1. Introdução: A violência exercida contra as mulheres no parto
Assistimos a um despertar da sociedade, em geral, e das mulheres, em particular para um fenómeno de violência contra as mulheres perpetrado no contexto específico e delicado de gravidez, parto e puerpério, denominado de "violência obstétrica".
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (doravante, OMS), "(...) um crescente volume de pesquisas sobre as experiências das mulheres durante a gravidez, e em particular no parto, descreve um quadro perturbador. No mundo inteiro, muitas mulheres experimentam abusos, desrespeito, maus-tratos e negligência durante a assistência ao parto nas instituições de saúde" (OMS, 2014).
Em países1 como o Brasil, Estados Unidos, França e Itália temos assistido progressivamente a um debate mais intenso no que concerne aos direitos da mulher em contexto obstétrico. Portugal não é exceção.
Relatos revelam e estudos demonstram que há práticas médicas que contendem frontalmente com os direitos humanos da mulher e com os mais relevantes princípios de bioética.
Nos Estados Unidos, o parto continua a ser muito intervencionado, sendo comum a prática de atos, tais como a episiotomia, a rotura da bolsa de águas e/ou a indução do parto têm altas taxas de incidência e os profissionais têm dificuldade em acolher as preferências das grávidas. (Lothian, 2006; Lothian, 2019)
A realidade brasileira também revela a existência de violência na obstetrícia: "... é de fato um grande problema de saúde pública, onde aproximadamente 25% das mulheres brasileiras relatam terem sofrido maus-tratos em algum momento durante o atendimento ao parto". (Carvalho et al., 2019)
A OMS revela que a violência contra a mulher, no parto, é concretizada através de comportamentos variados, assumindo diversas facetas:
"Relatos sobre desrespeito e abusos durante o parto em instituições de saúde incluem violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento". (OMS, 2014)
Podemos, em síntese, categorizar os tipos de violência exercida contra a grávida, parturiente e puérpera nos seguintes: a) violência de caráter psicológico; b) violência de caráter físico; c) violência de caráter sexual; d) violência de caráter institucional; e) violência de carácter material. É ainda qualificada como sendo uma modalidade de violência de género.
Podemos ler, no artigo 3.º, alínea a), da Convenção de Istambul2, que é qualificada como "violência contra as mulheres":
a violação dos direitos humanos e é uma forma de discriminação contra as mulheres, abrangendo todos os atos de violência de género que resultem, ou possam resultar, em danos ou sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos para as mulheres, incluindo a ameaça de tais atos, a coação ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada.
Iremos desenvolver a nossa reflexão em torno deste fenómeno de violência contra as mulheres em Portugal.
2. "Retrato" do fenómeno da violência obstétrica em Portugal
Em Portugal, a "Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto" (doravante, APDMGP)3 levou a cabo um "inquérito às mulheres sobre as suas experiências de parto" ocorridos entre 1 de janeiro de 2012 e 31 de março de 2015. Do relato de 7555 mulheres inquiridas, resultaram as seguintes informações4:
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Em termos de procedimento:
A epidural foi o mais comum (cerca de 70%), assim como, a episiotomia (também cerca de 70%).
Mais de metade das mulheres refere que lhe foi administrada ocitocina artificial;
Metade das parturientes foi submetida a rutura provocada da bolsa amniótica e a descolamento das membranas;
Quanto aos bebés nascidos por via vaginal: dois terços dos bebés nasceram com recurso a ventosa e um terço com recurso a fórceps.
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No que concerne à posição adotada no decurso do parto:
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Quanto à assistência dada à mulher pela equipa médica durante o parto:
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Feedback sobre a experiência do parto:
A maioria das mulheres referiu que houve comunicação favorável, tendo sido ouvida e respeitada pela equipa médica. Para quase metade, o parto representou uma experiência positiva com impacto também positivo na sua autoestima.
Mais de um décimo das mulheres indicou que a experiência de parto foi negativa e a sua autoestima sofreu com isso, sendo que para um número significativo (476 mulheres - 14.1%) viu ser afetada negativamente a sua vontade de ter filhos no futuro como resultado da sua experiência de parto.
