1. A fundamentação da regulamentação do procedimento de esterilização voluntária a partir da bioética
A ciência evolui a passos largos, exigindo uma adaptação, tanto por parte do Estado como de toda a sociedade, às novas descobertas. No âmbito da reprodução humana, o problema se manifesta na medida em que o homem precisa, a partir das bases éticas e morais existentes, dar conta dessa mudança de perspectiva sobre a gerência de sua vida proporcionada por essas tecnologias, somadas a facilidade de acesso a elas. Além disso, as grandes revoluções sociais fizeram emergir novos direitos a novos sujeitos de direito, notadamente às mulheres. Nesse interim, resta à Bioética tentar reconstruir os limites da antiga ética, que já não conseguem dar conta dessa nova fase de descobertas, e daquelas ainda estão por vir.
O jusfilósofo Jürgen Habermas é um dos pensadores que se dedica a tratar sobre as interferências ético-jurídicas que os avanços científicos na área da saúde proporcionaram. Para ele, existe a necessidade de regulamentação das novas tecnologias, e a velha ética não consegue ajudar a responder a essas novas questões1 13.
Ronald Dworkin, também se preocupa com a mudança de compreensão dos valores e convicções pré-concebidas resultantes desses avanços, e que ocasionam, segundo ele, um deslocamento da linha divisória entre o que somos e o que nos tornamos2 7. Para esse autor, a ciência ampliou o poder do homem sobre a natureza, provocando a passagem de um momento de estabilidade para um momento de instabilidade moral.3 8
Nesse ponto, as teorias de Dworkin e Habermas convergem no mesmo sentido4 15. Habermas se preocupa com o caráter preventivo ou eugênico desencadeados pelo conhecimento científico, e busca um entendimento considerando se a descoberta científica seria "moralmente admissível" ou "juridicamente aceitável".5 13
Para Dworkin, o problema está em se perder o conceito sobre o que é ser certo ou errado, ao que ele denominou de "queda livre moral" das convicções morais tradicionais, e não em saber se determinado ato é correto ou não. Nesse sentido, esse autor diz ser necessário buscar uma nova forma de resolver o problema, sem fugir dele, afinal é, e sempre será parte da natureza humana, produzir conhecimento. Entretanto, reconhece que essa produção de conhecimento desencadeia uma avalanche de desconstruções morais que colocam a prova conceitos e valores até então sedimentados. Nesse sentido, o autor aponta dois grupos de valores que, segundo ele, deverão ser considerados quando se deseja avaliar os efeitos de novas tecnologias nas pessoas.6 7
O primeiro grupo de valores, por ele denominados de "valores derivados", dependem dos interesses das pessoas particulares. Assim, deve-se pensar quais serão os impactos de uma decisão sobre os interesses individuais, ou seja, o governo deve avaliar qual a melhor maneira de proteger os interesses dos particulares e como resolver equitativamente os conflitos de interesse. Assim, nas palavras do autor: "Quem passará a uma situação melhor e quem passará a uma situação pior devido a essa decisão?".7
O segundo grupo de valores, denominado de "valores independentes", não derivam dos interesses pessoais de cada indivíduo, mas sim "são intrínsecos aos objetos ou aos acontecimentos". Por meio do aborto, o autor exemplifica a diferença entre os dois grupos, referindo que o que torna o aborto reprovável não é o fato de ir de encontro aos interesses de alguém (do feto, ou da mulher), mas sim pelo fato de alguns o consideram moralmente errado por agredir a santidade da vida humana, ou seja, o valor intrínseco de cada vida.
De acordo com o jusfilósofo, os problemas morais trazidos pela ciência tocam mais sobre os interesses derivados (autonomia de vontade, autodeterminação corporal), não obstante os apelos de ordem intrínseca serem os mais utilizados como argumentos, como o respeito à vida, por exemplo.8
Assim, pode-se pensar no procedimento da esterilização voluntária a partir desses dois valores. Começando pelos valores derivados, supõe-se a seguinte questão: a quem afetará diretamente o procedimento? Neste caso, presume-se que atingirá a pessoa que não deseja a procriação, ou aquela que já tem o número desejado de filhas e/ou filhos, enfim, aquelas pessoas que entendem que a sua vontade deve ser respeitada em detrimento da vontade alheia, uma vez que possuem autonomia sobre o seu corpo.
