1. Introdução
Uma pergunta comumente feita por crianças, sobretudo pela curiosidade em entender como a vida humana é gerada, é a famosa: "De onde vêm os bebês?". Diante disso, de modo provocativo, fora propositadamente escolhida para integrar o título do presente trabalho, tendo em vista que, dadas as intensas mudanças trazidas pela biotecnologia reprodutiva, hoje em dia, responder tal questionamento já não é mais tão simples como antes. Os progressivos avanços nesse campo têm aproximado cada vez mais a ficção científica da realidade. Afinal, é imperioso levar em consideração o caráter revolucionário e inovador das descobertas científicas, ainda quando elas pareçam estar anos à frente, pois, rapidamente, esse futuro longínquo pode tornar-se o presente quotidiano.
Nessa toada, é imperioso destacar que pesquisas recentes, no campo da reprodução humana assistida (RHA), vêm sendo desenvolvidas no intuito de conceber a figura de um útero artificial. Tal tecnologia, por sua vez, teria o condão de viabilizar a ectogênese, ou seja, a possibilidade de garantir o desenvolvimento gestacional de seres humanos de forma extracorpórea. Desse modo, se esse procedimento conseguir ser efetivamente implementado, tal feito revolucionará, mais uma vez, o campo da biotecnologia reprodutiva. Por outro lado, também implicará fomento do debate em torno dos parâmetros éticos e jurídicos que norteiem a sua utilização.
Levando isso em consideração, a ciência jurídica não pode ausentar-se das discussões em torno da legitimidade de uso, das circunstâncias de sua aplicação e dos limites éticos no manejo dessas tecnologias prospectivas. Afinal, o Direito tem como sua função primordial a garantia da regulamentação do convívio social em suas diversas esferas, prezando sempre pelo desenvolvimento da personalidade e pelo respeito à Dignidade na realidade social.
Diante disso, o presente trabalho partiu da seguinte problemática: quais as possíveis repercussões jurídicas, no campo da filiação, oriundas do desenvolvimento da tecnologia do útero artificial que seja capaz de viabilizar a ectogênese para os seres humanos?
Assim sendo, visou-se estudar, a partir do panorama jurídico brasileiro, os possíveis impactos que o desenvolvimento efetivo da técnica do útero artificial possa vir a causar na atribuição dos vínculos jurídicos de filiação. Com tal finalidade, o artigo buscou: a) compreender o conceito de ectogênese e investigar as recentes pesquisas em matéria de útero artificial; b) entender quais são os parâmetros éticos elencados para balizar o desenvolvimento de novas tecnologias no campo biomédico; e, c) ponderar a respeito da atribuição dos vínculos materno-paterno-filiais em contextos de ectogênese, a partir da perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, o presente trabalho pautou-se na técnica da pesquisa bibliográfica, a fim de investigar o estado da arte no que tange às pesquisas em torno do desenvolvimento da tecnologia gestacional extracorpórea de seres humanos. Ademais, foram empregados o método de raciocínio analítico-dedutivo e a análise qualitativa, com a finalidade de desenvolver um embasamento teórico-jurídico que levantasse os parâmetros de atribuição dos vínculos de filiação quando do recurso ao útero artificial.
2. O útero artificial: o estado da arte nos avanços das pesquisas em torno da efetividade da gestação extracorpórea
Não há como negar que os avanços tecnológicos vêm causando grandes transformações nas noções tradicionais de reprodução e de intervenção médica no processo reprodutivo. Diante disso, é interessante destacar que algumas pesquisas e experimentos já vêm sendo feitos em torno do desenvolvimento extracorpóreo de embriões e fetos, os quais, futuramente, podem vir a culminar na criação do chamado útero artificial. Na opinião do médico e biólogo Henri Atlan (2006, p. 29), tal fato aconteceria dentro de cinquenta ou cem anos. No entanto, pode-se dizer que os recentes avanços da medicina reprodutiva, os quais serão comentados a seguir, encaminham-se para talvez encurtar esse prazo previsto por Atlan em 2006.
