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Enfermería Global

versión On-line ISSN 1695-6141

Enferm. glob. vol.16 no.47 Murcia jul. 2017  Epub 01-Jul-2017

https://dx.doi.org/10.6018/eglobal.16.3.246111 

Originales

Características do trabalho e estratégias de cuidado em saúde mental com o usuário de crack

Gustavo Costa-de-Oliveira1  , Cintia Nasi2  , Annie Jeanninne Bisso-Lacchini2  , Jacó Fernando Schneider3  , Leandro Barbosa-de-Pinho4 

1Enfermeiro, Mestre em Enfermagem. Discente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nível Doutorado. Porto Alegre, RS, Brasil.

2Doutora em Enfermagem. Professor Adjunto Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Porto Alegre, RS, Brasil.

3Doutor em Enfermagem. Professor Titular da Escola de Enfermagem da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil.

4Doutor em Enfermagem Psiquiátrica. Professor Adjunto da Escola de Enfermagem da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil.

RESUMO

Objetivo

Conhecer características do trabalho e estratégias de cuidado em saúde mental com o usuário de crack, a partir do cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas (CAPS AD).

Método

Estudo qualitativo, avaliativo, tipo estudo de caso, desenvolvido em um CAPS AD, Rio Grande do Sul, Brasil. Utilizou-se, como referencial teórico-metodológico, a Avaliação de Quarta Geração. A coleta de dados ocorreu de janeiro a março de 2013. Realizaram-se 36 entrevistas com trabalhadores, usuários, familiares e gestores.

Resultados

O cotidiano do serviço propicia espaços flexíveis que estimulam a criatividade e a centralidade no usuário. Prioriza o vínculo e a escuta para fortalecer a relação com o usuário e enfraquecer sua relação com a droga.

Considerações finais

Considera-se a importância dos serviços substitutivos na consolidação de estratégias de cuidado diversificadas, que possam ressignificar a centralidade da droga e resgatar o protagonismo do usuário.

Palavras chave Saúde mental; serviços de saúde; transtornos relacionados ao uso de substâncias; enfermagem

INTRODUÇÃO

As tendências contemporâneas de cuidado no campo da saúde vêm trazendo a necessidade de desenvolver novos marcos conceituais e abordagens que possibilitem refletir sobre o modo de viver das pessoas que, em algum momento, vivenciam problemas de saúde1. É nesse contexto também que se visualiza a inserção da prática em saúde mental, como um campo aberto a novos paradigmas e que não está atrelada a visões de mundo fechadas e absolutas.

Nessa perspectiva, compreende-se que os serviços de saúde mental, dentre esses os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS AD), nascem com a possibilidade de diversificar a prática do trabalhador. É sabido que, como serviços estratégicos do processo de reforma psiquiátrica brasileira, eles têm uma abertura para a incorporação de novas tecnologias de cuidado usuário-centradas. Isso quer dizer que é preciso investir num cuidado que vá além da doença, compreendendo a vida do indivíduo por inteira, pois a doença é apenas uma parcela disso.

No caso do uso de drogas, em especial o uso do crack, o cuidado usuário-centrado parece mais relevante e necessário. As razões para isso apontam para uma maior tendência epidemiológica para o consumo2)(3, além de questões singulares, relacionadas à própria composição orgânica da droga, que causa maior dependência física e química4)(5.

Em relação aos aspectos epidemiológicos, o crack vem sendo considerado um dos maiores problemas atuais de saúde pública. Em 2012, a partir de um levantamento nacional sobre a droga, estimou-se que houve um aumento das taxas de consumo de 0,5% para 1,1%. Em 2015, a partir de resultados presentes no Relatório Mundial sobre o Uso de Drogas, publicado pela Organização das Nações Unidas, notou-se aumento no consumo de cocaína e seus derivados, principalmente em países da América do Sul, uma vez que a oferta de matéria-prima parece mais elevada do que em países considerados desenvolvidos2)(3.

O crack não traz apenas repercussões para o campo da saúde pública. É uma droga que causa forte dependência, trazendo desdobramentos significativos no cotidiano de vida dos usuários e de seus familiares. Usuários de crack, em geral, são mais agressivos4 e possuem ou desenvolvem frágeis relações familiares6. São em geral homens jovens, com baixa escolaridade e em situação social vulnerável, fazendo com que se aproximem do tráfico4. No entanto, também vem sendo apontado um aumento no consumo da droga por mulheres, com iguais relações familiares precárias e maiores tendências à prostituição e desenvolvimento de doenças sexualmente transmissíveis7)(8.

