determinantes culturais, históricos, regulatórios e de infraestrutura da saúde. No Brasil, destaca-se a participação dos MIP do mercado farmacêutico total, representando 29,3% das vendas. No mundo, as maiores participações dos MIP na venda total de medicamentos encontram-se na Europa Oriental: Rússia com 48,5%, Ucrânia com 43,9% e Polônia com 41,8%. Nos Estados Unidos esta parcela é de 13,6%1. MIP são medicamentos aprovados pelas autoridades sanitárias para comercialização sem necessidade de prescrição médica ou odontológica. Esses medicamentos são indicados para tratar problemas de saúde autolimitados2.
Em relação a categorização de medicamentos como isentos de prescrição, esta varia de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, a classe de MIP é regulamentada pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) n° 98, de 1º de agosto de 2016, e Instrução Normativa (IN) nº 11, as quais dispõem critérios e procedimentos para o enquadramento de medicamentos como isentos de prescrição e a lista de medicamentos isentos de prescrição (LMIP), respectivamente3,4.
Dentre os benefícios da disponibilidade e regulamentação de MIP, podem-se destacar a diminuição da sobrecarga e dos gastos do sistema de saúde, visto que para aquisição destes medicamentos não são necessárias consultas médicas ou odontológicas prévias5. Um estudo escocês mostra que, das consultas de clínica geral e de pronto-socorro avaliadas, 13,2% e 5,3%, respectivamente, foram categorizadas como problemas de saúde autolimitados adequados para o manejo em farmácias comunitárias. Aplicadas a dados nacionais, essas estimativas equivaleriam a 1,1 bilhão de euros em recursos6. Outro estudo, realizado na província de Saskatchewan, no Canadá, verificou que, após cinco anos de implementação de um programa para manejo de problemas de saúde autolimitados inserido em farmácias, do ponto de vista social, a economia cumulativa de custos foi estimada em US$ 3.482.660,00 e a taxa de retorno sobre o investimento foi estimada em 2,53 vezes7.
Além disto, a utilização de MIP, quando feita de maneira correta, é considerada automedicação responsável e faz parte da prática do autocuidado e do uso racional de medicamentos (URM). Para que a automedicação ocorra de forma efetiva e segura, é crucial que seja acompanhada da necessária informação8. Neste cenário, destaca-se a indicação farmacêutica e a prescrição farmacêutica de MIP. A indicação farmacêutica é definida como: “[...] ato profissional pelo qual o farmacêutico responsabiliza-se pela seleção de um MIP com objetivo de aliviar ou resolver um problema de saúde a pedido do paciente, ou seu encaminhamento ao médico quando o referido problema necessite de sua atenção”9. Enquanto a prescrição farmacêutica é o ato pelo qual o farmacêutico seleciona e documenta terapias farmacológicas e/ou não farmacológicas, e outras intervenções relativas ao cuidado à saúde do paciente, visando à promoção, proteção e recuperação da saúde, e à prevenção de doenças e de outros problemas de saúde10.
Assim, ressalta-se a importância do farmacêutico neste processo, visto suas competências profissionais e legais para indicar ou prescrever e orientar o paciente quanto à utilização correta de MIP10. Neste contexto, é desejável um modelo de tomada de decisão informada ou compartilhada, para apoiar a escolha de MIP em farmácias, respeitando o empoderamento do paciente na automedicação. Tal modelo é viável desde que os farmacêuticos sejam uma fonte de informação credível e competente, aberta às necessidades do paciente11.
Destaca-se que, neste âmbito, a farmácia comunitária encontra-se em uma posição estratégica, sendo ela utilizada pela população para cuidados com a saúde, e que coloca o farmacêutico em contato direto com a comunidade12. Ademais, a Associação Brasileira da Indústria de Medicamentos Isentos de Prescrição (ABIMIP) aponta que os MIP são o principal motivo de compra em farmácias, relatando que 52% das pessoas adquirem MIP ao visitarem farmácias13.
Sendo assim, o objetivo deste estudo foi descrever o perfil de MIP dispensados em farmácias comunitárias, além de inferir o perfil de conhecimentos dos farmacêuticos em relação a categorização legal desta classe de medicamentos, visto que sua postura profissional influencia no uso racional de MIP.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo. Por amostragem de conveniência, foram convidados todos os farmacêuticos responsáveis técnicos por farmácias comunitárias da região metropolitana de Belo Horizonte-MG. O convite foi realizado via e-mail, à totalidade de farmacêuticos (n=1.624), visto que a coleta de dados foi realizada em ambiente on-line e era esperado um baixo aporte de respostas14.
Para a coleta de dados, que aconteceu no período de Outubro a Dezembro de 2017, foi utilizado um questionário disponibilizado na plataforma Google Docs®, onde foi requisitado aos farmacêuticos que listassem os cinco MIP mais dispensados por eles nos últimos 12 meses, baseando-se em seu recordatório ou em consulta ao sistema eletrônico gerencial da farmácia.
Realizou-se a padronização dos MIP mais dispensados, por sua denominação genérica. Em seguida analisou-se os seguintes parâmetros:
- Nome do medicamento (denominação genérica e medicamento referência);
- Classificação anatômica terapêutico química (ATC)15.
Os dados coletados foram tabulados utilizando o software Excel e analisados por estatística descritiva. Calculou-se medidas-resumo numéricas como frequências, as quais permitiram fazer afirmações concisas e quantitativas que caracterizaram a distribuição dos valores na população.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em seres humanos (CEPES) da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) sob o número de parecer 70609017.2.0000.5545.