Em contrapartida, considerando os valores intrínsecos, poder-se-ia pensar na esterilização voluntária a partir da saúde pública e suas possíveis consequências, como o aumento de doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo. Ou então, quanto à vida, no sentido mais amplo que essa palavra poderia significar, e pensar em que medida as pessoas podem e/ou devem ter controle sobre ela.
Nessa mesma perspectiva, pode-se pensar na esterilização a partir do valor da família, partindo do pressuposto que essa só se concretizaria com a maternidade ou a paternidade. Assim, quando duas pessoas decidem constituir uma família, consequentemente abrem mão de sua autonomia como pessoas, com toda sua carga de personalidade jurídica, formando um bloco uno, confinando-se ao consentimento mútuo. Em rasa análise, esse fundamento não se sustenta, na medida em que existem muitas outras formas de se chegar a maternidade ou paternidade, como por exemplo, a adoção ou o implante de embriões.
Com isso, existe uma diferença fundamental de resultado quando se considera um problema a partir desses dois valores propostos por Dworkin. Os valores intrínsecos, tem conceitos mais amplos, abertos e hipotéticos, que mudam e se moldam de forma lenta e progressiva, com um certo "delay" em relação à velocidade que a ciência e as sociedades evoluem. Já os valores derivados pertencem a cada pessoa da espécie humana, e claro, também são passíveis de modificação com a evolução tecnológica e suas consequências diretas sobre a vida. Entretanto, os valores derivados situam-se na esfera da pessoa, portanto, as consequências diretas de suas ações se mantêm nessa zona. Ao passo que os valores intrínsecos, por serem mais amplos, independem da vontade da pessoa, e suas consequências podem abranger toda espécie humana.9 7
Na perspectiva de Dworkin, somente os interesses da pessoa diretamente envolvida, ou seja, os interesses derivados deveriam importar para o Estado no momento de regrar um avanço científico. Isso porque, não existe uma unanimidade quanto aos valores, mesmo dentro de culturas democráticas. O autor entende que os valores estão suscetíveis a valorações de cunho religioso, que ampliam o grau de importância dos valores independentes, como o valor a vida, por exemplo, em detrimento dos valores derivados.10 7
Assim, a partir das questões postas pelo autor, sobre as provas genéticas e suas consequências11, é possível propor algumas perguntas que podem nortear o entendimento do problema sobre a esterilização voluntária: i) existe algum erro moral em não desejar ter filhos? Se positivo, ii) seria correto impor a vontade de outra pessoa e fazer cumprir sua convicção sobre alguém que não deseja ter filhos mediante imposição legal? Ainda, iii) seria correto forçar alguém a ter filhos, restringindo seu acesso à esterilização voluntária mediante a obrigatoriedade de autorização de outra pessoa para sua realização?
De antemão, é importante salientar que na esterilização voluntária não existe vida intrauterina. O que se deseja é a não concepção, ou seja, é um momento anterior à vida. Neste caso, os únicos interesses em questão são, ou em certa medida deveriam ser, os interesses da pessoa que deseja realizar o procedimento. Portanto, a questão moral em debate seria um valor derivado, que diz respeito somente à pessoa, inexistindo valoração de vida que mereça aprofundamento do debate com base em valores independentes.