Fala-se, então, na figura da ectogênese - combinação das palavras "ecto" (fora) e "genesis" (origem, início) -, termo esse que foi inventado pelo geneticista John Haldane, em 1923 (Atlan, 2006, p. 20), e que, no dizer de Takala (2009, p. 188), é geralmente utilizado, na literatura bioética, para se referir a diversos meios nos quais a gravidez típica da espécie (gestação intrauterina) é substituída por meios alternativos de desenvolvimento do embrião. Diz-se, ainda, que, para alguns, ela representaria apenas e somente o recurso aos "úteros artificiais ou mecânicos", enquanto, para outros, significaria também a inclusão da possibilidade de criarem-se condições semelhantes às de um útero em outro lugar do corpo, o qual pode ser tanto masculino, quanto feminino. Note-se, porém, que, para os fins do presente artigo, o emprego da palavra ectogênese referir-se-á apenas à primeira definição, considerando-se métodos de desenvolvimento gestacional extrauterinos e extracorpóreos.
Acerca do tema, leciona Coutinho (2018, p. 1-2) que, se já existem tecnologias que possibilitam tanto o início da gestação fora do corpo feminino (como o desenvolvimento in vitro de embriões até 5 ou 6 dias antes da sua implantação), quanto à redução do tempo necessário de gestação intrauterina (a partir da manutenção de bebês prematuros em incubadoras), não é de se espantar que a biotecnologia reprodutiva esteja caminhando também para a garantia de gestações extracorpóreas. Nessa continuidade, a autora elenca algumas pesquisas que demonstram a viabilidade de, em um futuro não tão distante, tais tecnologias tornarem-se realidade, apontamentos esses que foram atualizados pela presente pesquisa, a partir de novas descobertas e aprimoramentos na matéria:
na década de 80, Yoshiro Kuwabara, Presidente do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade de Juntendo, em Tóquio, criou uma placenta artificial, contendo líquido amniótico sintético, a fim de tentar reproduzir o ambiente uterino materno. Nela, realizou experimentos com animais, nos quais retirava um cabrito, cinco semanas antes do termo da gestação, e colocava-o na incubadora para desenvolver-se de forma extracorpórea, tendo sido necessários nove anos até que um desses animais conseguisse sobreviver nesse ambiente artificial. Essa técnica, a qual fora denominada "extrauterine fetal incubation" (EUFI) possibilitou a manutenção desses fetos de cabrito, em tais ambientes artificiais, por até três semanas, apresentando problemas com falhas circulatórias e outras dificuldades técnicas (Klass, 1996, p. 117);
a Dra. Helen Liu, pesquisadora da Universidade de Cornell, em Nova Iorque, desenvolveu a chamada "co-cultura", na qual criou, em uma mesma proveta, um embrião e um tecido uterino. Para ela, a chave para compreender a gestação intrauterina e, posteriormente, criar o útero artificial está no conhecimento a respeito da implantação do embrião no útero, de modo que, juntamente com sua equipe, utilizou-se de embriões descartados em procedimentos de fertilização in vitro (FIV)(1) para testar tal ferramenta (Simonstein, 2006, p. 316). Em 2002, na sequência dos seus estudos, desenvolveu um rato, no que seria um esboço de útero artificial, mas o animal não nascera saudável. Para alguns, o sistema de "co-cultura" concebido pela Dra. Liu permitiria o desenvolvimento de novas formas de estudo para as relações embrio-maternais e, consequentemente, auxiliaria na concepção de um "endométrio artificial" (Bulletti; Palagiano; Pace; Cerni; Borini; Ziegler, 2011, p. 125);
nos Estados Unidos, a fim de salvar bebês prematuros extremos (com menos de 20 semanas), pesquisadores desenvolveram a ventilação líquida, a qual, para Diana Coutinho (2018, p. 2), poderá ser um dos componentes do futuro útero artificial;