RESULTADOS
Foram obtidas respostas de 108 farmacêuticos responsáveis técnicos por farmácias comunitárias da região metropolitana de Belo Horizonte-MG. Os dez MIP apontados pelos farmacêuticos como mais dispensados nos últimos 12 meses estão listados na Tabela 1. Para descrever estes medicamentos, 84,2% dos farmacêuticos basearam-se em seu recordatório, enquanto que o restante consultou o sistema gerencial de vendas da farmácia.
1: Anatomical Therapeutic Chemical; N/02: sistema nervoso/analgésico; M/01: sistema músculo esquelético/produto antiinflamatório antirreumático; A/03: trato alimentar e metabolismo/medicamentos para desordens gastrointestinais funcionais; A/02: trato alimentar e metabolismo/medicamentos para desordens de acidez gastrointestinais; R/06: sistema respiratório/antihistamínicos sistêmicos; A/11: trato alimentar e metabolismo/vitaminas.
Os medicamentos mais dispensados, de acordo com o primeiro nível da classificação ATC são utilizados para sistema nervoso (5 medicamentos), seguidos dos produtos utilizados para o trato alimentar e metabolismo (2 medicamentos). Quanto à distribuição dos medicamentos por grupo terapêutico da classificação ATC (segundo nível), os mais frequentes foram os analgésicos (5 medicamentos).
Ademais, destaca-se que 38 (35,2%) farmacêuticos listaram ao menos um medicamento não considerado isento de prescrição quando responderam à questão que buscava elucidar o perfil de dispensação de MIP. Dentre 468 medicamentos citados, 54 (11,5%) representavam medicamentos sob prescrição médica e destes, 4 (0,8%) medicamentos sujeitos a controle especial (Portaria 344/98), incluindo anti-hipertensivos, anti-inflamatórios, antibióticos e antidepressivos.
DISCUSSÃO
O elevado uso de analgésicos na prática da automedicação, como o identificado, reflete a elevada prevalência de dor na população em geral, motivada por tensão, situação estressante ou demanda física, prejudicando a qualidade de vida das pessoas16. E ainda, neste contexto, é importante ressaltar que o uso abusivo de analgésicos pode levar à cronificação da cefaleia17.
Além disso, não se pode menosprezar as possíveis intoxicações e efeitos adversos que MIP podem causar a seus usuários. No caso dos analgésicos e anti-inflamatórios não esteroidais (AINES), pode-se citar, entre outros, os distúrbios gastrointestinais, cardiovasculares, reações alérgicas e efeitos renais18. O estudo de Paula, Bochner e Montilla (2012), avaliando as internações de idosos por intoxicação e efeito adverso a medicamentos no Brasil, mostrou que os analgésicos, antitérmicos e antirreumáticos não opiáceos relacionaram-se a 37,0% das internações por autointoxicação, ocuparam a quarta posição nas internações de acordo com essas situações e foram os mais relacionados aos casos de traumatismo. Por isso, sugere-se que que os farmacêuticos atualizem-se em relação a esta classe de medicamentos e suas indicações, precauções e condições de uso19.
Ainda, os dados indicam que uma quantidade significativa de farmacêuticos não conhece adequadamente a legislação brasileira relacionada aos MIP, tendo citado medicamentos sob prescrição médica quando questionados sobre a dispensação de MIP. Este achado corrobora outros estudos realizados com farmacêuticos comunitários brasileiros, nos quais se evidenciou lacunas importantes no conhecimento desses profissionais para a dispensação de medicamentos e a livre comercialização de medicamentos que requerem prescrição, sem a apresentação do respectivo receituário20.
Destaca-se que, para realizar o manejo de problemas de saúde autolimitados e a dispensação de medicamentos, é imprescindível que o farmacêutico conheça e obedeça a legislação relacionada a esses serviços clínicos. Além do aspecto Legal, dispensar ou prescrever medicamentos que exigem apresentação ou retenção da prescrição médica ou odontológica sem a apresentação da mesma influencia diretamente em vários aspectos clínicos importantes, como aumento do risco de desenvolvimento de resistência bacteriana aos antimicrobianos, ocorrência de reações adversas a medicamentos, mascaramento de sintomas de problemas de saúde complexos e retardamento da procura por atendimento médico8.
Assim, é importante a implementação dos preceitos estabelecidos pelas novas diretrizes curriculares brasileiras21 pelos cursos de graduação em Farmácia, as quais apresentam enfoque para o desenvolvimento de competências clínicas, além da importância de programas de educação continuada neste âmbito, para profissionais já inseridos no mercado, visto que o desenvolvimento de tais competências é imprescindível para satisfazer as defasagens detectadas.
CONCLUSÃO
Os dados encontrados indicam uma lacuna no conhecimento de farmacêuticos comunitários em relação a categorização legal de MIP, a qual pode acarretar em implicações legais e em resultados clínicos negativos. Por isso, destaca-se a importância do desenvolvimento de competências clínicas para a atuação comunitária, sendo que a inserção do farmacêutico na equipe de saúde e a provisão de serviços clínicos à comunidade podem agregar um novo valor ao uso de medicamentos e contribuir efetivamente para seu uso racional no Brasil, principalmente em relação a automedicação e utilização de MIP.
Este trabalho possui como limitações a coleta de dados baseada em autorrelato e recordatório dos participantes, além do reduzido tamanho amostral. Por outro lado, destaca-se a importância da realização deste estudo, o qual descreve importante gap de conhecimentos de farmacêuticos comunitários da região metropolitana de Belo Horizonte em relação aos MIP, sendo que pesquisas neste âmbito são raras até o momento.