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FEM: Revista de la Fundación Educación Médica
On-line version ISSN 2014-9840Print version ISSN 2014-9832
FEM (Ed. impresa) vol.17 n.2 Barcelona Jun. 2014
https://dx.doi.org/10.4321/S2014-98322014000200008
A experiência de transição para a fase clínica de alunos de medicina detentores de grau prévio: um estudo de caso
Experiencia de la transición a la fase clínica de los estudiantes de medicina que ingresan con posesión de otro grado: un estudio de caso
The experience of graduate entry students in the transition to the clinical phase: a case study
Luís Henriques, Ana Salgueira, Nuno Sousa, Manuel J. Costa
Escola de Ciências da Saúde. Universidade do Minho. Braga, Portugal.
RESUMO
Introdução. Internacionalmente tem-se assistido à extensão da oferta formativa de cursos de Medicina de menor duração a candidatos detentores de um grau acadêmico superior prévio. Este estudo de caso procura compreender a experiência dos estudantes licenciados nestes cursos, a fim de identificar fatores que condicionem a sua formação durante o inicio da aprendizagem clínica em contexto hospitalar.
Sujeitos e métodos. Os participantes são estudantes licenciados do curso de medicina da Universidade do Minho em Portugal (n = 5) que atravessam a transição entre a fase pré-clínica e a fase clínica do curso. No final da primeira unidade curricular clínica realizou-se um grupo de discussão. Os transcritos foram analisados segundo os princípios de Grounded-Theory.
Resultados. Os participantes relataram facilidade no contacto com os pacientes e utilização de competências de estudo durante a aprendizagem. Apontaram como dificuldades principais o primeiro contacto com a morte e a doença no meio hospitalar, a quantidade de conhecimentos a adquirir na antes de iniciarem a formação clínica e a transferência dos mesmos para a prática clínica.
Conclusões. Este estudo de caso revelou que as principais dificuldades dos estudantes licenciados se relacionavam com lidar com pacientes e com a mobilização para a prática da grande quantidade de conteúdo aprendido na fase pré-clínica. Estas dificuldades poderão ser minoradas pela inclusão de maior contacto com pacientes e com a prática clínica na fase pré-clínica.
Palavras chave. Conhecimento médico. Curriculum. Educação médica. Grupo de discussão. Perceção. Residência clínica.
RESUMEN
Introducción. En el ámbito internacional se ha extendido la oferta formativa de estudios de medicina de menor duración para candidatos que están en posesión de otros grados de educación superior previos. Este estudio de caso trata de comprender la experiencia de los estudiantes procedentes de otros grados en estos cursos con el fin de identificar los factores que limitan su aprendizaje clínica en el contexto hospitalario.
Sujetos y métodos. Los participantes son estudiantes de posgrado de la Facultad de Medicina de la Universidad de Minho en Portugal (n = 5), que realizan la transición entre la fase preclínica y clínica del grado. Al final del primer curso clínico se llevó a cabo un grupo de discusión. Las transcripciones se analizaron de acuerdo con los principios de grounded theory.
Resultados. Los participantes refirieron facilidad para el contacto con los pacientes y para el uso de técnicas de estudio durante su aprendizaje. Las principales dificultades son el primero contacto con la muerte y la enfermedad en el ámbito hospitalario, el volumen de conocimientos que se deben adquirir antes de embarcarse en la formación clínica y su transferencia a la práctica clínica.
Conclusiones. Este estudio de caso reveló que las principales dificultades de los estudiantes procedentes de otros grados se relacionaron con el trato de los pacientes y con la aplicación a la práctica de los numerosos contenidos aprendidos en la fase preclínica. Estas dificultades se pueden reducir mediante un mayor contacto con los pacientes y la práctica clínica en la fase preclínica.
Palabras clave. Aprendizaje clínico. Conocimientos, actitudes y prácticas. Educación médica de pregrado. Grupo focal. Percepción. Plan de estudios.
ABSTRACT
Introduction. Internationally, medical schools have been offering more fast-track undergraduate medical degree to graduate applicants. This case study aims to understand graduate entry students' experience in medical schools, namely to identify factors that condition their transition to the clinical training in hospitals.
