INTRODUÇÃO
A Qualidade de Vida Relacionada a Saúde (QVRS) reflete a repercussão da doença ou do seu tratamento nos sentimentos subjetivos dos pacientes sobre seu bem-estar físico, mental, espiritual, emocional, social e funcional. A avaliação da QVRS tem sido cada vez mais usada e vista como uma medida importante para pessoas em Tratamento Renal Substitutivo (TRS), pois o objetivo do tratamento, além da melhoria da sobrevivência, é a obtenção de melhor qualidade de vida1,2.
Um estudo realizado na Índia3 com pessoas em tratamento hemodialítico, evidenciou que os participantes e seus cuidadores davam mais importância aos momentos de lazer, como a possibilidade de viajar e o período sem hemodiálise, demonstrando a relevância de ter boa qualidade de vida. O resultado do estudo em tela, exibe a importância de ter uma renda que possa proporcionar esses períodos, ao encontrar que, os participantes com baixa renda apresentaram piores escores na subescala de avaliação mental, carga e de efeitos da doença de qualidade de vida3.
A baixa renda como fator prejudicial a QVRS foi identificada em um estudo brasileiro4, que avaliou a QVRS de pessoas com Doença Renal Crônica (DRC) em tratamento hemodialítico e obteve como resultado que a maioria dos participantes (2/3) possuía renda igual ou inferior a 1 (um) salário-mínimo, estando esse fator relacionado à piora da QVRS. Os resultados apontaram também, que um dos principais fatores que favorecem a redução da renda após o adoecimento, é a necessidade de afastamento das atividades remuneradas, imposto pela DRC e pelo tratamento hemodialítico.
Um estudo realizado na Austrália5 que quantificou os impactos financeiros e as despesas de pacientes adultos rurais com DRC, observou que 78% das famílias participantes da pesquisa, enfrentaram dificuldades para custear o tratamento, sendo que 54% declararam catástrofe financeira, enfatizando que as finanças podem se configurar como uma preocupação adicional.
Embora o paciente com DRC em tratamento de hemodiálise tenha atendimento especializado em serviços públicos e gratuitos no Brasil, ainda assim, podem existir custos para seu autocuidado, como a adoção de uma alimentação diferenciada e restrita e deslocamento para a unidade hospitalar em que faz acompanhamento. Essas despesas, ao serem associadas à possível perda de trabalho e diminuição da renda familiar, podem gerar condições que influenciam na QVRS6 e assim evidenciar um evento adverso de doenças onerosas, denominado Toxicidade Financeira.
A toxicidade financeira é um impacto nocivo experimentado pelos pacientes que não têm condições financeiras de pagar pelo tratamento e arcar com as despesas extras inerentes à sua condição. A expressão, inclui o encargo dos custos com a saúde e questões não relacionadas ao tratamento, mas que podem influenciá-lo, financeiramente, tornando-se uma barreira aos cuidados médicos necessários7. A existência de estudos sobre a toxicidade financeira na DRC, ainda é incipiente.
Vários estudos têm associado a toxicidade financeira à pior QVRS8)-(10 pois, na tentativa de economizar, os pacientes não aderem à prescrição médica, deixam de realizar procedimentos importantes e, com isso, podem ter seu quadro clinico alterado11,12. Destarte, o objetivo deste estudo é avaliar a qualidade e vida relacionada a saúde e a relação com a toxicidade financeira em pessoas com doença renal crônica em tratamento hemodialítico.
MATERIAL E MÉTODO
Estudo quantitativo, observacional, descritivo e transversal, extraído de dissertação de mestrado da Universidade Federal do Paraná, cuja coleta de dados ocorreu de fevereiro a maio de 2022, em quatro clínicas especializadas em diálise credenciada ao Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade de Curitiba - PR e região metropolitana. As clínicas são referência em terapias renais substitutivas na região de Curitiba e atuam na prevenção e tratamento das doenças renais desde o início da década de 80. Desenvolvem atividades nas áreas de nefrologia, hemodiálise, diálise peritoneal, transplante renal, nutrição e hipertensão arterial.
A amostra foi calculada com a ajuda de um profissional estatístico por meio do software Epi Info 7, a partir do número de pacientes atendidos nas unidades (Instituto do Rim do Paraná= 156; Clínica de Doenças Renais São José dos Pinhais= 173; Unidade Renal do Portão= 151, Clínica de Doenças Renais Colombo= 117, totalizando 597 indivíduos) e considerando uma frequência esperada do evento de interesse de 50%, (que é o pior cenário considerado para amostragem) margem de erro de 5% e um nível de confiança de 95%. O processo de amostragem foi estratificado com participação voluntária.