A postura de Habermas é mais conservadora que a de Dworkin, na medida em que esse último tem como proposta a construção de um conjunto de convicções morais básicas, com ênfase na liberdade individual e que, antes da imposição de limites legais à sua realização, sejam apresentadas mostra de perigo para saúde da nova tecnologia. Para esse autor, cada pessoa tem responsabilidade sobre sua própria vida, devendo ser livre para tomar suas próprias decisões.12
Já Habermas propõe que as novas tecnologias devem ficar inacessíveis a partir de uma norma, o que ele chamou de "moralização da natureza humana". Não no sentido de tornar o bem da vida sagrado, mas sim como uma "autoafirmação de uma autocompreensão ética da espécie"13 13. Para ele, deve-se reconhecer a autonomia individual, mas questiona as alterações das bases da experiência moral de cada um frente ao que denominou de "ampliação de contingência". Segundo o jusfilósofo, a alteração entre o que acontece ao acaso e o que fazemos a partir da escolha autônoma interfere na estrutura geral da experiência moral de cada pessoa. Segundo o autor, as novas tecnologias estariam fazendo desaparecer a fronteira entre o acaso e a escolha, base de nossos critérios de valor.14
No que concerne ao valor da vida humana, Habermas considera difícil conceituar o início da vida, e pressupõe fundamental a discussão dos temas sobre manipulação da vida pela ciência, a partir da dignidade humana e da instrumentalização dessa vida. Para ele, a dignidade humana tem como fundamento a autonomia, e se constrói a partir da inserção da vida humana em sociedade15. Nessa perspectiva, a instrumentalização da medicina reprodutiva para fins de perpetuação da espécie poderia ser justificável, mas não moralmente aceita. Isso porque, o conjunto de valores morais vai sendo construído durante a vida de cada pessoa, ajudando a interpretar o mundo a partir da perspectiva e das vivências de cada um.
Já para Dworkin, não há obrigação para a existência de uma vida, entretanto, existindo, ela será importante. Esse entendimento justifica a permissão à esterilização voluntária como método contraceptivo, uma vez que inexiste investimento criativo em vidas que nunca existiram. Entretanto, para esse autor, uma vez criada a vida, será dela a capacidade de escolher os fatores que influenciarão seu saber e caráter.16
Agora, a partir da discussão sobre a regulamentação da esterilização voluntária, baseada nos conceitos propostos por Ronald Dworkin e Jurgen Habermas, apresentar-se-á o panorama normativo, juntamente com a análise de como Brasil e Espanha regulamentaram o procedimento de esterilização voluntária, considerando para isso, os principais textos internacionais que tratam da promoção da saúde reprodutiva como um direito humano fundamenta.
2. A esterilização voluntária no Brasil e na Espanha
A promoção dos métodos contraceptivos está presente nos principais documentos internacionais de Direitos Humanos. Seja no campo do planejamento familiar, seja no campo da saúde reprodutiva, o cuidado com a contracepção deve fazer parte da agenda de políticas públicas dos Estados, uma vez que a saúde reprodutiva é reconhecida como um direito humano e elemento fundamental da igualdade de gênero.
Textos como a Convenção sobre Discriminação contra a Mulher (CEDAW)17 2, a Convenção sobre Direitos da Criança18 3, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), conhecida como Plataforma de Cairo19 14, e a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim no ano de 199520 19, são alguns dos documentos internacionais que marcaram a evolução de direitos das mulheres, especialmente no que tange à capacidade de tomar decisões sobre sua própria vida. Por isso, esses documentos também propõem que os Estados signatários adotem medidas apropriadas para garantir o direito à saúde, assegurar a informação, o assessoramento e o acesso a serviços médicos, desenvolvendo a assistência médica preventiva e serviços de planejamento familiar, eliminando a discriminação contra as mulheres no cuidado à saúde, assegurando a igualdade.
Portanto, é dos Estados a função de promover o acesso universal aos serviços de saúde que, dentre eles, estão compreendidos o planejamento familiar e a saúde em matéria de reprodução e sexualidade. Nessa perspectiva, os Estados têm o dever de agir para promover a igualdade entre mulheres e homens no âmbito da saúde sexual e reprodutiva.
Com relação especificamente ao acesso à esterilização voluntária, alguns países impuseram limites ou pré-requisitos, como por exemplo, idade mínima e/ou quantidade de filhos já havidos antes de se submeter ao procedimento, como foi o caso da Alemanha, dos Estados Unidos, Dinamarca, Japão e Brasil sendo que os três últimos incluíram a necessidade de anuência do cônjuge.
Em pesquisa realizada no ano de 1977 sobre o tema, Sardon identificou dois países que exigiam consentimento do cônjuge para a realização do procedimento: a Dinamarca e o Japão. Ainda segundo a mesma pesquisa, em alguns países sequer existia regulamentação para a prática da esterilização voluntária, e sua previsão era de que boa parte dos Estados estavam mais propensos à facilitação do acesso ao procedimento, livre da exigência de pré-requisitos, inclusive da exigência de consentimento do cônjuge. Para esse autor, a tendência seria o abandono dessa prática.21 16
Nessa época, segundo esse autor, o Brasil estava entre os países mais favoráveis ao procedimento, enquanto a Espanha tendia a obstaculizar o acesso à esterilização. Entretanto, o país europeu, ao contrário do Brasil, acabou se tornando um dos países mais permissivos e liberais sobre o tema.