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Quanto ao parto desejado:
Apesar do ora exposto, o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, pronunciou-se, nestes termos, a respeito da existência de violência obstétrica:
"Portugal está seguramente entre os países do mundo onde se regista um menor número de maus-tratos durante a gravidez. Há certamente aspetos a melhorar, mas não devemos deixar que nos confundam e que se crie um ambiente de crispação entre as grávidas, as suas famílias e os profissionais de saúde. À Ordem dos Médicos chegam queixas esporádicas de experiências negativas, designadamente de transmissão de más notícias de forma inapropriada, particularmente quando há um mau desfecho obstétrico, e de intervenções percecionadas pela grávida como desnecessárias, tais como a realização de toques vaginais, de epidural ou de episiotomia; pelo contrário, outras vezes chegam queixas, também esporádicas, de não se ter atuado mais cedo e não se ter sido mais intervencionista. Quase sempre, constata-se que foram cumpridas as boas práticas e que "mau-trato" teria sido não se terem providenciado as intervenções que se realizaram, mas também é verdade de que o acolhimento e a comunicação com as grávidas e com as suas famílias nem sempre se faz de forma digna, com disponibilidade de tempo, instalações e meios de comunicação adequados". (Ordem dos Médicos, 2021)
Em Portugal, as entidades com competência para averiguar o cumprimento das boas práticas na atividade médica, enquadrando-se, portanto, a prática obstetrícia, são, desde logo, as direções-clínicas das Unidades de Saúde, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, a Direção Geral da Saúde, e a Entidade Reguladora da Saúde.
No que concerne aos estabelecimentos de prestação de cuidados em obstetrícia e neonatologia importa referir a Portaria n.º 310/2016, de 12 de dezembro5.
No que concerne a ações propostas em Portugal, o fundamento não é a violência obstétrica, tratando-se a vasta maioria dos casos de ações de responsabilidade médica resultantes da violação da legis artis, por ação ou por omissão.
Quando no decurso dos partos ocorrem danos para a mãe e/ou para a criança, as ações têm como fundamento o "erro médico" de que resulte, designadamente, paralisia cerebral para a criança ou esta venha a falecer devido às más práticas da equipa dos profissionais de saúde que deram assistência (ou deveriam ter dado) ao parto.
São comummente apontados como problemas no parto: demora na decisão pela cesariana; a cesarianas mal realizadas; a aplicação de fórceps ou ventosa que causa danos no cérebro da criança; situações em que a mulher é deixada à sua sorte durante várias horas enquanto aguarda por assistência médica, entre outros.
Se estivermos perante erros de diagnóstico, ainda na fase gestacional, em que a mulher está grávida, e esta não seja devidamente informada sobre a evolução do feto e sobre o real estado de saúde do mesmo as ações judiciais propostas são também, grosso modo, de responsabilidade médica.
Existem exceções, em que os pais propõem ações denominadas de wrongful birth6. Trata-se de situações em que se o médico obstetra tivesse detetado as malformações ou doenças do feto ou, detetando-as, tivesse informado os pais da existência das mesmas, estes teriam tido a oportunidade de decidir optar pela interrupção voluntária da gravidez ou pela manutenção da gestação.
A criança nascida com deficiências graves e incapacidades físicas e/ou psíquicas propõe, representada em tribunal pelos seus pais, propõe ação judicial de wrongful life7.
Os direitos violados e que constituem o fundamento da ação no primeiro caso são os direitos à plena informação, ao consentimento e à autodeterminação reprodutiva dos pais que poderiam, querendo, dentro do praz legal para o efeito (24 semanas, de acordo com o artigo 142.º, do Código Penal Português, doravante Cód. Penal)8.
O direito violado e que constitui o objeto principal da ação no segundo caso é o (polémico) direito a não viver uma vida cheia de sofrimento, física e não só, dependente de terceiros e de medicação, sujeitos a constantes intervenções terapêuticas.
A criança vem, a juízo, exigir o direito a ser ressarcida pelos danos não patrimoniais (v.g. dores e angústias) e patrimoniais (v.g. despesas médicas que se apurem no momento da propositura da ação e despesas futuras, mas prováveis).