O recrutamento foi realizado por conveniência, sendo convidados todos os elegíveis que estivessem no local no momento da coleta de dados. Os critérios de inclusão foram: diagnostico de DRC e estar em tratamento hemodialítico; ter idade igual ou superior a 18 anos. Foram excluídos os pacientes com DRC em hemodiálise com registro no prontuário de distúrbios na comunicação e/ ou algum problema mental.
Para realização do estudo, foram utilizados um formulário sociodemográfico e clínico e os questionários COmprehesive Score for Financial Toxicity (COST) e o Kidney Disease Quality Of Life - Short Form (KDQOL-SFTM 1.6).
O COST é um questionário elaborado pelo grupo norte americano Functional Assessment of Chronic Illness Therapy (FACIT) que mensura a toxicidade financeira por meio de 12 questões. As respostas são em escala de likert de 5 pontos, sendo 0 - nenhum pouco e 4 - muitíssimo e a pontuação pode variar de 0-44 sendo que quanto maior, melhor o bem-estar financeiro e menor a toxicidade financeira.
O KDQOL-SFTM 1.6 é um questionário que tem por objetivo avaliar a QVRS na DRC em pessoas que realizam algum programa dialítico. Possui oito dimensões, sendo: funcionamento físico (10 itens), limitações causadas por problemas da saúde física (quatro itens), limitações causadas por problemas da saúde emocional (três itens), funcionamento social (dois itens), saúde mental (cinco itens), dor (dois itens), vitalidade (energia/fadiga); (quatro itens), percepções da saúde geral (cinco itens) e estado de saúde atual comparado com o ano anterior (um item). Estes itens do SF-36 podem ser resumidos em SF-12 composto físico e composto mental13,14.
Além do SF-36, o KDQOL-SFTM 1.6 possui itens específicos da doença renal com 11 dimensões - sintomas/problemas (12 itens), efeitos da doença renal sobre a vida diária (oito itens), sobrecarga imposta pela doença renal (quatro itens), condição de trabalho (dois itens), função cognitiva (três itens), qualidade das interações sociais (três itens), função sexual (dois itens) e sono (quatro itens); inclui também três escalas adicionais: suporte social (dois itens), estímulo da equipe da diálise (dois itens) e satisfação do paciente (um item)13,14. O KDQOL-SFTM 1.6 apresenta escore final variando de 0 a 100, no qual zero corresponde a pior QVRS. As dimensões podem ser avaliadas separadamente, não existindo um valor único resultante da avaliação global da QVRS, mas sim médias de valores para as dimensões, o que pode identificar os verdadeiros problemas relacionados à saúde dos participantes13,14. Foi considerado neste estudo uma QVRS ruim quando apresentado escores abaixo de 5015.
A análise dos dados clínicos ocorreu por técnicas de estatística descritiva, tendo sido contabilizado o número de indivíduos por característica, bem como a suas respectivas proporções. Para o cálculo das pontuações do instrumento KDQOL-SFTM 1.3, foi utilizado a planilha com programa de análise disponibilizada pelo KDQOL-SF Working Group no site da organização de pesquisa RAND Corporation.
Para a correlação entre os escores da toxicidade financeira do instrumento COST e os escores da QVRS do instrumento KDQOL-SFTM 1.3, foi realizado a correlação de Pearson com correlação estatisticamente significativa positiva aqueles com valor de p<0,0001.
Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, sob parecer nº 5.210.448.
RESULTADOS
A amostra foi constituída por 214 pessoas com DRC em tratamento hemodialítico. Com relação aos dados sociodemográficos e clínicos, 117 pessoas são do sexo masculino, com tempo de escolaridade inferior a nove anos e 122 eram aposentados e /ou pensionistas, 12 e 128 declararam realizar hemodiálise há 1-5 anos, e 203 faziam hemodiálise três vezes na semana. Em relação a educação formal 166 tem menos de 12 anos de escolaridade.
Quanto aos aspectos relativos a hábitos de vida somente 9 consomem cigarros, 58 são ex-tabagistas e 127 não fumam, em relação ao consumo de álcool somente nove mantem o hábito de maneira moderada e mais que moderada.
Com relação à QVRS dos participantes, de acordo com os resultados apresentados na tabela 2, ao avaliar a média das dimensões do questionário KDQOL-SFTM 1.3-SFTM verificou-se que as dimensões que obtiveram as menores médias, em ordem crescente, foram: “Saúde geral” (10,75), “Limitações das funções físicas” (29,93), “Sobrecarga da doença renal” (37,76) e “Situação de trabalho” (39,49).