Segundo a jurista espanhola Maricruz Díaz de Terán a legislação espanhola que disciplina a proteção da saúde da mulher a partir dos avanços biomédicos é uma das mais progressistas da Europa. A Espanha outorgou às mulheres o controle de sua sexualidade e capacidade reprodutiva, promovendo sua liberdade e autonomia22 6. O preâmbulo da Lei Orgânica N° 2/2010 de 3 de março, prevê que a dignidade da pessoa e o livre desenvolvimento de sua personalidade pressupõe o desenvolvimento da sexualidade e a capacidade reprodutiva. Dispõe ainda, que esses pressupostos devem ser objeto de proteção, garantindo dessa forma, a integridade física e moral e a intimidade pessoal e familiar.
Antes mesmo da aprovação dessa lei, o país europeu já iniciava o caminho em busca de uma legislação menos punitiva e mais garantidora de direitos. O código penal espanhol, em 1995, excluiu de responsabilidade penal a realização do procedimento cirúrgico da esterilização, desde que com o devido consentimento livre e esclarecido da própria pessoa23 10. Posteriormente, sobreveio a regulamentação do consentimento, através da Lei 41/2002, em 14 de novembro de 2002, que tratou da autonomia do paciente e dos direitos e obrigações em informação e documentação clínica24 9. A referida lei reconheceu, como princípios básicos, a dignidade da pessoa, a autonomia de vontade, a exigência de consentimento livre e o direito de decidir livremente entre os tratamentos disponíveis, bem como o direito a não receber o tratamento, salvo exceções expressas na lei.
Por fim, a Lei Orgânica N° 2/2010, em matéria de esterilização voluntária, fez apenas a distinção entre as pessoas capazes e as incapazes, delegando às primeiras a decisão sobre o controle de natalidade, em respeito à autodeterminação individual, e às segundas permitiu o procedimento, porém com prévia autorização judicial25. Às autoridades públicas restou o dever de promover as condições necessárias para a tomada livre de decisões de forma responsável, sem quaisquer interferências, proporcionando a realização do procedimento dentro do serviço nacional de saúde.
Assim, notamos que a Espanha conseguiu traduzir em lei todos os textos internacionais que defendem a liberdade e autodeterminação individual, em especial da mulher. Na hora de decidir como normatizar o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, o país europeu optou por não interferir na escolha individual de cada pessoa, mostrando um verdadeiro interesse pela autonomia e pelas liberdades individuais. Além disso, a norma também prevê que as autoridades públicas devem oferecer e subsidiar os métodos contraceptivos mais comuns sem restrições legais, e caso a escolha seja pela esterilização, essa também deve ser respeitada, uma vez que ela se deve ao conjunto de valores morais que sustentam a escolha individual que compete a cada a pessoa.