Subjects and methods. Participants are medical graduate students from the University of Minho in Portugal (n = 5) going through the transition from a pre-clinical to a clinical part of a 4 year graduate entry curriculum. A focus group was conducted at the end of the first clinical course. The discussion was transcribed and analyzed using Grounded-Theory principles.
Results.Participants described they were comfortable with contacting patients, and that they applied study skills developed prior to entry medical school to their learning. The main difficulties pointed out their were the first contact with death and disease in the hospital environment, the large amount of content to be learned before starting clinical training, and the transfer of knowledge to clinical practice.
Conclusions. This case study revealed that the main difficulties presented by medical graduate-entry students were related to the first contacts with patients and the practical application of a huge amount of knowledge, learned during the pre-clinical part of the curriculum, to the clinical practice. These difficulties could be attenuated by including more contact with patients and clinical practice during the pre-clinical part of the course.
Key words. Clinical clerkship. Curriculum. Focus groups. Health knowledge. Medical education. Perception.
Introdução
A implementação do processo de Bolonha na Europa tem questionado a estrutura tradicional dos cursos de medicina, designadamente os seus objectivos, conteúdos e as suas práticas pedagógicas [1]. Nesse sentido têm tido lugar desenvolvimentos internacionais incluindo Espanha e Portugal [2] sobre, por exemplo, a estruturação de cursos em função das competências do médico [2], a implementação de estruturas curriculares em 2 ciclos [3].
Paralelamente aos desenvolvimentos de Bolonha, a Europa toma consciência da importância de admitir estudantes com licenciaturas prévias aos cursos do ensino superior. Com efeito, muitas escolas de medicina em vários países como a Austrália, Reino Unido [4,5] e também Portugal [6], têm estendido a sua oferta a este novo grupo de estudantes, muitas vezes criando currículos adaptados.
No Reino Unido, o tema da diversificação da população estudantil é particularmente relevante sendo promovido explicitamente na iniciativa Widening Access [7], que visa aumentar a diversidade social e reduzir o elitismo na população de estudantes de medicina, criando oportunidades de acesso a grupos sociais tradicionalmente excluídos [8,9]. As expectativas institucionais relativas aos estudantes adultos é que possuam uma capacidade de aprendizagem superior aos jovens que acabam de terminar o ensino secundário, decorrentes da sua maior maturidade, sentido de responsabilidade e auto-motivação e da sua experiência prévia de sucesso no ensino superior.
Estudos em curso concluíram que os estudantes licenciados têm características específicas, descrevendo-os como sendo menos ansiosos, confiantes, controlados, indagadores e detentores de uma maior maturidade emocional quando comparados com os estudantes provenientes diretamente do ensino secundário [10,11].
Estudos comparativos das experiências enquanto estudantes de medicina, revelam que os estudantes licenciados apresentam desempenhos académicos idênticos aos estudantes tradicionais [12,13] ou até superiores [14]. Os estudantes licenciados demonstram também uma maior segurança e motivação quanto à sua escolha profissional, [15]. Ao nível da selecção dos estudantes, autores como [16] Ian Blackman confirmam a relação entre um percurso académico prévio em áreas científicas e um melhor desempenho académico no curso de medicina. Outros autores relatam não existir uma desvantagem significativa por parte dos estudantes licenciados provenientes de outras áreas [13,17].
A redução de seis para quatro anos de cursos de medicina, tem sido um modelo explorado com a finalidade de os adequar à população de estudantes adultos com um grau académico superior. Trata-se de um modelo usado com sucesso internacionalmente que pressupõe que os conhecimentos e as competências desenvolvidas durante a formação superior prévia dos candidatos, lhes conferem as características necessárias e suficientes para iniciarem a sua formação médica. Estes programas com duração reduzida foram pioneiros na Austrália, iniciados em 1997, e têm vindo a generalizar-se na Europa [18].
