1. Introdução
Nos últimos anos, casos envolvendo a morte de crianças em razão da suspensão do suporte vital, mesmo com a contundente oposição dos pais, alcançaram ampla repercussão mundial. Em um cenário de verdadeira "guerra cultural" sobre a solução adequada e os valores em jogo, faz-se necessário um debate transdisciplinar sobre o conteúdo do princípio do melhor interesse da criança e a extensão dos poderes-deveres decorrentes da autoridade parental.(1) Poderia a morte, em determinadas situações, representar o melhor interesse da criança? Ou, por outro lado, a manutenção da vida biológica, em quaisquer circunstâncias, indica sempre o melhor caminho a ser seguido? Quais são as pessoas habilitadas a participar do processo decisório: os pais, os médicos, os juízes? A quem cabe a decisão final em caso de desacordo? Estas são algumas das questões que se colocam urgentes em um cenário de rápida e constante evolução biotecnológica em que a possibilidade de manutenção da vida humana se torna cada vez mais apurada, nem sempre representando a melhor alternativa para o paciente.
Dois casos servirão de pano de fundo para as discussões deste artigo. O primeiro diz respeito à Charlie Gard, nascido em agosto de 2016, na cidade de Londres.(2) Inicialmente tratado como uma criança saudável, logo começou a manifestar problemas em seu desenvolvimento, com dificuldades em sustentar o peso do seu corpo e da sua cabeça, perda de peso e de força muscular, o que acabou por levar à sua internação no Great Ormond Street Hospital, apenas oito semanas após o seu nascimento. A avaliação médica identificou uma rara condição genética em suas mitocôndrias, dificultando a produção energética em suas células. A síndrome de depleção do DNA mitocondrial, em sua forma encefalomiopática, tem como principal consequência o progressivo enfraquecimento muscular e danos ao cérebro, sem possibilidade de cura no atual estado da arte. Suas consequências são severas e devastadoras, desenvolvendo-se rapidamente. Segundo os médicos responsáveis pelo caso, os principais sintomas de Charlie eram: a) progressiva incapacidade respiratória, sendo indispensável a utilização da ventilação artificial; b) progressivo enfraquecimento muscular, resultando em problemas respiratórios e na impossibilidade de movimentação dos braços, pernas e dedos, além da incapacidade em abrir os olhos de maneira voluntária, o que poderia levar a uma deficiência visual; c) ausência de sinais normais de atividade cerebrais, tais como responsividade e interação com o mundo externo; d) perda sensorial da audição; e) índices de lactato persistentemente elevados, o que foi fundamental para o diagnóstico da síndrome.(3)
Apesar da gravidade de sua condição, seus pais continuaram a buscar todos os meios disponíveis para tentar reverter o seu quadro clínico, encontrando em Michio Hirano uma alternativa viável. O renomado neurologista e professor da Universidade de Columbia já havia realizado pesquisas sobre doenças genéticas semelhantes à de Charlie, relatando melhorias pontuais na qualidade de vida de seus pacientes, embora nunca houvesse realizado qualquer pesquisa sobre a síndrome específica do bebê britânico. A mínima esperança de melhoria levou Connie Yates e Chris Gard a uma campanha de financiamento coletivo no Reino Unido em busca de arrecadação para o dispendioso tratamento nos Estados Unidos. O engajamento popular foi rápido e amplo, atingindo a meta necessária em pouco tempo. Acontece que, ao fazer o pedido de transferência com a finalidade de realizar o tratamento experimental, iniciou-se uma longa e exaustiva batalha judicial, uma vez que os médicos entendiam não ser o melhor interesse da criança, alegando, dentre outras coisas: o caráter experimental do tratamento, com ausência de qualquer tipo de teste científico; a possibilidade irrisória de melhorias significativas no estado de saúde de Charlie; bem como a possibilidade de dor e sofrimento no transporte e na implementação do tratamento.