em 2016, na Universidade de Cambridge, pesquisadores lograram manter embriões humanos fora do útero materno por 13 dias - ultrapassando o record anterior de 9 dias -utilizando uma mistura de nutrientes que simula o ambiente uterino. Tal conquista já permitira que os cientistas descobrissem novos aspectos do desenvolvimento humano inicial, incluindo características nunca antes vistas em embriões humanos. Entretanto, maiores descobertas não foram possíveis, tendo em vista o fato de que as guidelines internacionais em matéria de pesquisa em embriões humanos não autorizam o seguimento desses estudos para além do 14º dia (Reardon, 2016, p. 5-6);
em 2017, investigadores do Hospital Pediátrico da Filadélfia (HPF), liderados pelo cirurgião fetal e pediátrico Alan Flake, criaram um protótipo de útero artificial, o qual fora chamado de "biobag womb" que constitui uma alternativa às incubadoras convencionais. Com ela, experimentou-se desenvolver cordeiros prematuros de forma extracorpórea, tendo se destacado, especialmente, pela sua simplicidade em comparação a outras incubadoras (Couzin-Frankel, 2017). Ocorre que, na placenta, o feto desenvolve-se em um ambiente único, no qual lhe são fornecidos oxigênio e nutrientes, visto que seus pulmões não respiram o ar. Assim, eles flutuam no líquido amniótico, que é engolido pelo feto e criado pela micção fetal, estando sempre em constante reconstrução. Sendo assim, a "biobag womb" é composta por uma bolsa selada que contém um tubo que fornece líquido amniótico e outro que o drena, trocando o líquido ao invés de recirculá-lo. (Ver Fig. 1)

Fonte: Jennifer Couzin-Frankel. Fluid-filled 'biobag' allows premature lambs to develop outside the womb (2017)
Figura 1. "Biobag Womb", desenvolvida pelo HPF.
Note-se que, a partir desses novos experimentos, os resultados foram, no geral, positivos, observando-se apenas algumas complicações modestas, como inflamação pulmonar (Couzin-Frankel, 2017).
em 2019, um grupo de pesquisadores da Divisão de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Western (UW), Austrália, e do Centro para Medicina Perinatal e Neonatal do Hospital Universitário de Tohoko (HUT), Japão, publicaram um segundo teste do seu "ex-vivo environment platform" (EVE platform), o qual, após algumas adaptações da versão original de 2017, possibilitou o melhoramento nas taxas de sobrevivência (87,5%) de cordeiros extremamente prematuros (no equivalente à 24 semanas de gestação humana), submetidos ao tratamento por um período de 120 horas (Usuda; Watanabe; Saito; Sato; Musk; Fee; Carter; Kumagai; Takahashi; Kawamura; Hanita; Kure; Yaegashi; Newnham; Kemp, 2019, p. 69.e2; Romanis, 2020, p. 394). O mecanismo, por sua vez, é bem similar ao da "biobag womb", utilizando uma bolsa selada que contém um líquido amniótico quente no qual o feto fica imerso (Romanis, 2020, p. 394), como se observa da imagem seguinte:

Fonte: Hitoshi Inada. Artificial womb raises hope for premature babies (2017)
Figura 2. EVE platform, desenvolvida pelos pesquisadores da UW e do HUT.
Note-se que, se os mencionados estudos e pesquisas aprimorarem-se e realmente vierem a ser produzidos úteros artificiais efetivos, eles poderão tornar-se uma nova alternativa reprodutiva para aqueles que precisam do auxílio da gestação por substituição (GS)(2) no procedimento de RHA. Por óbvio, a utilização de quaisquer dessas tecnologias em humanos ainda necessita de mais pesquisas e desenvolvimentos tecnológicos, mas a factibilidade dessa alternativa já não parece apenas pertencer ao âmbito da ficção científica, demandando a atenção da sociedade, sobretudo, da Bioética e do Biodireito, no intuito de encontrar-se alguma maneira de conciliar as aspirações procriativas do meio social e os limites ético-jurídicos à implantação dessas modernas tecnologias.