No caso específico de Portugal, duas universidades oferecem actualmente um curso de medicina para alunos licenciados com a duração de quatro anos seguindo modelos distintos. O programa da Universidade do Algarve, instituído em 2009, é baseado no modelo tradicional de problem based learning (PBL), no qual o ensino das ciências básicas e clínicas decorre essencialmente através da exploração de casos que os estudantes devem trabalhar autonomamente em pequenos grupos [19]. Na universidade do Minho, é oferecido o modelo de quatro anos como percurso alternativo ao curso de seis anos.
Em Portugal, os estudantes do percurso de quatro anos são também uma população característica, sendo mais velhos, vindos de meios socioeconómicos mais desfavorecidos, e estando mais predispostos a trabalhar em pequenas cidades, quando comparados com os outros [20].
A transição do estudante de medicina de uma fase pré-clínica para uma fase clínica do curso, é um ponto-chave e um dos mais stressantes na preparação da aprendizagem clínica dos estudantes [21]. Trata-se de um período particular, ao requerer que o estudante descubra a sua identidade profissional de médico em contacto com os doentes [22] aplicando conhecimentos teóricos pela primeira vez na prática clínica. Trata-se de uma adaptação a um novo contexto de aprendizagem, a novas formas de ensino e aprendizagem. Relativamente à transição para a clínica dos estudantes licenciados os escassos estudos existentes concluem que as dificuldades encontradas são comparáveis às encontradas pelos estudantes de percursos mais longos [23].
Este artigo pretende corresponder à necessidade de compreender a experiência dos estudantes licenciados durante o período de transição de uma fase pré-clínica para uma fase clínica num curso com um plano de estudos de quatro anos numa escola médica portuguesa. O objectivo foi apurar através de uma discussão de grupo exploratória, que desafios e que obstáculos estes estudantes sentem durante o mencionado período e qual o contributo da sua formação prévia para a superação ou afirmação dos desafios encontrados.
Sujeitos e métodos
Contexto do estudo
Este estudo exploratório foi conduzido na Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho (ECS-UM), em Portugal. O curso de medicina com mestrado integrado da ECS-UM inclui um percurso de 6 anos destinados a estudantes admitidos pelo Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior, ao qual se candidatam maioritariamente estudantes oriundos do ensino secundário, e um 'percurso alternativo' de quatro anos para estudantes detentores de um grau académico prévio.
Os candidatos às 18 vagas anuais do percurso alternativo são selecionados através de um teste escrito que engloba as disciplinas de biologia, química, física e matemática um em conjunto com processo de mini entrevistas [6,24]. Não é feita qualquer restrição em termos de formação superior prévia. Os candidatos admitidos no ano letivo a que se refere este trabalho detinham as seguintes licenciaturas: Análises Clínicas; Anatomia e Citologia Patológica; Biologia; Genética e Microbiologia; Bioquímica; Cardiopneumologia; Enfermagem; Engenharia Biológica; Farmácia; Físico-Química; Medicina Dentária; Eletrónica e Engenharia Industrial; Química; Radiologia.
Os estudantes admitidos frequentam, no primeiro ano do seu curso, uma unidade curricular denominada 'Fundamentos de Medicina' que pretende habilitar os estudantes com os meios de aquisição de conhecimentos científicos, desempenhos e atitudes nas áreas de anatomia, fisiologia, histologia, embriologia e bioquímica ainda nas áreas de patologia, genética, imunologia, microbiologia/parasitologia e farmacologia, de forma integrada e coordenada, identificando a sua importância na prática médica.
A unidade curricular 'Fundamentos de Medicina' é composta por 6 módulos: metabolismo; sistema circulatório; sistema respiratório; sistema génito-urinário; infeção e imunidade e sistema locomotor e nervoso, cujos conteúdos compreendem a aprendizagem integrada de objetivos em várias disciplinas. Esta unidade decorre paralelamente a outra denominada 'Saúde Comunitária, Ciências Sociais e Humanas' que pretende dotar os futuros médicos de atitudes e aptidões na compreensão dos determinantes chave de saúde e doença nos indivíduos, dos seus condicionantes familiares e sociais, e do desenvolvimento de uma postura humanizada face ao indivíduo e sua família. Os alunos do percurso alternativo completam o final do seu primeiro ano frequentando, em conjunto com os restantes alunos, a unidade curricular 'Introdução à Medicina Clínica', focada nos fundamentos e prática da entrevista e exame físico. Após a conclusão do seu primeiro ano, são integrados com os alunos do quarto ano do percurso tradicional. As unidades curriculares destes anos têm como objetivo principal a aprendizagem da prática clinica, decorrendo essencialmente em contexto de serviços hospitalares e de cuidados primários.