Após manifestações da Alta Corte de Londres, da Corte de Apelação de Londres, da Suprema Corte e da Corte Europeia de Direitos Humanos, a decisão originária se manteve: a transferência não seria realizada no melhor interesse da criança. Ademais, tendo em vista as condições e o prognóstico de Charlie, a solução adequada seria a suspensão do suporte vital e o direcionamento a uma clinica de cuidados paliativos para uma morte digna e sem dor. No dia 28 de julho de 2017 foi confirmado o falecimento de Charlie Gard.
O segundo caso também ocorreu na Inglaterra, porém na cidade de Liverpool. Além da proximidade geográfica, diversos outros aspectos se assemelham ao cenário apresentando anteriormente. Alfie Evans nasceu em maio de 2016, com as características de uma criança saudável. Em pouco tempo, seus pais notaram um estrabismo divergente, bem como a falta de interação com o ambiente e uma dificuldade no controle de sua cabeça. Com seis meses, Alfie apresentava sinais claros de um desenvolvimento mental deficiente. Em dezembro, ocorreu a sua internação no Alder Hey Hospital em razão de febre e tosse intensas, chegando a manifestar crises convulsivas. A dificuldade respiratória, com episódios de apneia, somada à impossibilidade de identificar uma resposta neurológica à dor, culminou na sua transferência para uma unidade de cuidados intensivos e na introdução da ventilação artificial. Apesar dos diversos especialistas envolvidos no caso, a doença não chegou a ser diagnosticada com precisão, embora houvesse um consenso sobre se referir a uma severa doença degenerativa do cérebro, provavelmente decorrente de uma disfunção mitocondrial, sem nenhum tratamento que pudesse reverter ou melhorar seu quadro clínico.(4)
Tendo em vista as convulsões, a ausência de qualquer resposta a estímulos externos, a impossibilidade de respiração autônoma e, principalmente, diante da irreversibilidade dos graves danos causados ao cérebro de Alfie, o hospital decidiu ajuizar uma ação pedindo a retirada da ventilação artificial e a manutenção dos cuidados paliativos, pois seria a atitude a ser tomada no melhor interesse da criança. Não havia, segundo a argumentação desenvolvida, nenhuma viabilidade de uma vida com o mínimo de qualidade, sendo qualquer tratamento fútil na situação vivenciada, além da incapacidade de se aferir com precisão a presença de dor e de sofrimento.
Thomas Evans e Kate James, embora muito jovens, se opuseram firmemente ao pedido do hospital. Apesar de reconhecerem a gravidade da doença, recusaram-se a renunciar à esperança, buscando vias alternativas para o tratamento. O principal requerimento dos pais buscava a permissão de transferência de Alfie para o Ospedale Pediatrico Bambino Gesu, em Roma, onde seriam realizados procedimentos de traqueostomia e gastrostomia. Assim como se observou no caso de Charlie, houve ampla comoção social, angariando apoio popular e político, inclusive com a obtenção da cidadania italiana com intuito de facilitar a transferência.(5)
Não obstante à veemente contestação dos pais, após todo o trâmite jurídico disponível, a decisão se manteve a mesma: entendeu-se que o melhor interesse da criança direcionava a ação no sentido da retirada da ventilação artificial e manutenção dos cuidados paliativos para a implementação de uma boa morte, com dignidade e sem sofrimento. Os argumentos se centraram especialmente nos danos extensos e irreversíveis ao cérebro e na perspectiva de uma vida com dor e sofrimento. Alfie Evans faleceu no dia 28 de abril de 2018.
Tendo em vista o contexto apresentado, busca-se responder, ainda que de maneira parcial e provisória, ao seguinte questionamento: é possível que a morte seja entendida como o melhor interesse da criança em determinadas situações? Para tanto, será analisado o conteúdo do princípio do melhor interesse e o seu suposto conflito com a autoridade parental, além da busca por parâmetros subjetivos e objetivos para orientar decisões desse gênero.