3. A proteção da pessoa humana frente às novas biotecnologias: da bioética ao biodireito
O desenvolvimento de novas biotecnologias no campo da reprodução humana representa a incessante busca pela melhora da espécie e pela garantia de qualidade de vida para todas as pessoas. Entretanto, em que pese a importância da descoberta dessas novas ferramentas, não é mais possível produzi-las sem imaginar sequer algumas limitações a esse progresso científico desenfreado.
Nessa toada, as inovações no campo das ciências da natureza e da vida possuem facetas que não podem ser desconsideradas. Se, por um lado, há os ganhos positivos na descoberta dessas novas tecnologias, em proporcionar maior qualidade de vida e desenvolvimento humano, por outro, há os liames éticos e jurídicos enfrentados em virtude dessas conquistas na concepção do respeito aos direitos fundamentais. Assim, a história dos avanços biotecnológicos remonta a uma série de abusos cometidos contra seres humanos e animais para proporcionar o descobrimento de feitos que hoje são considerados como primordiais para a humanidade.
À vista disso, emergem os campos da Bioética e do Biodireito com o papel fundamental de impor limites éticos e jurídicos na tutela da vida (seja ela humana ou animal) e dos valores balizados pelo ordenamento jurídico (tal qual a Vida, a Liberdade, a Dignidade etc.). Isso porque a valorização da proteção da pessoa humana é, na atualidade, o centro do debate das pesquisas nas ciências da natureza e da vida, nas ciências jurídicas, entre outras áreas afins, uma vez que o paternalismo médico(3)perde força para o ideal de Dignidade em Autonomia e Heteronomia(4) no período pós-guerra.
Em virtude disso, Diniz e Guilhem (2002, p. 21-22) lecionam que a Bioética surgiu num contexto de proteção aos seres humanos classificados como de segunda categoria, nomenclatura adotada pelos pesquisadores no nascimento desse ramo interdisciplinar durante o período entre guerras. Deve-se compreender, ainda, que esses seres humanos eram todos aqueles que de alguma forma possuíam algum tipo de barreira para expressar a sua vontade no contexto da relação médico-paciente (pessoas com deficiência intelectual, crianças, idosos, recém-nascidos, mulheres, presidiários etc.), implicando em óbices ao respeito da sua Dignidade e Liberdade(5).
Ademais, cumpre ressaltar que a ideia de autonomia era completamente distanciada dos corpos desses sujeitos marginalizados, uma vez que estavam submetidos a violações nas pesquisas científicas realizadas sem consentimento real. Por isso, nesse período tenebroso da história científica da humanidade, especialmente pela frouxidão das normas éticas nas pesquisas em seres humanos, houve um crescimento exponencial de descobertas e avanços biotecnológicos. Isto é, essas descobertas se deram em detrimento do respeito aos direitos fundamentais e da personalidade de alguns cidadãos entendidos como descartáveis, prescindíveis de vida e direito.
Em razão desses avanços desenfreados, sem o balizamento de limitações éticas e jurídicas, emergiu a discussão a respeito de normas-princípios que pudessem balizar o comportamento do agente ativo das relações biomédicas. Dessa forma, foi desenvolvida a Teoria Principialista, um dos marcos teóricos mais importantes para o campo da bioética, a qual teve como um dos principais aportes a obra "Principles of Biomedical Ethics" (1979)(6), de autoria de Tom Beauchamp e James Childress. Essa obra, referencial teórico para muitos estudos na contemporaneidade, propôs uma releitura dos três princípios éticos preconizados pelo Relatório de Belmont (Respeito pelas Pessoas; Beneficência; e, Justiça), sugerindo, por sua vez, uma nova sistemática, a partir dos seguintes: a) Autonomia; b) Beneficência; c) Não-Maleficência; e, d) Justiça (Diniz; Guilhem, 2002, p. 31-34). É necessário lembrar, contudo, que essa não é a única estrutura principiológica existente na atualidade, mas é, sem sombra de dúvidas, uma das mais importantes.
