1. Introdução
O movimento dos direitos dos pacientes, iniciado na década de setenta, nos Estados Unidos e alguns países europeus1, colocou em xeque o paternalismo médico e, consequentemente, impulsionou a autonomia do paciente, entendida como elemento da dignidade humana que confere ao sujeito a faculdade de realizar escolhas acerca da sua própria vida e de se conduzir conforme as mesmas. Sendo assim, as decisões sobre os cuidados em saúde do paciente, que eram tomadas pelos médicos, passaram a ser entendidas como expressão do direito de escolha do paciente, mesmo quando fruto processo do compartilhado de deliberação entre o paciente e o médico. Esse movimento se inseriu na ambiência de reivindicação de direitos civis, como o ativismo feminista em defesa da autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo2. Desse modo, o que se nota é a presença de um ponto de inflexão na direção do respeito à privacidade e menor ingerência da sociedade sobre escolhas pessoais, notadamente quando referentes ao corpo e à saúde.
Paulatinamente, foi-se consolidando o entendimento de que ao paciente cabe realizar as escolhas sobre seu cuidado, o que se traduziu em legislações em diversos países do mundo, promulgadas na década de noventa3. No mesmo sentido, na esfera da bioética normativa internacional, a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (Convenção de Oviedo), adotada, em 1997, pelo Conselho da Europa, assenta que qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido, assim, chama-se atenção para a conexão da autonomia com os direitos humanos em ambos os documentos.4 Em seguida, tem-se adoção da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada pela UNESCO, em 2005, previu em seu art. 5º, o dever de se respeitar a autonomia dos indivíduos para tomar decisões5.
Como se nota a partir da Convenção de Oviedo, a autonomia do paciente é exercida, na prática, por meio de seu consentimento informado quanto aos seus cuidados em saúde. Sendo assim, particularmente no contexto brasileiro, se no Direito Civil, se aplica a capacidade civil e a autonomia privada ou da vontade às escolhas do paciente e ao consentimento informado, na Bioética e nos Direitos Humanos, esse é entendido sob a perspectiva da autonomia do paciente, tal como desenvolvida por Beauchamp e Childress6 a partir dos princípios constantes do Relatório Belmont, que se difere significativamente da autonomia privada ou da vontade, de origem contratual. Com efeito, no Brasil, se verifica na teoria e na jurisprudência civilista o emprego impreciso e confuso dos conceitos de autonomia privada ou da vontade no campo dos cuidados em saúde.
Embora na Europa e nos Estados Unidos, não se tenha o reconhecimento do direito de escolha do paciente com base no direito civilista tradicional, particularmente, no Brasil, o que se nota é a aplicação equivocada da autonomia privada ou da vontade ao consentimento informado, ou seja, busca-se fazer incidir concepção de origem patrimonial e civilista à esfera bioética e dos direitos humanos. Registre-se, ainda, o emprego a capacidade civil, oriunda do Direito Romano, ao âmbito dos cuidados em saúde, o que também se revela problemático, pois tal instituto não foi elaborado com tal propósito e não se mostra compatível com os avanços oriundos dos movimentos dos direitos humanos, notadamente dos direitos dos pacientes.
Sendo assim, este artigo tem como objetivo propor reflexão sobre a reposição dos conceitos de autonomia privada e capacidade civil no âmbito dos cuidados em saúde do paciente, pelos conceitos de autonomia e capacidade sanitária, de modo a consolidar o entendimento de que os institutos do Direito Civil não são adequados para amparar decisões sobre cuidados em saúde relacionadas à dignidade do paciente e aos seus direitos humanos. Quanto a tal aspecto, reconhece-se que há divergência no tocante à adequação dos institutos civilistas às questões concernentes aos cuidados em saúde, porquanto não há consenso acerca da sua impropriedade para disciplinar os cuidados em saúde. Registre-se a escassez de reflexão sobre a temática no Brasil e em países de tradição jurídica romano-germânica, porquanto o que predomina é a abordagem do direito de escolha do paciente com base no modelo civilista tradicional, ancorado em construtos de cunho patrimonial, como autonomia privada e capacidade civil. Com o intuito de aprofundar a reflexão proposta, este artigo confere ênfase ao caso do menor de 16 anos. Sabe-se que algumas legislações e tribunais já realizam a distinção entre a capacidade civil, ordinária para a prática de atos da vida civil, e a capacidade do paciente para a tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde, tal como a teoria do menor maduro e a competência Gillik. Contudo, em alguns países, como o Brasil, percebe-se que a reflexão sobre a inadequação de institutos de Direito Civil ao âmbito sanitário ainda é incipiente, por isso este estudo visa contribuir para aprofundá-la e permitir, no futuro, a alteração legislativa com vistas a tornar o arcabouço jurídico brasileiro mais específico e preciso no tocante à salvaguarda da autonomia do paciente.