O contacto inicial com a realidade assistencial dos estudantes do percurso alternativo decorre nas últimas semanas do seu primeiro ano, no âmbito da unidade curricular 'Introdução à Medicina Clinica' (IMC). Esta unidade curricular constitui, por isso, um momento importante em termos motivacionais e académicos, pondo à prova os conhecimentos destes estudantes. Os estudantes do programa de 6 anos frequentam a mesma UC mas têm maior contacto com o ambiente assistencial, pois existem unidades curriculares que promovem gradualmente o contacto com esse ambiente desde o início do curso, determinada pela filosofia de integração curricular em Z [25].
Método de recolha de dados
Com a intenção de compreender a experiência dos estudantes licenciados durante a transição de uma fase pré-clínica do curso para uma fase clínica do mesmo, foi conduzida uma discussão de grupo semiestruturada com cinco participantes (n = 5).
Participantes
Visando a compreensão da experiência dos estudantes licenciados durante o mencionado período de transição, foi utilizada uma amostra intencional [26], que se refere à selecção de sujeitos com maior potencial informativo. Como tal, todos os sujeitos eram estudantes licenciados da mesma turma, no mesmo momento formativo, após a conclusão da unidade curricular de Introdução à Medicina Clínica.
Os participantes foram recrutados por correio electrónico, numa mensagem enviada pelo coordenador da unidade de educação médica (MJC) a todos os estudantes do percurso alternativo inscritos no curso (n = 18). A mensagem explicava o objectivo do estudo e contextualizava a sua importância para a compreensão da experiencia destes estudantes numa perspectiva de identificar aspectos do curso susceptíveis de merecerem modificações.
Elaboração do guião
O guião foi elaborado por dois autores (MJC e AS). Numa primeira fase, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre dificuldades de estudantes de medicina no momento da transição para a formação eminentemente clínica. A listagem resultante deu origem a um guião, com o total de oito perguntas e respectivos tópicos essenciais, apresentados na tabela I..
Procedimentos
Tendo em vista a documentação da visão dos estudantes sobre a sua experiência na prática clínica, usou-se um grupo de discussão para identificar temas relevantes ao contexto, reconhecidos a partir do ponto de vista dos estudantes, aproveitando a dinâmica inerente a esta metodologia para incentivar os estudantes a elaborar a sua visão, construindo sobre as ideias uns dos outros, e explorando os motivos subjacentes a eventuais divergências [27].
A discussão de grupo foi moderada por um investigador (MJC) com o auxílio de um anotador (AS). A discussão foi gravada (1 h 25 min) e transcrita verbatim.
Visando uma análise qualitativa dos dados recolhidos, os investigadores consideraram os princípios encontrados em Grounded-Theory [28-30] como sendo os mais apropriados para a sua realização, dado o seu potencial na compreensão do significado das experiências dos sujeitos. Open-coding bem como axial-coding foram utilizados na concretização desta análise.
As transcrições foram codificadas independentemente por dois investigadores (LH e MJC) usando uma análise linha-a-linha para caracterizar os códigos presentes no texto. Os investigadores reuniram-se e discutiram a codificação até chegarem a um consenso quanto aos códigos finais. Analisaram-se pontos em comum entre os vários comentários dos participantes para discernir pontos-chave. Os códigos foram então agrupados.
Resultados
A reunião dos vários comentários feitos pelos participantes permitiu a conceptualização de duas categorias principais de análise. Uma prende-se com a experiência dos estudantes durante os seus primeiros contactos com os pacientes, e a outra com refere-se às experiências de aplicação prática de conhecimentos em contexto clínico durante a transição. Os comentários mais pertinentes referentes a cada uma e aceites de forma consensual pelos participantes encontram-se presentes nas tabelas relativas a cada categoria.