2. Melhor interesse da criança e autoridade parental
O princípio do melhor interesse da criança tem sua origem no instituto inglês do parens patriae, compreendido "como uma prerrogativa do Rei em proteger aqueles que não poderiam fazê-lo em causa própria".(6) O direito norte-americano é importante no desenvolvimento da doutrina do melhor interesse, sendo mencionada no caso Commonwealth v. Addicks, em 1813, no qual se atribuiu a guarda da criança à mãe acusada de adultério, sob o fundamento de que há uma prioridade do interesse da criança em detrimento do interesse dos pais.(7) No direito costumeiro inglês há vários precedentes que serviram de fundamento para o delineamento do instituto, embora a primeira menção expressa tenha ocorrido no caso Finlay v. Finlay, em 1925, estabelecendo que "em hipótese de conflitos entre os interesses da criança e os interesses de seus pais, são os primeiros que devem prevalecer".(8)
Não obstante a essas manifestações do princípio do melhor interesse da criança, foram as declarações internacionais de direitos humanos as grandes responsáveis pela difusão do instituto e a sua consequente incorporação em diversos ordenamentos jurídicos. O principal marco, nesse sentido, é a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1989, com o objetivo de efetivar a proteção especial à criança e ao adolescente. Em seu art. 3º fica estabelecido que "todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança". Entende-se que houve um erro na tradução do termo original, "best interests of the child", na medida em que este impõe um critério qualitativo (melhor interesse), e não quantitativo (maior interesse).(9)
Exemplo da incorporação interna do princípio do melhor interesse pode ser encontrado na Constituição da República de 1988, dispondo que é dever da família, da sociedade e do Estado a efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, com absoluta prioridade.(10) No mesmo sentido, pode-se mencionar as normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), inclusive com a repetição do dispositivo constitucional, além de apresentar mecanismos específicos para a sua proteção integral.
O principal problema envolvendo a aplicação desse princípio, diz respeito ao seu conteúdo. Não é possível estabelecer um substrato apriorístico a essa norma, pois, sendo um princípio jurídico, apenas indica um caminho a ser seguido, não admitindo uma aplicação de maneira tudo ou nada.(11) Mesmo autores positivistas, como Hart, já apontavam a textura aberta do direito, inerente à natureza da linguagem - imprescindível ao texto normativo. Essa característica, presente em maior ou menor grau nas normas jurídicas, exige uma postura ativa do intérprete no momento da aplicação, preenchendo o seu conteúdo nos limites do caso concreto, com base nos precedentes judiciais e na mais ampla argumentação possível.(12) Ainda, pode-se mencionar a natureza de cláusula geral do melhor interesse da criança, perspectiva muito trabalhada no âmbito do direito privado, principalmente a partir do Código Civil de 2002. A cláusula geral representa uma técnica legislativa que, pela sua redação mais ampla e generalista, exprime uma vagueza semântica, possibilitando a permanente ressignificação e reconstrução das normas, bem como a abertura do sistema jurídico a outros tipos de argumentação.(13)
Assim, pode-se concluir que não há um feixe de comandos definidos a priori, ou mesmo uma tipicidade cerrada, do princípio do melhor interesse da criança. O que se tem é a indicação de uma direção a ser seguida em busca da proteção e do livre desenvolvimento da criança, previsto desde a gênese do instituto. Contudo, embora seja da sua própria essência a amplitude semântica, é necessário estabelecer ao menos um conteúdo mínimo para sua aplicação, sob pena de se esvair a importância e utilidade do princípio.(14) A partir do exposto, pode-se afirmar que o substrato basilar do princípio do melhor interesse é a proteção e efetivação dos direitos fundamentais da criança.(15) Dessa maneira, o caso concreto é indispensável para a delimitação mais precisa dos seus contornos normativos, sempre em diálogo próximo com outras áreas do conhecimento, especialmente a ética e a medicina em casos de terminalidade.
A autoridade parental, por outro lado, pode ser vista como um múnus atribuído aos pais com a finalidade de orientar a criação dos seus filhos. O direito estabelece uma série de poderes-deveres que servem como parâmetros ao exercício da autoridade parental, razão pela qual não se pode falar em um espaço de autonomia - ao menos em seu sentido mais clássico e negocial.(16) Não se afirma que os pais não possuem direito de escolha e direcionamento na criação de seus filhos, inclusive na tomada de decisões médica, mas apenas que esses direitos devem ser sempre direcionados à proteção e ao livre desenvolvimento da criança. Em síntese, sempre que haja a efetivação de direitos fundamentais, pode-se falar em exercício legítimo da autoridade parental, razão pela qual não existe uma relação de oposição ao princípio do melhor interesse na criança, mas de complementariedade ou conformação.