Diante disso, entende-se que a formação do vínculo com o usuário é primordial para compreender a relação estabelecida com a droga, pois se sabe que é uma relação forte, de difícil rompimento e mudança. A despeito dos riscos associados ao uso da droga, do contexto social em que o usuário está inserido e dos relatórios epidemiológicos que vêm citando a importância de trabalhar a questão no âmbito da saúde pública, entende-se que toda essa realidade impõe aos serviços de saúde um novo desafio, envolvendo o funcionamento e a organização das práticas.

Assim, a necessidade de espaços que propiciem a criatividade, liberdade e autonomia dos trabalhadores para a organização do trabalho em saúde mental direcionado ao usuário de crack, bem como a constituição de práticas que permitam a este usuário ser protagonista de sua terapêutica, por si só justificam a importância de se discutir o objeto deste estudo. Se o foco do cuidado é transformar a relação do usuário com a droga, é preciso conhecer as características do trabalho e as estratégias de cuidado com esse usuário, para que se inverta a centralidade do usuário na substância.

Nesse sentido, tem-se como objetivo conhecer as características do trabalho e estratégias de cuidado com o usuário de crack, a partir do cotidiano de um CAPS AD.

MÉTODO

Trata-se de um recorte da pesquisa “Avaliação qualitativa da rede de serviços em saúde mental para atendimento a usuários de crack - ViaREDE”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Ministério da Saúde (MS). Foi desenvolvida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Universidade Federal de Pelotas. Trata-se de uma pesquisa de natureza avaliativa, do tipo estudo de caso, desenvolvida em um município do Rio Grande do Sul, Brasil. Foi utilizada a Avaliação de Quarta Geração como referencial teórico-metodológico do estudo9.

A Avaliação de Quarta Geração propõe uma avaliação construtivista e responsiva. O termo responsivo é utilizado para designar um caminho diferente de focalizar a avaliação, delimitado por meio de um processo interativo e de negociação que envolve grupos de interesse. Isso quer dizer que o processo avaliativo leva em consideração aquilo que esses grupos de interesse constroem sobre o objeto avaliado, ou seja, a avaliação apreende o cotidiano, o interesse desses grupos nesse processo e os sentidos que dão a sua prática9.

Na pesquisa ViaREDE, os dados foram coletados por meio de observação e de entrevistas semiestruturadas com os grupos de interesse - equipe, usuários, familiares e gestores da saúde mental do município, no período de janeiro a março de 2013.

As observações de campo totalizaram 189 horas, sendo registradas em um diário de campo. Em relação às entrevistas, ao todo foram realizadas 36, sendo oito delas com profissionais da equipe do CAPS AD, dez com usuários desse serviço de saúde, onze com familiares de usuários do CAPS AD e sete com gestores da saúde mental.

Neste estudo, foram tratados os resultados encontrados sobre as características do trabalho e as estratégias de cuidado em saúde mental com o usuário de crack. As informações dos entrevistados foram codificadas como “E”, quando o entrevistado era membro da equipe,“G” quando se refere a gestor e “U” quando o entrevistado foi o usuário. Essa codificação também seguiu a ordem do entrevistado no processo avaliativo. Por exemplo, quando nos referimos a U3, significa que foi o terceiro usuário entrevistado.

O critério de inclusão dos profissionais e dos gestores foi trabalharem no CAPS AD e na gestão de saúde mental do município há pelo menos seis meses. Quanto aos usuários, os critérios foram o de frequentarem o CAPS AD ou de já terem frequentado outro serviço da rede de saúde mental em função do uso de crack; que se dispusessem voluntariamente a participar da pesquisa e que não estivessem sob condições clínicas que prejudicassem sua entrevista.

Desse modo, o respondente inicial R1 participa de uma entrevista aberta para determinar uma construção inicial em relação ao foco da pesquisa. É questionado e convidado a construir, descrever e comentar. Ao término da entrevista, solicita-se ao respondente que indique outro respondente, chamado R2.

Os temas centrais, concepções, ideias, valores, preocupações e questões propostas por R1 são analisados pelo pesquisador, formulando uma construção designada C1. Entrevista-se o segundo respondente (R2) e, caso alguma construção abordada por R1 não seja contemplada por R2, convida-se R2 a comentá-la. A entrevista de R2 produz informações de R2 e uma crítica da construção de R1. O pesquisador conclui a segunda análise resultando em C2, uma construção mais sofisticada e informada, e assim sucessivamente até finalizar a coleta de dados.