Em contrapartida, obtiveram as maiores pontuações as dimensões: “Função Cognitiva” (87,89), “Função sexual” (87,14), “Suporte Social” (84,19) e “Estímulo por parte da equipe de diálise’’ (83,35). Ressalta-se que a dimensão “Função sexual” foi respondida por apenas 35 pessoas. Foi possível observar que, do total de dimensões do questionário, seis tiveram média abaixo de 50, podendo ser consideradas com escore ruim de QVRS. Além disso, foi verificado que o composto físico (34,49) e mental (49,19), também, apresentaram média de escore ruim.
Na matriz de correlação, o composto de saúde mental demonstrou ser fortemente correlacionado com bem-estar emocional (R=0,82, valor-p<0,0001) e limitações da função emocional (R=0,83, valor-p<0,0001). Do mesmo modo, o composto de saúde física apresentou forte correlação com o bem-estar físico (R=0,78, valor-p<0,0001) e limitações da função física (R=0,74, valor-p<0,0001) (figura 1).
Foi observado correlação com a condição de trabalho e índice de satisfação com relação positiva e fortemente correlacionadas (R=0,82, valor-p<0,0001); suporte social e função sexual apresentaram uma correlação moderada e positiva (R=0,62, valor-p<0,0001), função sexual está positivamente correlacionada com o sono (R=0,79, valor-p<0,0001) e com sintomas/problemas (R=0,79, valor-p<0,0001).
DISCUSSÃO
Este estudo avaliou a QVRS e a relação com a toxicidade financeira de pessoas com doença renal crônica em tratamento hemodialítico em quatro unidades de atendimento ao paciente renal no município de Curitiba e região metropolitana.
Em se tratando dos dados sociodemográficos, foi possível observar semelhança entre os resultados encontrados e outro estudo brasileiro16, realizado em Santa Catarina com pessoas em hemodiálise, no qual foi encontrado predomínio do sexo masculino 52,8%, idade variando de 20 a 86 anos, sendo que 41,42% dos indivíduos tinham entre 40 e 59 anos e 39,99% com mais de 60 anos, 52,85% casados, grande parte eram de baixa escolaridade e aposentados.
Perfil similar também foi encontrado no estudo realizado no interior do Paraná, em que a maior parte (54,87%) dos indivíduos analisados eram do sexo masculino, 26,15% apresentaram faixa etária entre 61 a 70 anos, 63,10% se declararam casados, 63,58% possuem grau de escolaridade 1º grau incompleto17.
Os últimos censos realizados nos centros de tratamento dialítico brasileiros, descrevem uma prevalência masculina entre os pacientes, o que pode sugerir hábitos inadequados de vida, uma menor aderência aos cuidados preventivos de saúde, menor busca por serviços de saúde, ocorrendo na maioria das vezes quando as morbidades já estão em níveis avançados18,19.
Ao avaliar a QVRS dos participantes deste estudo, foi possível observar um número expressivo de média das dimensões abaixo de 50, ou seja, classificadas como QVRS ruim de acordo com o escore de cada dimensão, sendo as mais afetadas a Saúde Geral e as Limitações da Função Física.
Um estudo20 realizado no estado do Mato Grosso-Brasil, com pessoas acima de 18 anos de idade com DRC em hemodiálise, ao avaliar a QVRS por meio do instrumento KDQOL-SFTM 1.3, obteve dado similar, pois a média mais baixa foi, da mesma forma, nos aspectos físicos, sendo esses um dos mais afetados (44,16), assim também, como no estudo conduzido em Ponta Grossa- PR21, entre as dimensões com menor escore, foram o “Função cognitiva” (6,2) e “Limitações por aspectos físicos” (49,5).
Em outro estudo realizado na região noroeste do Paraná22 com pessoas com DRC e idade acima de 18 anos, igualmente, obteve-se uma menor pontuação média na dimensão “Desempenho físico” (33,67 pontos), sendo essa pontuação a única com mediana de zero.
De acordo com esses estudos que avaliaram a QVRS da população com DRC em hemodiálise, torna-se possível evidenciar que o aspecto físico tem sido uma das dimensões mais afetadas nessa população. Essa baixa pontuação no desempenho físico indica existência de limitações físicas, tal como existência de danos que prejudicam o desenvolvimento de atividades diárias, que pode influenciar na capacidade de execução de atividades que fazia antes e na permanência ativa no trabalho22.
Reiterando essa questão, o estudo Indiano3 que investigou a correlação entre a qualidade de vida relacionada à saúde com as variáveis socioeconômicas e clínicas de pessoas com DRC, encontrou que as medidas de qualidade de vida foram associadas a resultados adversos, como maior risco de eventos cardiovasculares e morte. O estudo ainda reiterou a necessidade de uma abordagem mais inclusiva no manejo da DRC com atenção às questões sociais que são determinantes para a incorporação e fortalecimento do cuidado ao doente renal crônico.