Sob o prisma metodológico, este estudo trata-se de pesquisa de cunho teórico, com base em levantamento e análise bibliográfica e documental, cujas referências se centraram em Amaral7, Edozien8 e Pelluchon9. Este estudo estrutura-se em três partes: uma sobre os institutos de Direito Civil, outra sobre a autonomia e a capacidade sanitária, e a terceira versa sobre a apresentação dos três modelos que versam sobre a capacidade do menor de 16 anos quando paciente.
Em seguida, passa-se à primeira parte deste artigo que trata da autonomia privada e da capacidade civil.
2. Autonomia privada e capacidade civil
Este item do artigo tem como escopo delinear sinteticamente os institutos civilistas da autonomia da vontade e da capacidade civil. Para tanto, inicia-se mediante a distinção entre autonomia e capacidade legal, consoante formulada por Kong, ou seja, a concepção de autonomia enuncia a liberdade pessoal de se autodeterminar e a de capacidade, sob o prisma jurídico, exprime o direito individual de se tomar decisões acerca da própria vida, sejam negociais ou existenciais. 10 Em seguida, passa-se à abordagem do conceito de vontade, por ser um dos principais elementos do Direito Privado, na medida em que, quando em conformidade com a lei, produz consequências jurídicas, criando, modificando e extinguindo relações no plano do direito. Desse modo, a vontade psicológica, que o indivíduo traz em sua psique, e a vontade jurídica, não necessariamente coincidem, pois a primeira apenas se torna jurídica quando repercute no plano jurídico. Sendo assim, o indivíduo tem um espectro de liberdade, no plano do Direito Privado, para criar, modificar ou extinguir relações jurídicas, e tal liberdade é denominada autonomia da vontade, que consiste nesta faculdade do indivíduo de se impor regras e relações de cunho jurídico. Quando se especifica tal faculdade e se lança luz sobre o poder subjetivo de se autolegislar, este é definido como autonomia privada. Sendo assim, conforme Amaral, "autonomia da vontade, como manifestação de liberdade individual no campo do direito, psicológica, autonomia privada, poder de criar, nos limites da lei normas jurídicas"11. Em consequência, a autonomia da vontade apresenta um conteúdo mais subjetivo e psicológico, e a autonomia privada consiste em conceito mais objetivo, com repercussões mais concretas para o indivíduo.
Com fulcro na autonomia privada, os indivíduos celebram negócios jurídicos, obrigando-se voluntariamente em virtude de desejar os efeitos legais decorrentes de tais negócios. A autonomia privada insere-se numa tradição filosófica essencialmente individualista, no sentido que confere primazia aos desejos pessoais em detrimento de interesses coletivos. Desse modo, na visão tradicional da autonomia privada, o indivíduo que usa seu poder negocial e realiza escolhas é concebido de modo atomizado, descontextualizado dos contextos em que se insere e das eventuais assimetrias entre as partes negociantes. No século XX, houve um movimento de redimensionamento da autonomia privada com base em interesses coletivos, desse modo, pode-se afirmar que, paulatinamente, tem-se um processo de restrição da autonomia privada efetuada pelo intervencionismo estatal nas relações privadas patrimoniais, ilustrado pelo dirigismo contratual, e em benefício dos hipossuficientes.12
Importante compreender que a autonomia da vontade se ampara precipuamente na autonomia da vontade kantiana e no utilitarismo de Stuart Mill, bem como no liberalismo econômico do século XIX, que apregoa a liberdade contratual acoplada à liberdade do mercado como meios de se alcançar o "máximo de produção e os preços mais baixos, como efeito da livre concorrência"13. Tendo em conta a própria origem do conceito, a incorporação no plano jurídico da autonomia privada, enquanto dimensão concreta da autonomia da vontade, tem como consequência o reconhecimento constitucional da liberdade da iniciativa econômica e, na esfera contratual, "seu campo por excelência", dos princípios da liberdade contratual e da força obrigatória dos contratos.14 Desse modo, nota-se que a autonomia privada enseja fundamento para os direitos ligados à propriedade e à liberdade econômica. Contudo, alguns autores civilistas, como Tepedino, compreende a autonomia privada como expressão da liberdade no âmbito das relações privadas, "como poder de auto-regulamentação e auto-gestão conferido aos particulares"15. Nessa esteira, há uma visão alargada da autonomia privada de modo a incorporar negócios jurídicos de cunho extrapatrimonial em seu bojo, sendo assim, verifica-se um movimento contemporâneo no sentido de se aplicar a concepção de autonomia privada também às intituladas relações extrapatrimoniais ou existenciais, como as que são travadas nos cuidados em saúde.