Diante disso, em síntese apertada, cumpre esclarecer quais seriam esses direcionamentos principiológicos na relação biomédica, determinados pela experiência da história nos avanços científicos. Por isso, o princípio da Autonomia refere-se às liberdades individuais do sujeito submetido a uma relação médico-paciente. Assim, prioriza-se a lógica de respeito à autonomia existencial do indivíduo em desejar se submeter a um determinado tipo de procedimento ou não, a partir do recurso ao consentimento real e informado (Silva Netto; Dantas; Ferraz, 2018, p. 1.113-1.118).
Pensando-se, agora, no princípio da Beneficência, é necessário associá-lo ao de Não Maleficência, de modo que não haja nenhum prejuízo a quem utiliza as técnicas medicamente assistidas. Dessa maneira, enquanto o primeiro se baseia, em parte, no Juramento Hipocrático, em que o médico se compromete a nunca causar danos ou mal a alguém, o segundo corresponderia a um desdobramento daquele, trazendo a ideia de "[...] obrigação de não acarretar dano intencional" (Diniz, 2017, p. 39-40). Nesse sentido, pode-se entender genericamente que esses princípios se afeiçoam à ideia de fazer o bem, ao mesmo tempo que se busca não fazer o mal, havendo uma dicotomia de obrigações no exercício da atividade médico-paciente.
Por fim, o princípio da Justiça, como asseveram Diniz e Guilhem (2002, p. 32), está correlacionado com a ideia de equidade social, tal como o filósofo John Rawls havia proposto, ao reconhecer as necessidades diferentes para a defesa de interesses iguais. Ressaltando-se, ainda, que esse princípio requer a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios quanto à prática médica pelos profissionais da saúde (Diniz, 2017, p. 40).
Ademais, muitas dúvidas ainda existem acerca de quais seriam os princípios do Biodireito, pois há quem imagine que os princípios da Bioética seriam os mesmos para esse ramo jurídico. Embora se deva considerar que a Ética e o Direito andem pari passu, jamais seria possível conceder tal interpretação, pois existem princípios gerais do direito que normatizam as ciências jurídicas e não devem ser descartados. Dessa forma, esclarece Barboza (2003, p. 70-71) que não se trata simplesmente de buscar um correspondente jurídico para a Bioética, mas de se estabelecer normas jurídicas que possam reger os fenômenos resultantes da biotecnologia, pois não seria razoável resolver conflitos jurídicos tão somente com fundamento em princípios éticos.
A partir disso, considera-se que os princípios da Bioética guardam relação com os do Biodireito, sem que haja prejuízo na integridade metodológica quanto a sua aplicação, na medida em que há relação entre o Direito e a Ética. Desse modo, é necessário a observância dos princípios constitucionais, ao passo que a maioria dos fatos a serem regulados pelo Biodireito são inéditos e não cogitados pelo ordenamento jurídico em sua formulação original; tornando necessária a observância dos princípios vigentes (Barboza, 2003, p. 73-77).
Nesse sentido, ao se vislumbrar a realidade brasileira, percebe-se que existem normas, sobretudo no âmbito constitucional, que podem servir também de diretrizes para o desenvolvimento das inovações tecnológicas, a exemplo da Dignidade Humana, dos direitos à Vida, à Igualdade, à Liberdade, à Saúde etc. Por essa razão, tem-se que é dever do Poder Público assegurar algumas medidas, como a preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético ou o dever de controlar a produção e emprego de técnicas que comportem substancial risco para a vida (Barboza, 2003, p. 75-76).
4. O estabelecimento dos vínculos jurídicos de filiação no contexto da ectogênese: um necessário reforço para a vontade procriacional
No Brasil, tem-se, como uma das várias formas de atribuição dos vínculos filiatórios, a figura da filiação jurídica, por meio das presunções de paternidade e maternidade, com a finalidade de configuração e atribuição do estado de filiação com os seus efeitos respectivos (Dias, 2015, p. 202). Sobre isso, afirma Lôbo (2020, p. 228) que tradicionalmente a paternidade está associada ao uso da presunção pater is est quem nuptiae demonstrant ou simplesmente presunção pater is est, significando que o marido da mulher casada será o pai dos seus filhos nascidos durante a constância do casamento. Por outro lado, a atribuição da maternidade estaria associada à presunção mater semper certa est, a qual sugere que a "mãe é sempre certa", ou seja, que a mulher sempre será a mãe, visto que existem sinais físicos em seu corpo (gravidez e parto), os quais denotam a maternidade.