Após a coleta de dados e a organização das construções de cada grupo, realizou-se a etapa da negociação. Foram reunidos os entrevistados, sendo apresentado o resultado provisório da análise dos dados, para que pudessem ter acesso à totalidade das informações e tivessem a oportunidade de modificá-las ou de afirmar a sua credibilidade9. A partir da negociação, os pesquisadores procederam à etapa final de análise dos dados, em que questões surgidas foram reagrupadas, permitindo a construção de categorias temáticas.

Os resultados deste artigo foram organizados a partir da categoria temática “características do trabalho em saúde mental com o usuário de crack”. Nessa categoria, os grupos de interesse avaliaram o potencial inovador e criativo do trabalho em saúde mental, cujo foco está no uso de estratégias relacionadas ao vínculo, ao acolhimento e ao respeito às demandas dos sujeitos.

O projeto foi submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da UFRGS. Foi também, por solicitação do referido Comitê, avaliado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde, recebendo parecer favorável à sua execução sob o Nº 337/2012.

Foi, também, garantido o anonimato dos participantes do estudo e respeitados todos os preceitos ético-legais que regem a pesquisa com seres humanos, como é preconizado pelo Ministério da Saúde (Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde), assim como foi respeitada a decisão de desistência por parte dos pesquisados, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Uma das primeiras questões trazidas pelos grupos de interesse em relação às características do trabalho em saúde mental diz respeito ao potencial inovador e criativo do trabalho, uma vez que eles percebem que as ações no serviço atingem às necessidades e expectativas dos usuários. Para eles, são ações construídas em espaços flexíveis que propiciam e estimulam essa criatividade, a liberdade e autonomia:

[...] aqui e também no próprio CAPS tem uma linha que a gente segue, que é uma linha não rígida, é algo mais flexível, aquela coisa de trabalhar dentro do possível, da necessidade. (E2)

A gestão busca agregar trabalhadores que desejam atuar com as situações envolvendo o consumo de substâncias, considerando as suas ideias, liberdade, criatividade e autonomia para atuar no serviço, bem como pensar e interferir na organização do trabalho e na potencialização e criação de novos saberes. (G1)

Os depoimentos demonstram uma preocupação com a liberdade atribuída ao trabalhador em relação ao seu trabalho, permitindo que crie, pense, repense, acerte ou erre, sem represálias. Isso parece ser essencial para que este profissional possa interagir com o usuário de crack, compreendendo suas demandas, seus desejos e expectativas.

Esse parece ser também o compromisso do gestor quando da seleção de trabalhadores. Segundo G1, o trabalhador em saúde mental, principalmente no campo de álcool e outras drogas, precisa ter consciência da complexidade de trabalhar com usuários de substâncias psicoativas e, no ambiente de trabalho, de ser criativo em suas intervenções em saúde.

Desse modo, a inovação aponta para a produção de um cuidado em saúde mental que vislumbra a potencialização da ação e o combate à segregação do cuidado em saúde, ainda muito presentes no contexto da saúde mental. Há, portanto, urgência por produção de novas respostas, uma nova atitude para com as pessoas que usam crack, o que exige, sobretudo, uma maior capacidade de pactuação e acolhimento. É preciso produzir nos dispositivos de saúde mental novas formas de encontros, interessadas, sobretudo, na produção de vida10.

Frente a isso, ações em saúde que segmentam devem ser substituídas por um cuidado que compreenda que as necessidades do usuário de crack são complexas. Isso quer dizer que o usuário de crack necessita do cuidado em saúde de maneira ampla, que disponibilize tratamento psicossocial e medicamentoso diversificado:

Não funciona tu largar, se tu cuidar de uma parte e não cuidar a outra [...] (E3)

[...] falando da questão medicamentosa, claro eu não gosto muito deste conceito de que psiquiatra só dá remédio [...] mas eu acho que a questão de medicação tu tem que ter no mínimo uma de cada classe para fazer as opções. (E8)

A partir das falas, observa-se que a habilidade inovadora de cuidar perpassa também conhecer e saber sofisticar a clínica. No caso de E8, por exemplo, parece importante deixar o trabalhador escolher os medicamentos para o tratamento dos sintomas apresentados pelo usuário, pois assim também se pode ampliar não somente a oferta, mas também o olhar que se tem para a necessidade do outro.