Relação estudante/paciente (Tabela II)
Os participantes relataram alguns desafios relevantes associados ao contacto inicial com a prática clínica em contexto hospitalar. O tema mais salientado foi o impacto da constante presença da morte, dos doentes e da doença no Hospital (amostra 1.a.). Vários participantes se referiram à carga emocional imposta pela necessidade de lidar com a morte dos pacientes e com o constante contacto com os doentes. Este aspeto era considerado dominante, por exemplo, sobre as dificuldades de gestão e aplicação de conhecimento no novo contexto (amostra 1.b). Houve referência ao facto de, terminado o período diário de aprendizagem no Hospital, os estudantes transportarem a vivência da morte para casa (amostra 1.b). Foi evocado o termo 'complexo' (amostra 1.c.) e um participante referiu explicitamente a 'mossa' sentida, revelando assim alguma impreparação emocional para esta experiência. Esta percepção coabita com a noção de que ser mais velho intensificará os desafios emocionais anteriores (amostra 1.c.).
Os participantes relataram também desafios no que se refere à necessidade de explorar um espaço íntimo durante a abordagem a doentes em avançado estado de debilidade física ou emocional. Adicionalmente referiram sensibilidade no que concerne à realização do exame físico ao paciente, em particular nos contactos iniciais. (amostra 1.e.).
Do mesmo modo, os estudantes demonstram uma grande preocupação pelo bem-estar do paciente, conferindo-lhe primazia sobre as necessidades do seu treino de procedimentos técnicos (amostra 1.f.).
Apesar dos desafios encontrados e das dúvidas aquando o seu primeiro contacto com a prática clínica, os participantes denotaram estarem atentos à sua postura profissional perante os doentes (amostra 1.g).
Em relação aos estudantes do percurso de 6 anos, os estudantes licenciados relatam facilidade (amostra 1.h.) e mesmo algumas vantagens no que se refere à comunicação e abordagem aos pacientes. Parte dessas vantagens referem-se à sua compreensão da linguagem utilizada por pacientes mais velhos (amostra 1.i.) e à sua tomada de iniciativa perante situações sensíveis (amostra 1.j.).
Estes estudantes relataram um grande nível de satisfação pelo seu contacto com outras pessoas, doentes ou não, durante a sua aprendizagem (amostra 1.k.).
Aplicação de conhecimentos (Tabela III)
Ao pronunciar-se sobre o contributo da sua formação durante o primeiro ano no curso de medicina para a sua experiência clínica, os estudantes destacaram três aspetos fundamentais:
• Dificuldades na aplicação, perante o doente, de conhecimentos adquiridos em contexto académico.
• A perceção de estarem equiparáveis aos colegas do percurso de 6 anos no que se refere à sua preparação teórica.
• A importância do contacto com a prática clínica, percecionada a partir das suas próprias vivências ou inferida a partir de docentes clínicos, como essencial para a estruturação das suas aprendizagens.
Um dos principais desafios relatados está relacionado com a ignorância da forma como os conhecimentos académicos são reorganizados para terem utilidade prática. Daqui resultaram expressões de receio de falta de preparação para a aplicação dos conhecimentos (amostra 2.a.), independente da sua preparação teórica (amostra 2.b.). Esta mobilização de conhecimentos para a prática clínica é um processo distinto do da aquisição dos conhecimentos a serem mobilizados, que também suscita dificuldades particulares, exploradas seguidamente.
Quanto à sua preparação, os estudantes referiram que o ano de aprendizagem de conhecimentos que precedeu a sua experiência em IMC lhes havia conferido um nível de preparação equivalente ao dos estudantes do currículo normal. Apesar dos desafios relativos à aplicação de conhecimentos, e mesmo tendo apenas um ano de aprendizagem pré-clínica, os estudantes licenciados não sentiram qualquer disparidade quanto ao nível de preparação relativa a conhecimentos teóricos para a fase clínica do curso, afirmando que se sentem tão bem preparados como os estudantes do currículo tradicional (amostras 2.c. e 2.d.).