Desse modo, reafirma-se que não há um conflito entre o princípio do melhor interesse da criança e autoridade parental, uma vez que ambos almejam o mesmo fim. O que pode acontecer é uma dissonância quanto ao conteúdo dessas normas, haja vista sua abertura semântica. Por essa razão, faz-se necessário debater sobre alguns parâmetros para a tomada de decisões em casos dessa natureza.
3. Parâmetros subjetivos
A quem cabe as decisões nos casos de crianças em estado de terminalidade? Quais são os sujeitos que devem estar envolvidos na tomada de decisão sobre a transferência, a mudança de tratamento, ou mesmo sobre a suspensão do suporte vital?
O primeiro aspecto que deve ser levantado, diz respeito ao contexto em que as decisões desse tipo são tomadas. Em razão da situação de terminalidade da vida, a maioria das escolhas são tomadas em um ambiente hospitalar, motivo pelo qual a relação médico-paciente se torna um elemento central ao debate. Há muito se discute, especialmente no contexto da ética médica, sobre a mudança no paradigma na relação médico-paciente. Se, em um primeiro momento, esta se coloca de maneira verticalizada, na qual o médico é o detentor de todo o conhecimento e, portanto, impõe sua visão de mundo e suas escolhas sobre o seu objeto de análise, hoje a situação caminha para um modelo bastante distinto. O paciente passa a ocupar posição de destaque na relação, tornando-se o sujeito central do processo decisório, haja vista ser o principal afetado. Afasta-se, desse modo, a visão positivista da ciência médica, em prol de um modelo humanizado e horizontal, em que médico e paciente devem colaborar no processo de tomada de decisão, cabendo ao primeiro a função primordial de informação e esclarecimento s obre as possibilidades e riscos de cada opção disponível.(17)
Há uma tendência, na bioética e no biodireito, em adotar a medida que possibilite o exercício de autonomia futura ao paciente menor de idade, oportunizando o direito de escolha em um momento posterior, ao invés de eliminá-lo por completo.(18) É o que ocorre, por exemplo, nos casos em que se impõe a transfusão de sangue de filhos de testemunhas de jeová.(19) Ocorre que, nos casos em estudo, não havia a possibilidade de exercício de autonomia, presente ou futura, por parte de Charlie e Alfie, seja pela tenra idade, seja em razão dos irreversíveis e devastadores danos cerebrais.
Assim, eram seus pais, na condição de representantes legais e titulares da autoridade parental, que possuíam o direito prima facie de tomar as decisões em nome e no melhor interesse das crianças. É o que ocorre no direito inglês, em que repousa sobre os pais uma presunção relativa de que sempre irão atuar no melhor interesse dos seus filhos, como decorrência do princípio da autonomia.(20) Ainda assim, deve haver a participação da junta médica envolvida diretamente no caso, mesmo porque se trata de uma relação médico-paciente, sendo a sua presença essencial para uma decisão livre e esclarecida.
A questão se torna mais complexa quando há a discordância entre os pais e os médicos responsáveis pelo caso. Se é dever da família, da sociedade e do Estado a efetivação dos direitos fundamentais da criança, os médicos estão legitimados a contestar a decisão dos pais caso julguem não ser no melhor interesse da criança. Nesse contexto, uma alternativa que deve ser implementada com urgência se refere aos métodos de autocomposição dos conflitos, tais como a mediação e a conciliação, sempre conduzida por uma equipe especializada. Com isso, evita-se a exposição midiática e o desgaste emocional vivenciado nos longos e exaustivos processos judiciais - muitas das vezes ineficientes e alheios às vicissitudes do caso.(21)
Assim, tendo em vista a necessidade de uma decisão rápida, justa e no melhor interesse da criança, a autocomposição se apresenta como uma alternativa indispensável, na medida em que viabiliza "uma construção dialógica para a solução das controvérsias [...], subvertendo a lógica hegemônica da cultura do litígio", além de privilegiar e respeitar "os saberes e os desejos dos envolvidos, de forma a desconsiderar as alternativas tradicionais, quando incoerentes ou incompatíveis com as expressões volitivas que ascendem dos próprios mediados".(22)
Se, mesmo assim, não se atinja um consenso, a decisão deverá recair, inevitavelmente, no âmbito judicial. Nessa hipótese, muito mais importante será o conteúdo da decisão, o que será tratado no próximo tópico.