Durante muito tempo, a saúde mental constituiu um campo de exclusão. Entretanto, discussões sobre a cronificação dos pacientes, o sistema asilar, o modelo biomédico, a não reinserção social, a violação dos direitos humanos e de cidadania fizeram surgir iniciativas políticas, científicas e sociais que pudessem mudar esse quadro. Essas iniciativas trouxeram à tona novas maneiras de trabalhar na recuperação do usuário, e, agindo assim, repensa-se na forma de organizar os serviços, para longe das amarras da doença e da exclusão11.

É nesse sentido que se acredita na potência do trabalho em saúde mental em cenários e espaço que possibilitem ao trabalhador o uso diversificado de suas ferramentas, ou seja, que ele possa negociar, debater ou discutir com o usuário e a equipe a melhor maneira de intervir sobre a realidade do usuário de crack. É assim que se torna possível a construção de uma nova clínica, que não é a clínica da doença, focada em apenas uma parcela dele, mas sim a clínica do usuário, que é mais ampla, abrangente e complexa.

Se o trabalho parece ser inovador e criativo em saúde mental, é porque ele parece conseguir sistematizar conhecimentos nem sempre sistematizáveis, ou seja, conhecimentos que estão no âmbito das relações humanas, que são mutáveis, podem ser transformados. Em saúde mental, não há certo ou errado, pois não é possível olhar para o sujeito a partir de uma dicotomia: hoje a prática pode ser resolutiva de uma maneira, mas amanhã pode haver necessidade de um arsenal tecnológico diferente para o cuidado. Isso porque tudo, nesse contexto, está em constante transformação; a paralisia não transforma. É a possibilidade de rever as práticas que dá novo desafio ao trabalhador, no sentido de redescobrir suas habilidades e exatidões12.

Reporta-se novamente ao uso de tecnologias leves, como a escuta e o vínculo13, que potencializam essa nova relação entre o trabalhador e o usuário, podendo ser visualizadas a partir dos seguintes relatos:

[...] tem coisas a serem feitas para além do crack. Tem alguém ali, que tem angústias que levaram ele para o crack e que tem angústias que daí são decorrentes do uso de crack, e isso é um trabalho com o trabalhador mesmo, de também poder abrir um espaço em si, de poder abrir uma escuta, uma possibilidade para poder ajudar este usuário. (E8)

[...] muitas vezes as pessoas já estão em abstinência, mas pela questão do vínculo [...] acabam ficando aqui [...] então a gente vai estabelecendo um vínculo com esse usuário, e esse usuário consequentemente ele acaba vindo mais pro serviço. (E2)

A gente trabalha partindo da escuta desta pessoa [...] a gente confia no que as pessoas estão nos dizendo e muitas vezes elas não nos dizem a verdade. (E1)

[...] a consciência limpa de que alguma coisa esta sendo feita porque se tu faz uma aposta no processo, no vínculo, no tempo do usuário, no estar junto com ele seja como for na rua, na chuva, na fazenda, que é isso que a gente vem construindo. (E7)

A apropriação a novas estratégias mostra-se essencial ao desenvolvimento de ações em saúde mental que transformem a realidade social, na medida em que propiciam a construção do cuidado junto com o usuário. Assim, nos serviços de saúde mental, a escuta e o vínculo tornam-se elementos fundamentais ao processo de coprodução de saúde, como também promovem a criação de mecanismos de apoio e reflexão de novos arranjos que incentivem a dinamização do serviço e efetivação do cuidado14.

As práticas em saúde têm evidenciado a escuta como uma ação que minimiza problemas. Beneficiando-se da escuta, o usuário encontra conforto e diminuição do sofrimento. Por esse motivo, é importante que o profissional esteja atento às demandas do sujeito e o cuide sem julgamento prévio15.

Nesse sentido, o vínculo é considerado decisivo na relação de cuidado entre trabalhador de saúde mental, usuário e família, uma vez que agencia as trocas de saberes, convergindo-os para a realização de atos terapêuticos em conjunto16. O vínculo pode ser reconhecido pelo estabelecimento de uma relação solidária e de confiança, de modo que permite que o profissional de saúde compreenda o acolhimento como importante estratégia para o desenvolvimento do cuidado15.