A dimensão “Situação de trabalho”, neste estudo, também, apresentou escore ruim. Ter a dimensão “Situação de trabalho” afetada pode estar relacionada à dificuldade em manter seu vínculo empregatício, após diagnóstico da DRC e início do tratamento, devido ao tempo necessário para realização da hemodiálise e implicações nas suas atividades do trabalho. Esse mesmo resultado foi encontrado no estudo realizado, em Uberaba-MG, com adultos com DRC em tratamento hemodialítico, que evidenciou como dimensão mais afetada, entre os participantes, a “Situação de trabalho” (8,82%), como também, a dimensão “limitação física” (26,47%)23.
Quando avaliado a relação entre as medidas COST e QVRS, foi observado neste estudo que um maior grau de toxicidade financeira foi associado a uma pior QVRS. Dado semelhante foi encontrado no estudo realizado em pessoas com câncer nos EUA24, em que um menor impacto da toxicidade financeira foi associado a melhor QVRS.
Neste estudo identificou-se correlação significativa entre a toxicidade financeira e a saúde mental, indicando que quando aumenta o escore de toxicidade financeira, aumenta o escore do composto de saúde mental. Dado similar foi encontrado, o estudo norte americano24 em que o coeficiente de correlação de Pearson entre COST e o bem-estar mental, também, foi significativo (r=0,45; P<0,0001). Esse resultado direciona para um aspecto do cuidado de enfermagem para além das questões físicas.
De acordo com esses dados, pode-se observar que a toxicidade financeira pode estar correlacionada à piora da saúde mental, como evidenciado no estudo25 que demonstrou que o fato de apresentar algum grau de toxicidade financeira, foi associado a piores resultados nas dimensões mental e físico. Além disso, em comparação com pessoas sem toxicidade financeira, aqueles com algum nível de toxicidade tiveram piores pontuações nos componentes físico e mental.
Observou-se, neste estudo, associação entre a toxicidade financeira e os impactos da doença renal. Dados da relação entre a toxicidade financeira e efeitos relacionados à doença foi verificado por meio da força das associações entre toxicidade financeira e interferência da dor (r= -27), toxicidade financeira e funcionamento físico (r= -32), e toxicidade financeira e funcionamento social (r= -0,31) considerados moderadamente fortes e com significância estatística. Portanto, enfatiza-se que embora a toxicidade financeira seja um conceito recente, os estudos já apontam para a importância da atenção do enfermeiro para essa mensuração devido ao impacto que ela traz para a QVRS.
Além de despertar para importância do impacto gerado pela DRC e hemodiálise na QVRS da população, torna-se relevante atentar para a existência da toxicidade financeira que, somado com a doença e seu tratamento, pode piorar a QVRS. Portanto, os resultados deste estudo apontam para a necessidade de atuação dos profissionais da saúde no conhecimento do impacto da toxicidade financeira tanto na QVRS, quanto no bem-estar financeiro das pessoas com DRC, com intuito de propiciar e incentivar ações relacionadas à busca de intervenções para minimizar esse efeito, com isso, melhorar a QVRS.
As limitações encontradas neste estudo foram relacionadas a escassez de estudos publicados com a utilização do COST e de instrumentos de QVRS na doença renal. Outra limitação foi o constrangimento dos participantes em responder à pergunta sobre sexualidade e a utilização do Coeficiente de Correlação de Pearson com a pressuposição de normalidade dos dados.
A partir dos resultados encontrados pode-se afirmar que os participantes tiveram comprometimento da QVRS, havendo correlação positiva com a toxicidade financeira, ou seja, evidenciou-se que um pior escore COST foi associado a um número maior de dimensões prejudicadas da QVRS. Houve correlação significativa entre a toxicidade financeira e a dimensão saúde mental e a dimensão efeitos da doença renal.
Este é um dos primeiros estudos, que se tem conhecimento, aplicando o instrumento COST recém traduzido para o português do Brasil, na população com DRC em tratamento hemodialítico, e os resultados sugerem que essa população apresenta níveis de toxicidade financeira que se relacionam negativamente com a QVRS, necessitando ser mais explorado em pesquisas que comparem o impacto da DRC em diferentes serviços e grupos populacionais.
As contribuições para a prática de enfermagem referem-se a necessidade de incentivar os profissionais a mensurar a qualidade de vida e aspectos ligados a toxicidade financeira, inserir o conteúdo na formação do enfermeiro fornecendo subsídios capazes de propiciar ações para minimizar os danos causados por estas variáveis nos doentes renais crônicos e com outras doenças crônicas, além de promover redes de apoio a esses pacientes a partir da identificação do diagnóstico.