Como visto, na esfera do Direito Civil, a autonomia privada ancora a realização de negócios jurídicos, os quais criam, modificam e extinguem relações jurídicas. Embora tal conceito se enraíze no liberalismo econômico, se preconiza, hodiernamente, mormente os teóricos dos Direitos da Personalidade, sua incidência em relações extrapatrimoniais, notadamente naquelas que dizem respeito aos cuidados em saúde do paciente. Contudo, neste artigo sustenta-se que o conceito de autonomia privada e o de autonomia da vontade não se revelam adequados a fundamentar o direito de escolha do paciente, seu consentimento e recusa, porquanto tal direito se justifica em sua dignidade e privacidade, conforme a seguir será explanado.
Ainda, observa-se que para o Direito Civil a vontade criadora do negócio jurídico é juridicamente qualificada, ou seja, determinadas pessoas não têm sua vontade considerada, a despeito de existir no plano psicológico. Com efeito, a emissão volitiva por si só não gera efeitos jurídicos, porquanto determinados requisitos de validade devem ser preenchidos. Sendo assim, enquanto requisito subjetivo, o agente que emite a vontade deve ser capaz de acordo com o ordenamento jurídico, logo, para que se considere uma vontade apta a produzir efeitos jurídicos, o agente emissor deve ser capaz. Então, a capacidade civil, especificamente a de ação ou de fato, definida como a aptidão para contrair direitos e obrigações e para exercê-los por si mesmo16, condiciona-se à idade do sujeito ou a outros requisitos legais.
Sendo assim, a capacidade civil, entendida neste artigo como a de ação, varia, existindo pessoas capazes e incapazes para a manifestação socialmente aceita da sua vontade e da sua aceitação no plano concreto, logo, as pessoas incapazes, como crianças e adolescentes têm sua vontade desconsiderada no plano civil. No Direito brasileiro, os menores de 16 anos são representados por pessoas legalmente determinadas. Desse modo, a vontade psicológica do incapaz é desconsiderada pelo direito, que a substitui pela vontade do seu representante legal, em consequência, segundo Pereira os incapazes "não participam direta e pessoalmente de qualquer negócio jurídico"17, logo, "os representantes, que agem em seu nome, falam, pensam e querem por eles"18. Desse modo, nota-se que segundo a concepção civilista brasileira, o menor de 16 anos é considerado como objeto, desprovido de vontade, na medida em que compete ao representante querer e atuar em seu nome, sem sua participação. Ocorre que tal concepção faz sentido sob o ponto de vista patrimonialista, haja vista que é razoável afastar a criança e o adolescente de decisões acerca de seus bens, por outro lado, quando se trata de seu corpo e de sua saúde, não se revela adequado e razoável exclui-lo absolutamente do processo de tomada de decisão e desconsiderar seus desejos e valores quando se está diante de decisões de cunho personalíssimo e existencial.
Em consequência, os conceitos de autonomia privada e capacidade civil, de cunho patrimonial, não se mostram adequados para balizar a manifestação de vontade do paciente, enquanto expressão de sua privacidade e dignidade. Desse modo, no item subsequente serão abordados institutos bioético-jurídicos como sucedâneos.