Por conseguinte, verificamos que em Portugal ainda não existe a cultura ou a sensibilização da mulher em acionar judicialmente a equipa médica e respetivo estabelecimento hospitalar com fundamento nos "maus-tratos" ou falta de informação e concomitante desrespeito pelo consentimento esclarecido e livre, autonomia e autodeterminação na disposição sobre o seu próprio corpo no contexto de parto. A menos que seja produzido um dano no parto, a mulher não propõe uma ação judicial com base na violação da sua autonomia e autodeterminação traduzido na falta de cumprimento do seu "plano de parto".
3. Princípios bioéticos e direitos violados
Para além do princípio da dignidade da pessoa humana, quando falamos em violência contra a mulher, é violado um vasto acervo de direitos humanos, com assento na Convenção de Biomedicina.
A autonomia e a autodeterminação da grávida, parturiente e puérpera assumem a estrutura angular em que assenta o edifício das boas práticas médicas obstétricas. Os cuidados de saúde têm como objeto central a pessoa humana. No parto, é o bem-estar físico e psíquico da mulher e do feto/criança que devem ser o foco dos profissionais de saúde.
O respeito pelo plano de partos elaborado pela mulher ou pelo casal, aconselhados por um profissional especializado, logra fazer cumprir um conjunto de princípios estruturantes em bioética, dos quais enaltecemos os seguintes (Macedo et. al., 2021):
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Princípio da autonomia. Os benefícios alcançados seriam:
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Princípio da beneficência. Os ganhos em saúde e bioética seriam:
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Princípio da não maleficência, princípio bioético entretanto autonomizado do princípio da beneficência. Os grandes objetivos alcançados seriam:
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Princípio da justiça. As principais mais-valias associadas ao plano de parto, neste âmbito são:
Por toda a ordem de razões ora expostas, defendemos que o plano de parto assume uma indiscutível relevância na efetividade da dignidade humana, do direito à saúde e à integridade física e psíquica da mulher no seio hospitalar e em contexto obstétrico.
Nesta senda, o plano de parto assume-se como um autêntico instrumento ou mecanismo de salvaguarda dos direitos humanos da mulher à autonomia e autodeterminação.
De acordo com a OMS: "Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente". (OMS, 2014)
Por conseguinte, em termos jurídicos, existe uma miríade de direitos humanos e jusfundamentais que importa trazer à colação da nossa análise. Senão vejamos.
Para aferição da validade e legitimidade da atuação médica, é indiscutível a prestação do consentimento informado, livre e esclarecido da mulher sobre a disposição sobre o seu corpo. Na verdade, caso não seja obtido este consentimento, para além da violação da legis artis, tornando ilícita a atuação dos profissionais de saúde, é praticado um crime "Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários" (artigo 156.º, do Cód. Penal Português):
"1 - As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa".
O supracitado artigo 156.º tem de ser lido em articulação com o artigo 157.º, do Cód. Penal Português, o qual, sob a epígrafe "dever de esclarecimento", consagra os termos em que o consentimento do doente possui relevância jurídica para efeitos de afastar a punição do profissional de saúde:
"O consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam suscetíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica".
Ora, de acordo com o inquérito levado a cabo pela Associação "APDMGP" não se verificou a obtenção do consentimento esteve ausente nos seguintes atos:17,8% dos casos de cesarianas; 7,7% dos partos induzidos; 11,8% na administração de medicação para acelerar o parto; 8,3% realização da analgesia/anestesia epidural; 29,7% sujeitas a episiotomia; 22% rutura da bolsa de águas. Em todos estes casos, foi violada a lei (!).
No que especialmente respeita à prática de "episiotomia", a "APDMGP" indica que, nos hospitais portugueses, ultrapassa os 70% (Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no parto, 2019), apesar das recomendações de 2018 da OMS irem no sentido de se abandonar esta prática por considerá-la uma forma de "mutilação genital feminina"9, sendo que esta é violadora dos direitos humanos das mulheres demonstrativa da desigualdade entre os sexos.