Já o Brasil regulamentou o procedimento de esterilização voluntária bem antes do que a Espanha, no ano de 1996, através da Lei do Planejamento Familiar26 4. Atualmente, está-se discutindo, em sede de controle de constitucionalidade abstrato, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.097 do Distrito Federal (ADI 5.097/DF), exatamente, a exigência de consentimento do cônjuge, da companheira e/ou do companheiro, como condição para a realização do procedimento de esterilização voluntária. Os argumentos da ADI são de que essa exigência viola o princípio da dignidade humana, o direito à liberdade e à autonomia privada, nos termos do artigo 1°, III e artigo 5°, caput da Carta Magna.27 1
Ocorre que, a opção individual pelo procedimento não é incompatível com o planejamento familiar, uma vez que o princípio da dignidade da humana é a base de todos os demais direitos fundamentais, sendo ele mesmo o próprio fundamento da proteção à família e ao planejamento familiar. Por isso, não caberia ao Estado a imposição de restrições à autodeterminação pessoal quanto à liberdade de dispor do próprio corpo, e sim promover mecanismos que possibilitem o êxito nas escolhas das cidadãs e dos cidadãos quando aos seus direitos sexuais e reprodutivos, que incluem a esterilização voluntária, nos termos da parte final do artigo 226, § 7° da Constituição Federal de 1988.28
O ex-Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em seu relatório sobre a ADI entende que: "[...] tornou-se usurpação ao direito de disposição do próprio corpo, consubstanciada na exigência de consentimento de cônjuge ou companheiro (a) para realizar esterilização voluntária".29 5
Assim, o Procurador-geral compreende que o Estado extrapolou ao limitar as escolhas das pessoas capazes e autodeterminadas, usando como pretexto a proteção da família. Nesse contexto, o Estado estaria desrespeitando a dignidade da pessoa, fundamento da própria família, e ainda que: "A tutela jurídica não é concedida à família em si, que não possui interesse específico, mas aos indivíduos que a compõem, como forma de proteção à dignidade do ser humano"30. Nesse sentido, chega-se à conclusão que não deve ser prorrogativa estatal a intervenção quanto à procriação, especialmente através da imposição de restrições ao planejamento reprodutivo. Além disso, a tese de que uma decisão unilateral de realizar a esterilização poderia frustrar expectativas legítimas de outra pessoa não se sustenta, na medida que o contrário também é verdadeiro, ou seja, não se pode obrigar uma pessoa a procriar contra a sua vontade. Mesmo que o texto constitucional preze pelo comprometimento do casal, qualquer umas das hipóteses aventadas serão extremamente prejudiciais à pessoa diretamente envolvida, que se verá limitada em sua autonomia.31 Atualmente, a previsão normativa dos dois países se apresenta da seguinte forma:
Quadro 1. Normatização da esterilização voluntária no Brasil e na Espanha

Fonte: Elaborado pela autora
Nesse sentido, notamos que a Espanha forjou sua legislação com vistas a promover a liberdade do indivíduo, a partir de normas que i) limitam o poder do Estado sobre a pessoa e; ii) garantem o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, notadamente à esterilização voluntária, livre de qualquer óbice e em respeito as principais textos internacionais; iii) defendendo a liberdade e autodeterminação individual, em especial da mulher. E vai além, prevendo que as autoridades públicas têm o dever de ofertar e subsidiar os métodos contraceptivos mais usados. Assim, o país estará respeitando o conjunto de valores morais que sustentam a escolha individual que compete a cada a pessoa.
O que se observa na legislação espanhola é o respeito ao indivíduo, em especial a sua integridade física, através de uma legislação aberta, mas que observa e protege os princípios básicos da dignidade humana.
O autor Raúl Canosa Usera, definiu que o bem jurídico tutelado pela legislação e pela jurisprudência espanhola é uma concepção ampla da integridade pessoal, por assim dizer, em suas palavras:
La integridad personal abarcaría el cuerpo humano con todos sus componentes, desde las moléculas que forman sus genes, incluyendo por tanto la integridad genética, hasta su anatomía y apariencia, así como las potencialidades intelectuales y sensoriales, incluidas las que tienen que ver con la capacidad de experimentar dolor físico o padecimiento psicológico o moral.36 18
Nesse sentido, percebemos que ordenamento jurídico espanhol tomou como bem jurídico tutelado a integridade da pessoa, com respeito a autonomia corporal, parte da dignidade da pessoa e pressuposto de todos os direitos fundamentais. Assim, respeita-se o texto constitucional através da promulgação de leis que protegem a integridade dos titulares de direito frente aos riscos já existentes e aos riscos futuros.
Téran questiona a ambivalência da normativa espanhola que, tanto promove o acesso às técnicas de reprodução, quanto aos métodos contraceptivos. Especificamente, a autora indaga o novo papel do direito que aparece, no regramento espanhol, a serviço dos sujeitos de direito. Sua intenção é identificar quem e como devem ser valorados os desejos desses sujeitos37. Ela também se preocupa com relação à autonomia dada às menores de idade quanto as decisões sobre a sexualidade e a capacidade reprodutiva. Em seu entendimento, essa autonomia poderia implicar numa maior responsabilidade da mulher sobre as consequências de suas escolhas reprodutivos do que ao homem, promovendo a desigualdade entre ambos38 6. A autora ainda se ocupa em identificar o fato da lei espanhola desconsiderar por completo o outro da relação, ou seja, a normativa não se ocupa do papel do marido, dos pais no caso das menores, e do próprio "filho", uma vez que as decisões da mulher afetariam a eles.39
Em que pesem todas essas questões levantadas por Téran, a garantia do acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, sem embargos, por parte dos estados, ainda é muito mais positiva que negativa. Negar ou dificultar, impondo normas mais restritivas de direitos, não promoverá a igualdade entre homens e mulheres como preconiza a autora, pelo contrário, poderá implicar em maior desigualdade e violência, exatamente o que ocorre com a norma brasileira.