Outrossim, tem-se que o art. 1.597 do Código Civil de 2002 (CC/02) traz as seguintes presunções relativas à atribuição da paternidade: a) a de que os filhos nascidos 180 dias (6 meses) contados a partir da coabitação presumem-se do marido da mulher casada (Inciso I); b) a de paternidade dos filhos nascidos até 300 dias (10 meses) após a dissolução da sociedade conjugal, seja por morte, anulação, nulidade ou separação (Inciso II); c) a de paternidade dos filhos nascidos a partir do uso de técnicas de RHA homólogas, ainda que post mortem (Inciso III); d) a de que o uso de embriões excedentários decorrentes do uso de técnicas de RHA homóloga atribuem ao marido a paternidade (Inciso IV); e, e) de paternidade daquele quem consentiu expressamente no recurso a material genético de terceiro, a partir do recurso à RHA heteróloga (Inciso V).
Mas tendo por base essa conjuntura, como se poderia vislumbrar a atribuição de filiação àqueles que recorressem ao útero artificial para desempenharem seus projetos parentais? Afinal, consoante defende Maurizio Balistreri (2017, p. 55), a possibilidade de utilização dessa modalidade tecnológica não pode pôr em cheque o direito dos genitores e da criança de verem seus laços materno-paterno-filiais devidamente reconhecidos.
Destarte, impende destacar que, com o efetivo desenvolvimento da ectogênese e sua consequente aplicação em seres humanos, a gravidez intrauterina deixará de ser tida como a única forma viável de dar à luz a uma pessoa. Diante disso, critérios tradicionais, como os das presunções previamente explicitadas, perderão a sua capacidade de resolver a problemática da atribuição de vínculos materno-paterno-filiais nos casos de recurso aos úteros artificiais. Ora, se não existe uma pessoa para gestar a prole, qual parâmetro o Direito poderá utilizar para viabilizar a formação desses vínculos parentais?
Nessa esteira, impende comentar os impactos que as tecnologias reprodutivas, associadas ao fortalecimento da socioafetividade(7) nas relações familiares, geraram para o estabelecimento dos vínculos de filiação hodiernos. Sobre tal tema, destaca Lamm (2012, p. 80) que, se antes a exclusividade da reprodução natural implicava na impossibilidade de dissociação dos liames biológicos e genéticos, hoje, com os recursos procriativos medicamente assistidos, o biológico já não compreende mais o genético e vice-versa. Explica-se: na reprodução humana natural, a consecutividade do processo reprodutivo faz com que haja identidade entre os elementos biológicos e genéticos, já que a concepção da criança dá-se endogenamente, com o material genético do casal em questão. Diversamente, por exemplo, quando uma mulher recorre à gestação sub-rogada, mediante o uso dos seus próprios gametas sexuais, o biológico (gestação) não compreende o genético (óvulos), posto que oriundos de pessoas diferentes. Por outro lado, pode ser que uma pessoa contribua apenas com o material genético - a exemplo da doação de gametas -, sem intenção de constituir a parentalidade, mas a gravidez é produzida por meio da RHA, casos em que o genético (gametas sexuais) não compreende o biológico (gravidez), tendo em vista o fato de que a colaboração é meramente genética.