3. Autonomia e capacidade sanitária
A autonomia do paciente, conceito central na Bioética e Ética Médica19, se fundamenta na concepção kantiana de que todas as pessoas são um fim em si mesmo, o que impõe o comando de não instrumentalização, ou seja, é vedado tratar outrem como objeto. Com base na teoria moral kantiana, assevera-se o estreito liame entre a dignidade humana e a proibição de usar as pessoas como simples meio ou instrumento. Por outro lado, a autonomia também se ancora no direito à privacidade, que abarca a maneira como o individuo percebe a si mesmo e suas relações pessoais.20 Embora se reconheça que Beauchamp e Childress tenham adotado em seu princípio do respeito à autonomia uma visão de autonomia ampliada, baseada em "valores e crenças"21, adota-se neste estudo a concepção de autonomia, conforme formulada por Edozien e Pelluchon, que denota a competência do indivíduo para viver sua própria vida conforme seus interesses, desejos e crenças,22 o que não se atrela à sua capacidade cognitiva23. Sendo assim, adota-se neste estudo uma forma de autonomia que ultrapassa o conceito legal tradicional, porquanto o sujeito não é reduzido às suas incapacidades cognitivas, logo, são consideradas outras dimensões humanas, como seus desejos e valores. Mesmo quando se trata de paciente com severa deficiência cognitiva, como pacientes com Alzheimer, a autonomia, sob esse prisma, continua fazendo sentido. Com efeito, a ausência de competência cognitiva não deve conduzir imperiosamente à negação da autonomia do paciente, desse modo, o modelo de autonomia fundado na capacidade cognitiva há que ser reconfigurado com vistas a expressar primeiramente a capacidade do sujeito de "ter desejos e valores"24, o que não é afetado pela deficiência ou restrição cognitiva, ou demência.
No campo dos cuidados em saúde, a autonomia do paciente implica: a) direito à integridade corporal; b) direito de tomar decisões relacionadas aos seus cuidados em saúde. Singularmente, ao se tratar do consentimento informado, constata-se que não decorre da autonomia privada, mas sim da autonomia, enquanto expressão do respeito à sua vida privada e dignidade. Ademais, a autonomia do paciente enseja os seguintes comandos: a) respeito pelo direito do paciente de tomar decisão sobre consentir ou recusar determinado tratamento; b) prover um ambiente adequado para que o paciente possa tomar decisão ou participar do processo de deliberação; c) considerar o contexto no qual o paciente se insere e a partir do qual a decisão é emanada.25
A concepção de autonomia se fundamenta no referencial desenvolvido por Edozien e Pelluchon, contrapondo-se, dessa forma, ao conceito privatista e patrimonialista de autonomia privada. A autonomia se centra nos aspectos emocionais, valorativos e existenciais da pessoa, ao passo que a autonomia privada é tradução da liberdade contratual e do poder negocial. Desse modo, sob o prisma da pessoa humana como elemento axiológico central das relações jurídicas no âmbito dos cuidados em saúde, advoga-se que a autonomia privada seja substituída pela autonomia, ideia de espectro mais alargado, por isso apta a dar conta da complexidade presente nas relações humanas travadas entre pacientes e profissionais de saúde quando estiver em jogo o consentimento do paciente acerca de seu tratamento. Por óbvio, não se defende a incidência da autonomia nas relações patrimoniais constantes dos cuidados em saúde, tais como contratos de prestação de serviço ou similares.