Nesse sentido, é imprescindível destacar que a igualdade entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e à reprodução, e o respeito à integridade da pessoa, prescinde de respeito mútuo40 19. Todos os textos internacionais apresentam a harmonia entre a decisão do casal quanto ao planejamento familiar, mas não exige que uma ação está condicionada ao consentimento de outra pessoa. O respeito às individualidades e a promoção da igualdade de direitos e de oportunidades entre as mulheres e os homens atuam como pano de fundo essencial de todas as normativas internacionais.
3. Considerações finais
Os avanços científicos modificaram a linha que separa o que somos, antes tida como imutável, do que podemos ser, ampliando a possibilidade de escolha para além do que é meramente dado (pela natureza ou por algum ente superior), a partir do incremento da autonomia privada das pessoas, que passaram a ter opção de escolher, no caso concreto, entre perpetuar ou não seu material genético. Com isso, ocorreu uma expansão da margem de liberdade e da autonomia pessoal, ultrapassando assim, os limites éticos conhecidos.41
Assim, a partir da análise apresentada no texto do conceito de Habermas com a "ampliação de contingência" e de Dworkin com o "deslocamento moral", pode-se entender que estas duas expressões sinalizam uma crise dos valores da tradição ético-moral ocidental para tratar e compreender as questões e problemas trazidos pelas rápidas mudanças na ciência, as quais hoje são objeto de reflexão da bioética, e suas aplicações nos diagnósticos, prognósticos e terapias médicas. Este novo horizonte, apresenta uma desafiante reformulação de problemas morais, jurídicos e políticos que o avanço destas novas tecnologias produzirá num futuro bem próximo.
Segundo Dworkin, em que pesem as diferentes convicções partilhadas por pessoas religiosas e por pessoas eruditas que utilizam a linguagem da ciência, algo em seus discursos é muito similar: tanto para os que entendem que Deus criou o mundo, quanto os que se baseiam na ciência acreditando na força cega da natureza, admitem a presença de uma linha divisória entre o que a natureza criou, tanto do ponto de vista da criação divina (Deus) como de um processo evolutivo natural (acaso), e o que a humanidade decide fazer com tudo isto.
Destaca o autor que, diante de temas tão intensos e frente a inovações científicas que acarretam mudanças profundas, modificam-se os valores de um extremo para outro. Deste modo, um período de estabilidade moral foi substituído pela insegurança moral, o que fez com que as pessoas recorressem ao termo "brincar de Deus", para designar o fato dos cientistas desvendarem e dominarem elementos da ciência que conferem poder sobre a natureza, ultrapassando o limite do que é (ou foi) considerado divino42. Neste contexto, surge o questionamento sobre como entender e explicar o que ocorreu para a passagem desta estabilidade moral para uma insegurança ou instabilidade moral.
Dworkin afirma que para tentar responder a estas questões deve-se levar em conta as diversas conseqüências da biotecnologia moderna e a 'estrutura geral' da experiência moral e ética, na medida em que a engenharia genética provocou uma profunda modificação no limite entre 'o que nos é dado naturalmente' e 'aquilo pelo que somos responsáveis'. A hipótese de Dworkin, baseia-se no fato de que o progresso das ciências e das técnicas, que outorgam aos homens um poder cada vez maior sobre o curso (natural) das coisas, multiplicaram os problemas éticos, através de um deslocamento que altera o limite entre a sorte e a escolha que estrutura todos os valores morais e, tal deslocamento ameaça tornar obsoleta uma grande parte deles. Em função desta ameaça é que surge a apreensão e insegurança quanto às convicções morais arraigadas na tradição ética ocidental.