Refere a "APDMGP" que "a episiotomia é, segundo estas recomendações, uma prática de mutilação genital feminina", sendo que esta ideia começa a ser assim considerada pela literatura médica (Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no parto, 2019).
Em termos de procedimento médico, é dito que:
"a episiotomia é um procedimento cirúrgico quase universal que foi introduzido na prática clínica sem evidência científica que suportasse o seu benefício. O seu uso continua a ser rotineiro apesar de não cumprir a maioria dos objetivos pelos quais é justificado, isto é, não diminui o risco de lesões perineais severas, não previne o desenvolvimento de relaxamento pélvico e não tem impacto sobre a morbilidade ou mortalidade do recém-nascido. (...) Assim, parece ser correcto recomendar um uso selectivo da episiotomia, sendo 30% o valor sugerido por alguns autores, tornando-se, então, importante apostar em novas técnicas não cirúrgicas que ajudem a obter uma integridade perineal" (Borges et. al., 2003).
As principais complicações associadas à episiotomia são as seguintes: a) Infecção; b) Hematoma; c) Roturas do períneo grau III e IV; d) Celulite; e) Deiscência; f) Abcesso; g) Incontinência de gases; h) Incontinência de fezes; i) Fístula recto vaginal; j) Lesão do nervo pudendo, k) Fasceíte necrosante; l) Morte (Borges et. al., 2003).
Outros estudos médicos apontam também como riscos inerentes ao procedimento, a extensão da lesão, hemorragia significativa, dor no pós-parto, edema, infecções, hematoma, dispareunia, fístulas rectovaginais e, embora raro, a endometriose da episiorrafia (Borges et. al., 2003).
Para além de constituir uma discriminação extrema contra as mulheres, a mutilação genital feminina coloca, seriamente, em risco o direito à saúde, segurança, integridade física e integridade psíquica (é um procedimento traumático do ponto de vista emocional, para além de físico) e, no limite, o direito à vida.
Afirma ainda a OMS que "os recém-nascidos cuja mãe tenha sido submetida a mutilação genital feminina sofrem de uma taxa de mortalidade neonatal superior, quando comparada com recém-nascidos de mulheres que não foram submetidas a este tipo de procedimento" (OMS, 2009).
Neste aspeto, a violência obstétrica sobre a mãe acaba por constituir uma violência sobre a própria criança. A episiotomia é passível de conduzir à flagrante violação dos direitos dos mais vulneráveis (crianças), ao arrepio do propalado princípio do "interesse superior da criança", a par dos princípios da beneficência e da não maleficência.
Atualmente é considerada uma prática desumana, degradante e cruel, atentatória da dignidade da pessoa humana afirmada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção dos Direitos Humanos e Biomedicina, Convenção de Istambul e na Constituição da República Portuguesa (artigos 2.º, 13.º, 24.º, 25.º e 64.º).
Em Portugal configura a prática de um crime que se encontra consagrado no artigo 144.º-A, do Cód. Penal Português:
"1 - Quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos. [...]"
Pelo contrário, em Portugal não existe um crime específico para a violência obstétrica, circunstância que tem levado as mulheres a apresentar queixas com fundamento em outros crimes. Este facto deverá ser, em parte, responsável pela ausência de queixas criminais ou denúncias contra os profissionais de saúde com fundamento em maus-tratos no contexto obstétrico.
Por este motivo, existe um projeto de lei da deputada Cristina Rodrigues sobre a violência obstétrica10, nestes termos:
"Inserir o artigo 166.º-A no Código Penal Português, com a seguinte redação:
Quem, sujeitar mulher, durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, a violência física ou psicológica, que lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário ou limite o seu poder de escolha e de decisão, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.
A pena é agravada em um terço se o crime for praticado na presença de nado morto ou de interrupção da gravidez, contra pessoas nos extremos da idade reprodutiva, contra mãe, nascituro ou criança com deficiência, contra vítimas de violência doméstica, de abuso sexual, de práticas nefastas ou tráfico de seres humanos, ou contra pessoas que vivam em situação de pobreza extrema ou sejam migrantes e refugiadas."