4. Parâmetros objetivos
Já se afirmou a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais da criança em qualquer decisão, afinal, trata-se do conteúdo mínimo do princípio do melhor interesse. Não obstante, reconhece-se que a concreção dessa norma demanda outros critérios que possam guiar a solução adequada. Desse modo, em situações de terminalidade da vida infantil, quais outros parâmetros podem orientar a tomada de decisão judicial? Trata-se de uma pergunta que não admite fuga, pois há muito se defende que o problema central da "ciência dogmática do direito" é a decidibilidade dos conflitos.(23)
Decisões desse gênero costumam adotar uma linha condutora central: a preservação da vida da criança, seja em razão da sua vulnerabilidade e da necessidade de proteção, seja em razão da efetivação de uma autonomia futura. Concorda-se com esse posicionamento: deve haver uma presunção de que a manutenção da vida é o caminho que melhor concretiza o princípio do melhor interesse da criança.(24) Não obstante, deve-se interpretar essa presunção de maneira relativa, como um posicionamento que admite exceções.
O que mais se sobressai nos casos em estudo é justamente o caráter excepcional, oposto ao que normalmente ocorre em contextos de terminalidade ou tomada de decisões médicas envolvendo crianças. Embora os pais tenham batalhado pela permanência do suporte vital, em busca da cura a todo custo, os médicos entenderam que a suspensão e os cuidados paliativos indicavam o melhor caminho, ainda que ocasionasse a morte.(25)
Como já se evidenciou ao longo do artigo, não se pode utilizar a autonomia como parâmetro para solução dos casos em análise, todavia, a bioética não se resume a esse princípio.(26) Defende-se, portanto, a necessidade de se utilizar como parâmetro nas decisões de terminalidade da vida infantil os princípios da beneficência e da não-maleficência. Grosso modo, entende-se que o princípio da beneficência "refere-se à obrigação moral de agir em benefício de outros", aproximando-se de uma abordagem paternalista, enquanto o princípio da não-maleficência "determina a obrigação de não infligir dano intencionalmente".(27) Assim, deve-se verificar: a) se há alguma possibilidade de dano e sofrimento causado pela manutenção do suporte vital, transferência ou tratamento experimental; b) se há alguma possibilidade de benefício caso ocorra alguma das hipóteses mencionadas.
Parece ter sido essa a linha condutora adotada pelo Nuffield Council on Bioethics na busca por critérios mais objetivos para a aplicação do princípio do melhor interesse da criança. Segundo o Conselho de Ética do Reino Unido, deve-se analisar os seguintes pontos:
Que grau de dor, sofrimento e distúrbio mental o tratamento infligirá à criança?
Que benefícios futuros a criança obterá do tratamento, por exemplo, a criança será capaz de sobreviver independentemente do suporte de vida, será capaz de estabelecer relacionamentos com outras pessoas e será capaz de sentir prazer de qualquer tipo?
Que tipo de apoio é provável que esteja disponível para fornecer o cuidado ideal para a criança?
Quais são os pontos de vista e sentimentos dos pais quanto aos interesses da criança?
Por quanto tempo a mais é provável que a criança sobreviva se o tratamento de suporte vital continuar? (28)
Partindo desses parâmetros, entende-se ser possível uma aplicação mais consistente do princípio do melhor interesse da criança, embora não seja um critério definitivo e taxativo. Outros tipos de argumentação podem e devem adentrar no discurso, especialmente no âmbito processual, possibilitando uma ampla análise dos pressupostos fáticos, éticos e jurídicos envolvidos em cada caso.