Sendo assim, a autonomia é a acepção adequada para balizar o exercício do direito à privacidade da pessoa na esfera sanitária, em consequência, os direitos referentes à sua integridade corporal e à realização de escolhas concernentes à sua saúde e ao seu corpo decorrem de sua autonomia e não da autonomia privada. Nesse sentido, há ampla adoção pela Corte Europeia de Direitos Humanos do direito à autonomia no campo dos cuidados em saúde, mormente para determinar o direito do paciente de realizar escolhas sobre seu tratamento.26,27
A correlação entre autonomia privada e capacidade civil se aplica ao binômio autonomia e capacidade sanitária. Os rígidos critérios adotados pelo Direito Civil para restringir a participação de pessoas incapazes em decisões que dizem respeito a seus bens não devem incidir sobre os assuntos que se refiram à sua saúde. Desse modo, os mesmos requisitos de capacidade civil não devem ser aplicados à capacidade sanitária, que consiste na capacidade específica para tomar decisões na área da saúde. De acordo com a concepção de capacidade sanitária, a visão tradicionalista de capacidade civil, formulada no Direito Romano28, não se ajusta à ideia de autonomia sobre o próprio corpo. Portanto, na esfera da saúde há que se construir noção de capacidade diferenciada, menos restritiva e mais permissiva quanto ao exercício da escolha do sujeito. Com efeito, tal proposição visa afastar dos cuidados em saúde a concepção geral de capacidade legal para a prática de atos da vida civil29, que tem como essência a prática de atos com efeitos patrimoniais, porquanto na esfera da saúde a capacidade detém outra natureza, na medida em que é expressão da autonomia sobre o próprio corpo, que decorre do direito à privacidade30. Por exemplo, no Canadá, a capacidade para a tomada de decisão na esfera da saúde não se encontra atrelada à idade, a Lei sobre o Consentimento do Menor permite que o menor a partir de 16 anos possa recusar ou consentir tratamento médico, assim como aquele com menos de 16 anos, caso os médicos envolvidos em seu cuidado identifiquem sua capacidade de entendimento acerca da natureza e das consequências do tratamento médico e quando tal decisão se funda nos melhores interesses do menor31. Na Argentina, a título de exemplo, o adolescente entre 13 e 16 anos tem capacidade para atos personalíssimos de decisão sobre sua saúde e o próprio corpo. Portanto, este artigo propugna, de forma preambular, novo enfoque legislativo e teórico da temática relacionada à autonomia e à capacidade na esfera dos cuidados em saúde, ultrapassando o entendimento tradicional civilista, a despeito de se reconhecer que alguns autores já propõem a confluência entre a autonomia da vontade e a dignidade humana.32 Com o objetivo de aprofundar a reflexão ora proposta, no item seguinte serão abordadas fundamentações teóricas que justificam a capacidade sanitária quanto aos menores de 16 anos, sendo assim, este estudo propõe três modelos para o exame da temática em estudo, baseados no referencial: dos direitos humanos, desenvolvido pelo Comitê sobre os Direitos da Criança; do menor maduro, formulada nos Estados Unidos e no da competência Gillik, fruto da atividade jurisprudencial britânica.
4. Capacidade sanitária do paciente menor de 16 anos
É sabido que os menores de idade têm restrições quanto à tomada de decisões, assim como em relação à possibilidade jurídica da sua vontade ter repercussões legais em razão da sua incapacidade jurídica. Contudo, no século XX, observou-se um processo de mudança dessa concepção tradicional de capacidade no campo da saúde, ou seja, constata-se que paulatinamente foi se atribuindo capacidade ao menor de idade para decidir quanto a assuntos relacionados à sua saúde, a despeito de historicamente os pais terem o direito de decidir sobre os cuidados em saúde de seus filhos, que se ampara na ideia de que a tomada de decisão parental beneficia os pais, a sociedade, e as próprias crianças33. Na esfera europeia, a Convenção de Oviedo, estabelece, desde 1997, que "a opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade"34.
Iniciando com o modelo dos direitos humanos, sublinha-se que o parâmetro internacional de capacidade é conferido pela Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU no ano de 1989. Segundo a Convenção, "considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes"35. Desse modo, qualquer pessoa menor de 18 anos é considerada criança, salvo se houver previsão legislativa no país quanto à obtenção da maioridade em idade inferior. Quanto à capacidade do menor sob o prisma da Convenção, aquele que for capaz de formular seus próprios juízos deverá ter assegurado pelo Estado seu direito de expressar suas opiniões livremente sobre todo assunto relacionado a si próprio. Assim, nos assuntos que lhe dizem respeito, há que se levar em consideração a sua opinião, com base na sua idade e maturidade.36
Quanto à criança em geral, ou seja, abarcando os menores de 18 anos, o Comitê sobre os Direitos da Criança fixa o entendimento de que, em conformidade com o desenvolvimento de suas capacidades, as crianças devem ter acesso a terapias e assessoramento confidenciais, independentemente da permissão de seus genitores, quando os profissionais de saúde atuem em prol dos seus melhores interesses. Ainda, o Comitê preconiza que os Estados devem levar em conta a possibilidade de que as crianças se submetam a determinados tratamentos e intervenções médicas sem a permissão de seus genitores ou tutor, tais como serviços de saúde sexual e reprodutiva, de métodos contraceptivos e de aborto em condições seguras37.