Apesar do seu sentimento de igual preparação teórica quando comparados com os estudantes do percurso tradicional, os estudantes licenciados descrevem uma falta de 'amadurecimento' ou consolidação dos conhecimentos. Os participantes consideraram que o período de aprendizagem era insuficiente para proporcionar as circunstâncias necessárias a esse 'amadurecimento' (amostras 2.e.; 2.f.; 2.h.). O outro aspeto evocado foi a inexistência de oportunidades suficientes para a prática dos conhecimentos adquiridos (amostras 2.g.; 2.h. e 2.r.),
Foram referidas outras condicionantes associadas ao fator 'insuficiência de tempo', por exemplo, como um importante condicionante do tempo disponível para estudar e, por conseguinte, como um forte obstáculo ao desenvolvimento do seu conhecimento (amostras 2.i. e 2.j.).
Os dados parecem apontar para o facto de um grande volume de informação e conhecimentos a adquirir, conciliado com o curto espaço de tempo que têm, levar a um sentimento de desorientação, conduzindo os estudantes a reconsiderarem as suas estratégias de estudo, reestruturando e priorizando os conhecimentos a adquirir (amostras 2.k.; 2.n.; 2.q.). Esta priorização, imposta pelas suas dificuldades, foi uma das maiores preocupações revelada pelos participantes.
Neste sentido, a vivência clinica tem efeitos sobre a forma com os estudantes consideram abordar o estudo, sugerindo que um contacto precoce com a prática clínica seria benéfica para a sua abordagem desde o início do curso. Vários fatores parecem contribuir para esta priorização dos conteúdos a aprender. Entre os principais, destaca-se o papel da experiência clínica (amostras 2.l. e 2.m.), que revela também ter um papel relevante na abordagem ao estudo e na preferência dos estudantes por docentes experientes na prática clínica (amostra 2.p.).
Outros fatores adicionais sugeridos como possíveis agentes nesta priorização de conhecimentos a adquirir são o grau de dificuldade dos conhecimentos (amostra 2.n.), levando os estudantes a darem prioridade ao estudo de matérias que considerem mais difíceis, e a perceção que têm da frequência com que vão aplicar esses conhecimentos na prática clínica (amostra 2.q.), sendo que os estudantes relatam dar prioridade à aprendizagem de conhecimentos que prevejam aplicar mais frequentemente. A priorização de conteúdos apresentada por docentes clínicos é referida também como um fator relevante na priorização das aprendizagens (amostra 2.p.), assim como o seu próprio juízo e competências de estudo provenientes da sua experiência enquanto estudantes autónomos durante o seu grau académico prévio (amostra 2.o.).
Discussão
É necessário conhecer e compreender a experiência dos estudantes nos momentos de transição dos seus cursos de medicina para identificar pontos onde introduzir melhorias, tenham estas a ver com a sua aprendizagem a longo prazo ou com o melhoramento da experiência nesses momentos particulares. Tal torna-se particularmente importante no caso dos estudantes admitidos com o grau de licenciado em cursos de menor duração, tendo em consideração que se trata de um modelo formativo mais recente. Este estudo de caso, baseado numa entrevista a estudantes pouco tempo após a sua transição para a parte predominantemente clínica de um curso, revelou que os aspetos mais problemáticos se prendiam com lidar com aspetos humanos da atividade médica e com a mobilização de conhecimentos adquiridos anteriormente de forma a poderem ser usados com eficácia nas interações sem contexto clínico.
Os elementos extraídos da análise qualitativa revelaram que os estudantes licenciados consideram estar em situação de vantagem num conjunto de circunstâncias. No que respeita à relação médico-doente, é notória a sua preocupação com o bem-estar dos pacientes e aforma como privilegiam o bem-estar do paciente sobre as necessidades que estes estudantes apresentam de praticar procedimentos clínicos. Ao mesmo tempo, relativamente aos seus colegas admitidos diretamente do ensino secundário, consideram ter maior iniciativa para lidar com situações delicadas, mais facilidade que os estudantes do currículo tradicional no estabelecimento da relação com os pacientes, na compreensão do seu discurso, bem como um enorme gosto pelo contacto com os mesmos.