Por outro lado, o projeto de lei visa proceder a modificações no artigo 144.º-A, do Código Penal Português neste sentido:
"as intervenções levadas a cabo por médico ou por outra pessoa legalmente autorizada que resultem na mutilação genital de pessoa do sexo feminino, em violação das leges artis e criando, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal".
A mesma deputada propõe uma alteração proposta à Lei n.º 15/2014, de 21 de maio11, mais recentemente atualizada pela Lei n.º 110/2019, de 9 de setembro incide sob o artigo 15.º-A, sob a epígrafe "Princípios", inserido na "SECÇÃO II - Regime de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério" que passará a estipular que a violência obstétrica é praticada mediante:
"qualquer conduta direccionada à mulher, durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, praticada sem o seu consentimento, que consubstanciando um acto de violência física ou psicológica, lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário ou limite o seu poder de escolha e de decisão".
4. Mecanismo de proteção da autodeterminação da mulher: o plano de parto
Tal como referido supra, o plano de parto constitui um instrumento de excelência no exercício da autonomia da mulher. Por outro lado, o direito a acompanhamento da mulher durante o parto, que, em Portugal se encontra consagrado desde 198512 e, o qual foi, mais recentemente, reforçado através da Lei n.º 110/2019, de 9 de setembro, continua sem ser respeitado por algumas maternidades públicas.
Acresce, outrossim, que em Portugal, não existe um plano de parto institucionalizado nos estabelecimentos hospitalares pertencentes ao Serviço Nacional de Saúde, não sendo cumprida uma boa prática sanitária ao nível da tutela dos direitos da mulher grávida e parturiente. Por conseguinte, a vontade desta acaba por ser desrespeitada, pois, na ausência de um documento oficial, acaba por ficar nas mãos da equipa médica os desígnios do parto.
A grávida poderá ao longo da gestação, com o devido apoio e informação por parte dos profissionais devidamente habilitados (médicos obstetras e enfermeiro especialista em enfermagem obstétrica), começar a elencar que cuidados deseja ou não deseja receber durante o período de trabalho de pré-parto, parto e pós-parto.
Apesar desta importância, o plano de partos continua a ser desconhecido da maioria das mulheres. De acordo com o inquérito, já mencionado, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, 81% das inquiridas não entregaram plano de parto no hospital e 68% não elaborou um plano de parto (Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, 2020).
A OMS publicou, em 2018, um documento intitulado "WHO recommendations. Intrapartum care for a positive childbirth experience", o qual aponta um conjunto de itens que ajudam a mulher a elaborar o plano de parto. Estas recomendações estão fundamentadas na melhor evidência científica, na observação pelo respeito dos direitos das mulheres nos diferentes contextos culturais e pretendem promover o parto humanizado (OMS, 2018).
A título de exemplo elencamos algumas das vontades que a mulher poderá colocar no seu plano de parto:
Desejo parto sem perfusão contínua de soro:
Não autorizo a depilação da zona púbica e a realização de lavagem intestinal;
Desejo que a analgesia seja administrada apenas se solicitar;
Desejo, que os batimentos cardíacos do bebé sejam monitorizados, mas não de forma contínua;
Não autorizo o uso de ocitocina para a indução ou aceleração do parto ou de outro método, como o rompimento da bolsa de água, salvo em que a equipa de saúde verifique algum risco de vida para mim, para o bebé, ou ambos;
Desejo escolher a posição do parto, a que me for mais confortável;
A episiotomia (corte da vagina) só poderá ser realizada em caso de estrita necessidade, após informação e a obtenção do consentimento;
Não autorizo qualquer manobra para forçar a saída do bebé (e.g. empurrar fundo do abdómen);
Desejo a permanência do meu bebé junto a mim até à alta hospitalar;
Exijo ser informada sobre todos os procedimentos que serão realizados no meu bebé;
Desejo receber toda informação sobre a fundamentação científica que justifique a eventual necessidade de intervenção operatória (cesariana).
Este roteiro é essencial para que a grávida possa, no momento certo, apresentar o plano de parto correspondendo a uma vontade expressa e devidamente refletida. Todos os estudos empíricos demonstram os reais benefícios do respeito por parte da equipa de saúde pela vontade plasmada no plano de parto (Afshar et al., 2018).