Com efeito, segundo o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança, há que se proporcionar à criança informação adequada e apropriada a fim de que possa compreender a sua condição de saúde e permitir, quando seja possível, que consinta com seus cuidados em saúde.38 Sendo assim, embora o Comitê não utilize a expressão "capacidade sanitária", verifica-se que quando trata do tema há prescrições específicas acerca da possibilidade e da adequação do consentimento do menor.
Passando-se à análise do modelo do menor maduro, verifica-se que seu surgimento deu-se nos Estados Unidos. De acordo com esse modelo, os direitos humanos das pessoas surgem a partir do seu nascimento, logo, as crianças e adolescentes são titulares de tais direitos e podem deles disfrutar antes mesmo dos 18 anos e de certas faixas etárias habilitadas juridicamente para o exercício pessoal de atos legais39. O modelo do menor maduro se fundamenta nas pesquisas exploradas no campo da Psicologia acerca do estágio de desenvolvimento cognitivo e moral de crianças, particularmente as investigações de Piaget e Kohlberg.40
No âmbito dos Estados Unidos e do Canada, países em que o modelo do menor maduro tem ampla penetração, a Sociedade Canadense de Pediatria exige que o menor demonstre compreensão da dimensão da intervenção, probabilidade de danos e benefícios, bem como das consequências de consentir ou recusar. A Academia Americana de Pediatria estabelece que a decisão tomada pelo menor deva ser racional e voluntária, e o menor deve ter a capacidade de associar sua escolha a uma escala de valores. 41
Embora se reconheça que a tomada de decisão parental predomina, os direitos dos pais de deliberarem pelo menor coexistem com o dever da sociedade de proteção da criança e do adolescente. Por exemplo, em caso de abuso ou negligência por parte de seus pais, o Estado em nome dos melhores interesses do menor pode afastar seu poder familiar. No campo da saúde, quando os responsáveis negam tratamento que se ajusta ao melhor interesse da criança cometem abuso ou negligência. Nesse sentido, a jurisprudência estadunidense fixou três exceções ao requerimento de consentimento parental em tratamentos médicos de menores: a) emancipação; b) urgência; c) menor maduro. Considerando o escopo deste artigo, enfoca-se especificamente o menor maduro, que, conforme as Cortes estadunidenses permite que o menor consinta acerca de tratamentos médicos com base em sua competência para tomar decisão autonomia, para tanto, há que se perquirir se o menor compreende plenamente tanto o tratamento quanto suas consequências42.
O modelo do menor maduro ancora-se no direito do paciente de decidir sobre seu tratamento médico, que decorre do direito à privacidade, conforme decidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos. Não obstante o direito à privacidade do menor não deter a amplitude do direito dos adultos, em razão de sua vulnerabilidade específica e capacidade de tomar decisões em graves e críticas situações, tal direito existe e deve ser avaliado em consonância com o dever do Estado e dos pais de proteger o menor de danos e do direito dos pais de educar seus filhos.43 Desse modo, de acordo com o modelo do menor maduro, a capacidade para consentir ou recusar determinado tratamento médico não se encontra estritamente vinculada à idade. O médico pode avaliar a capacidade do menor de compreensão, segundo os padrões adotados em cada país, para que possa decidir autonomamente ou, em certas situações, ser escutado pelos responsáveis legais.
O último modelo que alicerça a capacidade sanitária do menor decorre da decisão tomada pela Suprema Corte inglesa, no ano de 198644, conhecida como Caso Gillik. Em síntese, o caso de Gillik diz respeito ao pedido da Sra. Victoria Gillik, mãe de 10 filhos, incluindo 5 meninas, às autoridades sanitárias locais para que nenhuma de suas filhas menores de 16 anos recebesse contraceptivos ou se submetesse a procedimento de interrupção voluntária de gravidez sem que ela fosse informada. As autoridades sanitárias locais informaram à Sra. Gillik que eles não poderiam lhe assegurar que ela seria informada e que a decisão final recairia sobre o médico. A Sra. Gillik levou o caso ao Poder Judiciário e no julgamento do caso na Casa dos Lordes, o Juiz Scarman assentou que os direitos dos pais em relação aos filhos não são absolutos ou impassíveis de revisão ou controle, bem como derivam dos deveres dos pais e se justificam na proteção da criança45.