A insegurança moral atual quanto às questões suscitadas pela biotecnologia moderna seria, para Dworkin, a sensação de que muitas das convicções morais venham a ser solapadas e, desta forma, a ocorrência de uma espécie de 'queda-livre moral', surgindo a necessidade de pensar sobre novos dilemas morais tendo um novo pano de fundo e com resultados incertos, bem como sobre novas questões éticas que nunca haviam sido pensadas pelo gênero humano.
Da mesma forma que Dworkin, Habermas argumenta que o deslocamento entre o acaso e a livre decisão mexe com a autocompreensão das pessoas, que são orientadas pela moral e estão preocupadas com a própria existência. Esse deslocamento conscientiza as pessoas das relações entre a autocompreensão moral e o interior da ética da espécie. Conforme o autor, essa estrutura está sintonizada com a forma pela qual as pessoas são vistas como seres da mesma espécie e pelo modo como cada uma delas é responsável pela sua trajetória de vida. Como nos explica Habermas, esta profunda modificação da estrutura geral das convicções normativas modernas se deve ao que ele chama de "ampliação da contingência".
Dworkin tem uma postura mais liberal que Habermas para resolver esse problema, na medida que propõe, como resposta, a construção de um conjunto de convicções morais básicas indispensáveis que enfatizem a liberdade individual e apresentem uma mostra de perigo para saúde antes de impor limites legais às novas tecnologias científicas. Ainda, fundamenta sua moralidade crítica na plenitude e na responsabilidade de cada vida humana sobre si mesma, onde cada pessoa deve ser livre para tomar suas próprias decisões.
Já Habermas trata da "moralização da natureza humana", ou seja, tornar inacessível uma tecnologia existente a partir de uma norma. Mas para ele, esse movimento não tem o sentido de uma "ressacralização", mas sim como uma "autoafirmação de uma autocompreensão ética da espécie".
Segundo o jusfilósofo, é necessário que seja reconhecida a autonomia de cada pessoa ao agir em prol de sua vida, mas questiona as alterações das bases da experiência moral da pessoa frente a "ampliação de contingência". Para ele, a mudança entre o acaso e a escolha autônoma interfere na estrutura geral da experiência moral de cada pessoa. A fronteira entre o acaso e a escolha é, segundo o autor, a base de nossos critérios de valor, e as novas tecnologias estariam fazendo desaparecer essa fronteira.43
Por tudo que foi exposto, percebemos que os avanços científicos na área da reprodução humana têm instigado os indivíduos, a sociedade e os Estados a pensar e/ou repensar qual o papel que cabe a cada um com relação a necessidade (ou não) de criação de leis mais ou menos restritivas. A partir do diálogo entre esses dois pensadores, identificou-se que a ética da tradição, por si só, não é suficiente para responder às questões suscitadas para a regulamentação dessas novas tecnologias.
Concretamente, a esterilização voluntária deu ao indivíduo o poder de modificar o que antes era "dado" pela natureza, alterando a auto compreensão da pessoa como um ser biologicamente projetado para a reprodução. O desaparecimento da fronteira entre o que é dado e o que pode ser modificado traz à tona uma reflexão sobre os limites entre o que a pessoa é enquanto ser moral, e o que pode ser feito com isso. Paralelamente, surgiu a necessidade de normatizar o procedimento, que pode ser feita de duas formas: i) facilitando seu acesso, numa perspectiva mais Dworkiniana44 19 18 ou, pelo contrário, ii) impondo limites, numa ode à moralização da natureza humana desenhada por Habermas.45
Por fim, com relação aos dois países pesquisados, pode-se identificar que no Brasil, o tratamento dado à esterilização voluntária possui dupla complexidade: primeiramente pelo fato de ser tratada como uma faceta do planejamento familiar, ao invés de uma visão alinhada com os documentos internacionais de promoção dos direitos humanos, que o percebem como uma questão de saúde reprodutiva; e segundo, porque a imposição de limites para o acesso ao procedimento, pensada a partir dos valores privados preconizados por Dworkin, desrespeita os valores derivados inerentes à cada pessoa, exatamente o oposto ao que ocorre na Espanha.