5. Considerações finais
Os recentes casos envolvendo a suspensão do suporte vital de crianças em situação de terminalidade, mesmo com robusta oposição dos pais, revelam a necessidade de um debate aberto e transdisciplinar sobre os limites dos cuidados médicos, a extensão da autoridade parental e o conteúdo do princípio do melhor interesse da criança.
O princípio do melhor interesse foi originalmente desenvolvido como um mecanismo de proteção dos interesses das crianças, mesmo em contraposição aos interesses dos pais ou de terceiros. A textura aberta desse princípio, constituído por meio da técnica das cláusulas gerais, implica na necessidade de se estabelecer seus contornos dogmáticos e éticos a partir de casos concretos, levando em consideração os precedentes judicias e a mais ampla argumentação em busca da solução adequada ao contexto. Todavia, sob pena de se tornar um mero recurso oratório, sem efetiva utilidade prática, deve-se estabelecer um conteúdo mínimo ao princípio do melhor interesse: a efetivação, na maior medida do possível, dos direitos fundamentais da criança.
A autoridade parental não deve ser compreendida como um poder autônomo dos pais, uma vez que representa um múnus a ser exercido sempre no melhor interesse da criança. Certamente há um espaço para a escolha e o direcionamento na criação dos filhos, haja vista a pluralidade de visões de mundo e de percepções de vida boa, mas sempre condicionado à proteção e ao livre desenvolvimento da criança. Não há, portanto, uma relação de oposição, mas de complementariedade entre o melhor interesse da criança e a autoridade parental.
Se é dever da família, da sociedade e do Estado a efetivação dos direitos fundamentais da criança, a tomada de decisão em casos de terminalidade deve ser realizada por todos aqueles diretamente envolvidos nas circunstâncias: a criança, quando possível e na medida do seu discernimento; os pais, na condição de titulares da autoridade parental; e os médicos, sempre no exercício de uma relação dialógica e horizontal. Em casos de conflito, deve haver uma prioridade para os métodos de autocomposição, uma vez que possibilita aos próprios afetados a resolução do problema, evitando o desgaste emocional envolvido em procedimentos judiciais dessa natureza.
Caso a autocomposição não seja bem-sucedida, a decisão recairá na via judicial. Nesse contexto, tentou-se estabelecer alguns parâmetros para a tomada de decisão, podendo ser entendidos como cânones interpretativos para o princípio do melhor interesse da criança em casos de terminalidade da vida. Não sendo possível nenhum tipo de vivência autônoma por parte da criança, em momento presente ou futuro, outros princípios bioéticos devem ser analisados, especialmente a beneficência e a não-maleficência. Assim, deve-se adotar a alternativa que cause as maiores vantagens ao paciente, abstendo-se de escolhas capazes de causar danos e sofrimento.
Não sendo possível a conclusão sobre os prováveis benefícios ou a existência de danos à criança, havendo, portanto, um desacordo razoável sobre alternativa mais adequada, defende-se que a decisão deve ser atribuída aos pais. Por outro lado, nos casos em que fique comprovada a futilidade do tratamento e, principalmente, a possibilidade de dor e sofrimento por parte da criança, o caminho deve ser em direção a uma morte digna.
Na análise dos casos apresentados, entendemos ter sido tomada a decisão adequada ao contexto, principalmente em razão da irreversibilidade dos danos cerebrais, sem qualquer possibilidade de autonomia futura ou mesmo de abertura ao outro, no sentido de alteridade. Assim, embora o conceito de vida boa seja indefinido e plural, não se vislumbra qualquer manifestação de pessoalidade que justificasse a manutenção do suporte vital. Necessário destacar que não havia nenhum tratamento capaz de reverter ou melhorar a situação clínica de Charlie e Alfie, adentrando no âmbito da futilidade médica (princípio da beneficência). Ainda, embora houvesse a ausência de resposta a estímulos externos, não sendo possível afirmar com certeza a presença de dor e sofrimento, partindo de critérios objetivos, é provável que a situação vivenciada nos casos relatados fosse permeada por dor e sofrimento (princípio da não-maleficência).