Inicialmente, cabe assinalar que a competência Gillik se aplica apenas aos menores de 16 anos, pois os acima dessa idade podem, no Reino Unido, consentir. Em prosseguimento, segundo o modelo Gillik, se a criança demonstrar que detém maturidade suficiente para tomar decisão, ela pode prover consentimento legal referente à procedimento médico. Para a criança ter competência Gillik, ela precisa ter entendimento e capacidade cognitiva suficiente que a habilite para compreender plenamente o que lhe é proposto, assim, caso o juiz ou o médico considere a criança competente, serão observados os seguintes pontos: a) a criança precisa entender questões médicas, ou seja, o tratamento proposto e seus efeitos, bem como as consequências de sua recusa; b) a criança deve compreender as questões morais e familiares envolvidas, contudo, o Departamento de Saúde e a Associação Médica Britânica não fazem alusão à maturidade moral da criança, pois presumem que o entendimento médico abarca o moral; c) a criança precisa apenas ter maturidade para consentir sobre a questão que lhe é posta; d) se competência do menor se apresenta flutuante, em determinado aspecto se mostra apta e em outro não, se presume a ausência de competência; e) a criança precisa demonstrar que tem maturidade para alcançar suas próprias decisões e não apenas repetir a opinião de seus pais; f) não se infere a incapacidade da criança apenas pelo fato de se considerar sua decisão "incorreta"46.
No caso em que houver divergência entre os pais e a criança, o médico responsável por prover o tratamento pode se deparar com as seguintes situações: a) a criança que detém competência Gillik consente, mas os pais objetam; b) os pais consentem, mas a criança com competência Gillik recusa; c) o Poder Judiciário autoriza o tratamento, a despeito do consentimento dos pais ou da criança. Quanto a tais situações, há decisões britânicas no sentido de que uma vez que a criança tem competência Gillik, conforme as normas de direitos humanos, seus pais não têm mais o direito de tomar decisão em seu nome. Ademais, segundo Herring é importante distinguir a competência para aceitar um tratamento daquela exigida para recusar, pois nesse caso há que se ter a compreensão das consequências da recusa. Mesmo quanto ao consentimento dos pais, há determinados casos em que há necessidade de autorização judicial, como a esterilização sem necessidade terapêutica e recusa de suporte vital, aborto e doação de órgãos e tecidos não regenerativos. Nessa linha, há discussão se os pais podem consentir procedimentos "danosos", como a participação da criança em pesquisa47.
De modo similar ao modelo do menor maduro, o modelo da competência Gillik permite que menores de 16 anos possam consentir com determinados tratamentos, sem o conhecimento e o consentimento de seus pais. Quanto à recusa, verifica-se que a exigência relacionada à competência do menor é maior, bem como apresenta limites no que tange à refutação de suporte vital.
5. Considerações Finais
Este estudo objetivou demonstrar de forma explanatória e preliminar a indispensabilidade de se substituir o emprego dos institutos da autonomia privada ou da vontade pela autonomia, de cunho bioético, e, conseguintemente, da adoção legislativa de capacidade específica para atos que digam respeito à saúde e ao corpo dos pacientes, como o consentimento informado. Particularmente, quanto ao paciente menor de 16 anos, independentemente de alterações legislativas, modelos foram elaborados para superar a inaceitável disposição do corpo e da saúde de crianças e adolescentes por parte de seus responsáveis legais sem qualquer consideração de seus desejos e valores. Assim, conclui-se que há um longo caminho a ser percorrido na direção da suplantação da visão anacrônica de que os civilmente incapazes não têm autonomia e, logo, não detêm o direito de participarem ativamente dos seus cuidados em saúde, o que se desvela incompatível com os comandos derivados da ideia de dignidade humana.