Para tanto, é preciso que o trabalhador incorpore no seu cotidiano assistencial aspectos da relação humano-humano, como: a conversa, o saber ouvir, o toque, o compartilhamento de ideias, a demonstração de preocupação e a expressão de afeto, dentre outros17. No entanto, parece também ser preciso, em se tratando de usuários de crack, instituir regras e limites dentro dos serviços de saúde mental, como destacado, principalmente, pelos usuários:

[...] vem essa pessoa alcoolizada ou com a bebida dentro da bolsa, ela vai terminar atrapalhando e dando a imagem para o drogado fazer a mesma coisa. [...] Eles não têm um limite, não têm regras e não são firmes. Nós somos o relógio descontrolado, nós somos todos desordenados porque nós somos drogados, nós ficamos fora do tempo. Eles não estão tendo pulso para lidar com certas pessoas. (U2)

Muitas vezes eu vejo entrar com álcool, eu acho que está errado. Isso aqui é um centro de tratamento. [...] Sei lá, a equipe tem que desligar, chamar os familiares para conversar com eles e essa pessoa. Precisa impor limites. (U5)

Eu acho que falta um certo pulso para falar o que pode e o que não pode, porque na realidade tu tem que ter um limite, principalmente para nós. [...] Quem tem que ter o pulso firme é os coordenadores porque se um drogado chegar para o outro e falar que está errado ele não vai aceitar. (U6)

Mais pulso firme, tem uns irmãozinhos ai que [...] mexe nas coisas dos outros, não dá para largar no armário ali, quando tu vai procurar não está mais. [...] Isso daí é errado, porque quem está querendo se tratar não tem que estar no meio disso ai. (U8)

Percebeu-se, durante as entrevistas e a etapa de observação, que os usuários estavam insatisfeitos quanto à ausência de regras no funcionamento e na permanência no CAPS AD. Essa condição parece ser um importante componente de cuidado, uma vez que o crack permite que o usuário “quebre” as normas sociais. Para retomar o controle de si, é preciso investir, dentro do serviço, em um aprendizado e ajustamento que permitiria a ele compreender que o mundo impõe compromissos e regramentos à sua convivência.

No entanto, é preciso afastar que a maioria dos tratamentos oferecidos nessas situações baseia-se principalmente no estabelecimento de um ego forte o suficiente para fazer que o usuário renuncie aos desejos e instintos que o levam a consumir a droga. Não se devem construir relações pautadas no modelo autoritário, no regramento excessivo, para que a experiência de uso dos serviços não seja danosa ou penosa. Se isso acontecer, corre-se o risco de favorecer a instalação de um profundo mal-estar e levá-lo novamente ao consumo da substância18.

Nesse sentido, é preciso encontrar um caminho comum e que possa ser pactuado pelo trabalhador e pelo usuário de crack. O que se desvela é um ato de interpretação mútua entre o que o serviço pode oferecer e o que usuário deseja em sua vida cotidiana16. É nesse sentido que se sinaliza a importância do próprio potencial criativo e inovador do trabalho em saúde mental. Isso quer dizer que há uma dialética que permite ao trabalhador se posicionar e refletir sobre o mundo que o cerca, mostrando que o ato de cuidar pressupõe a composição de limites, mas também a flexibilidade necessária para que não haja ruptura de vínculos e abandono ao tratamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação às características do trabalho em saúde mental com o usuário de crack, destacou-se a importância dos serviços substitutivos na consolidação de estratégias de cuidado usuário-centradas. Assim, os resultados evidenciaram a necessidade de investimento na escuta, no vínculo com o usuário e no tratamento a partir de um contrato, em que há negociação, mas, em alguns momentos, construção de limites mais precisos nessa convivência. Assim é possível ampliar o conhecimento sobre a relação do usuário com o crack, para que o trabalhador possa redimensionar essa relação.

O limite, como discutido, num primeiro momento pode parecer restritivo ao usuário, impedindo-o de participar das decisões. No entanto, para o próprio grupo de interesse dos usuários, ele é necessário. Nesse desafio, num primeiro momento ambivalente, o trabalhador deve dosar a capacidade de usar as regras sociais para mostrar ao usuário que ele pode “até ali”, de maneira pedagógica. Se a droga permite que ele extrapole essas regras, ele terá que assumir consequências. Mas o limite também deve ser trabalhado para que não se desvie desse caráter pedagógico, pois pode reforçar uma tendência de punição e marginalização.

Em relação ao método avaliativo, a principal característica a ressaltar diz respeito à possibilidade de dar voz aos grupos de interesse no processo de avaliação. Isso quer dizer que o objeto avaliado foi construído e negociado com eles, num processo participativo e formativo. No entanto, aponta-se para a necessidade de se estabelecer metas e objetivos concretos aos indicadores de avaliação, para que efetivamente haja mudança nas práticas dos serviços. A pesquisa vem se dedicando ao assunto no momento

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Recebido: 14 de Dezembro de 2015; Aceito: 26 de Janeiro de 2016

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