De tal modo, na filiação natural, tem-se um conflito entre o biológico e o volitivo, já que nem sempre a concepção de uma nova vida é intencional, sendo que a falta de vontade dos genitores não os exime de exercerem a parentalidade, em razão do dever de responsabilidade imposto por lei, situação na qual a verdade biológica é preponderante, a fim de promover a Proteção Integral da Criança. Na RHA, de outro modo, têm-se um embate entre os fatores genético e volitivo, sendo que a vontade e a intenção de construção de um projeto parental apresenta maior preponderância quando comparada à simples identidade genética, visto que respeita melhor os interesses do menor, o qual já é esperado e amado pelos pais intencionais mesmo antes da sua concepção. Por isso, defende a autora que, "[...] Embora as TRHA sejam utilizadas, em geral, por aqueles que não querem renunciar a ter um filho 'geneticamente próprio', não é o elemento genético o que determina a filiação, senão o volitivo [...]", caracterizando um modelo de filiação assentada no consentimento livre e esclarecido dos beneficiários(8).
Por isso, diz-se que, em matéria de RHA - ao que se pode incluir, igualmente, a figura prospectiva do útero artificial - é imperioso que se leve em consideração as circunstâncias específicas através das quais esses projetos parentais são desempenhados, posto que o fato gerador da filiação é anterior a própria concepção do indivíduo e encontra-se estabelecido na vontade dos beneficiários em buscar o recurso à reprodução assistida para levar a cabo seus desejos de ser(em) pai(s) e/ou mãe(s). Tal postura, apesar de não ser bem delimitada na legislação brasileira, que não regula expressamente o critério da vontade procriacional, é corroborada pelas diretrizes interpretativas dos enunciados nº 103(9), 104(10)e 129(11), todos da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), os quais indicam que, quando do recurso à RHA, o elemento volitivo deve ser determinante para constituição do vínculo de parentesco.
A partir de tal ponto de vista, pode-se dizer que a tecnologia do útero artificial não implicaria em quaisquer prejuízos para a possibilidade de desempenho de projetos parentais viáveis e legítimos. Pelo contrário, o seu uso passaria a ser uma nova alternativa para aquelas pessoas que buscam ter filhos genéticos e não desejem recorrer ao emprego da GS; implicando, inclusive, na promoção de maior equidade entre os múltiplos contextos familiares, sejam eles heteroafetivos ou homoafetivos, biparentais, monoparentais, multiparentais ou coparentais(12). Dessa maneira, pode-se dizer que o recurso a tal tecnologia procriativa remete a um reforço necessário para a consolidação jurídico-legislativa da vontade procriacional, no contexto brasileiro, como um dos critérios legais de atribuição de filiação, tais quais o biológico, o genético, o socioafetivo e as presunções jurídicas de filiação13.
5. Considerações finais
No tocante à aplicação da tecnologia do útero artificial no processo de reprodução humana, não se pode dizer ainda que ela seja uma realidade. Porém, as mais recentes pesquisas científicas, na área, têm demonstrado que é só uma questão de tempo até que mais essa "barreira" natural seja ultrapassada. Afinal, já se tem a possibilidade de iniciar o processo reprodutivo de maneira extracorpórea (com o uso da FIV), assim como de finalizá-lo extrauterinamente (com o recurso a incubadoras para os bebês prematuros). Ademais, inúmeros estudos e pesquisas estão sendo realizadas, de modo a servir de subsídio para um futuro desenvolvimento efetivo dessa ferramenta, como a EUFI, a "co-cultura", a "biobag womb", a EVE platform etc.
Diante disso, o recurso a ectogênese não poderá retirar das pessoas que a ela socorrerem-se para desempenhar projetos parentais próprios o direito à efetivação de seus vínculos paterno-materno-filiais com as crianças oriundas desse procedimento, sob pena de estarem-se desrespeitando os seus direitos fundamentais, bem como os da futura prole. Por essa razão, vislumbra-se que, cada vez mais, é preciso que haja uma consolidação jurídico-legislativa do critério da vontade procriacional - pautado no consentimento livre e esclarecido - para atribuição de vínculos filiatórios oriundos do uso da RHA, notadamente quando se considera a hipótese da ectogênese. Dessa maneira, tecnologias futuras como a do útero artificial poderão ser melhor exploradas no intuito de difundir novas formas de estabelecer elos de filiação, os quais agregar-se-ão as maneiras já existentes e conhecidas de concebê-los e atribui-los.