5. Reflexões finais
O fenómeno da violência obstétrica constitui um flagrante desvio às leges artis das profissões dedicadas à prestação de cuidados de saúde (médicos e enfermeiros), sendo transversal a muitos países.
Por um lado, representa o desrespeito pelos Códigos Deontológicos e Juramento de Hipócrates (realizado pelos médicos na tomada de posse) e Juramento de Florence Nightingale (realizado pelos enfermeiros) e, por outro lado, constitui a violação de direitos humanos da mulher, numa posição de maior vulnerabilidade. Nos casos mais severos, também o direito à vida, à saúde e à integridade física do feto/da criança são colocados em risco.
Alguns dos principais direitos com os quais a prática de violência obstétrica contende são os seguintes: a) dignidade humana; b) respeito; c) liberdade, autonomia e autodeterminação; d) consentimento informado, livre e esclarecido; e) informação plena sobre o seu estado de saúde, assim como, do feto. Os princípios charneira da bioética da beneficência e não maleficência, bem como, da autonomia do doente são omitidos pela conduta revelada pelos profissionais de saúde que não cumprem a os direitos da grávida e parturiente manifestados, de forma expressa, no plano de parto.
Este constitui um indiscutível instrumento de autonomia da mulher (e, diga-se, do casal progenitor da criança por nascer), pelo que deve ser assegurado o seu escrupuloso cumprimento, por parte dos hospitais e demais estabelecimentos de saúde.
Assim é, pelo que consubstancia, em si mesmo, o cumprimento do dever de consentimento por parte do profissional de saúde.
Na verdade, de acordo com a posição sufragada pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida:
"[...] o processo de Consentimento Informado é um requisito estruturante das relações entre profissionais de saúde e utentes, incontornável na prestação de cuidados de saúde, no cumprimento: (1) do respeito pelos direitos humanos, da dignidade da pessoa e pela autonomia individual, ao envolver cada um nas decisões que a si lhe dizem respeito; (2) da obrigatoriedade da beneficência, a partir da ponderação de riscos e benefícios associados às intervenções projetadas no contexto de vida da pessoa em causa, e como forma de promover a adesão terapêutica" (CNECV, 2022).
Existem critérios ou requisitos para que o consentimento do doente assuma a relevância e logre alcançar as seguintes características: informado, livre e esclarecido.
Refere o Supremo Tribunal de Justiça que "sobre o médico recai um dever de informação e de obtenção de consentimento informado, deveres estes que surgem para neutralizar (ainda que sem eliminar) a assimetria de informação que tipicamente caracteriza a relação médico-paciente"13.
Deste modo, o consentimento do doente surge como um mecanismo de nivelamento ou de ajustamento da relação estruturalmente desequilibrada entre médico-paciente, em que o primeiro possui conhecimentos especializados e privilegiados sobre o corpo, mente e estado de saúde do segundo (GOLDIM, 2006).
Destarte, ignorar o plano de parto implica praticar atos contra a vontade da mulher, ao arrepio de todos os direitos supracitados, e que, portanto, constituem intervenções e tratamentos médico-cirúrgicas arbitrárias, criminalmente punidos à luz do artigo 156.º, do Código Penal Português.
Da nossa perspetiva, faria sentido a criminalização autónoma do "crime de violência obstetrícia", agravado pelo perigo grave para a saúde, integridade física ou morte da mulher ou do feto/criança.
Outro mecanismo essencial à proteção da mulher, nesta posição tão vulnerável, seria a obrigatoriedade (absoluta) do direito ao acompanhamento. Verificámos que nem sempre é assegurado à grávida e parturiente este direito, sobretudo devido ao Covid-19.
Por último, competir-nos-á a todos, enquanto membros da sociedade, pugnar pela consagração de mecanismos de efetivação dos direitos e garantias da mulher, desde logo, junto dos nossos representantes na Assembleia da República.
A consciência cívica tem de despertar para este problema real que existe nos estabelecimentos de saúde, a vasta maioria dos quais, pertencem ao Estado14.