Relativamente à aprendizagem de conhecimentos, a entrevista não permitiu identificar benefícios provenientes da sua formação académica anterior. Os resultados sugerem que o curso de medicina solicita aos estudantes o conhecimento de uma forma diferente daquela com que organizaram os seus conhecimentos académicos até ao momento. Ainda assim, foi possível concluir que as competências genéricas de estudo são consideradas relevantes para a aprendizagem. Segundo a perspetiva dos estudantes entrevistados, frequentar um curso de medicina com um curso prévio é vantajoso por tirarem partido das competências de estudo adquiridas durante a sua formação anterior.
No que se refere às dificuldades identificadas pelos estudantes licenciados durante os seus primeiros contactos com a prática clínica, uma das mais prementes advém do choque do primeiro contacto destes estudantes com o meio hospitalar, e refere-se à constante presença e convivência com a morte, com a doença e com os doentes. A idade dos estudantes foi apresentada como um fator significativo na afirmação desta dificuldade (amostra 1.a.).
Ao mesmo tempo, os participantes do grupo de discussão referiram ter algumas dificuldades na aplicação na prática clínica de conhecimentos adquiridos na unidade curricular precedente, tendo mencionado especificamente que tal dificuldade não advém da falta de conhecimentos (amostra 2.b.).
A falta de tempo relatada por estes estudantes aparenta ter um impacto negativo no seu nível de preparação para a prática clínica. Embora estes estudantes relatem um nível de preparação idêntico ao dos estudantes do percurso tradicional, o tempo é apresentado como um fator importante para a integração dos conhecimentos. Em conjunto com a falta de repetição das aprendizagens, (amostras 2.g. e 2.h.), estes dois fatores parecem dominar as dificuldades encontradas por estes estudantes no que se refere à sua preparação teórica. Embora não tenham sido relatadas dificuldades quanto à assimilação de novos conhecimentos, os comentários relatam problemas no que se refere à acomodação dos mesmos, mais especificamente à relação da quantidade de conhecimentos a adquirir com a curta duração do período pré-clínico, sugerindo dificuldades evidenciadas pela teoria da carga cognitiva [31]. Esta teoria explica que o esforço exercido sobre a memória de trabalho de um sujeito quando este tenta adquirir novos conhecimentos, depende da quantidade de informação a adquirir, o tempo que tem para o fazer, e das estruturas de conhecimento que detém. Neste sentido, um especialista numa área terá mais facilidade em processar uma grande quantidade de informação nova num curto espaço de tempo pois já possui estruturas de conhecimentos adequadas à sua integração, por contraste às estruturas de conhecimento detidas por um principiante. Os dados sugerem que as dificuldades apresentadas pelos estudantes licenciados se referem à falta de estruturas de conhecimento em medicina, o que os impede de adquirir tanta informação em tão pouco tempo.
Segundo os participantes, esta dificuldade força os estudantes a selecionar os conhecimentos a adquirir. Neste sentido, a experiência clínica parece ter um papel fulcral enquanto orientadora do estudo. A previsão da frequência com que vão aplicar determinados conhecimentos, bem como a previsão do impacto que as suas práticas poderão ter no bem-estar dos pacientes, aparentam ser fatores determinantes quando estes estudantes se vêm obrigados a escolher o que estudar. Estas preocupações refletem-se no facto de preferirem aulas dadas por docentes com experiência na prática clínica.
Os resultados deste estudo têm uma aplicabilidade prática no que se refere à estruturação dos cursos de medicina de duração reduzida para estudantes licenciados. Para além de confirmar que a experiência dos estudantes licenciados lhes pode conferir vantagens -essencialmente na relação médico-doente e nas competências genéricas de estudo.
Os resultados sugerem a conveniência de proporcionar a estes estudantes mais prática clínica na fase inicial da formação dos estudantes licenciados. Neste sentido, será útil considerar a adoção de uma estrutura curricular atendendo a uma integração vertical em forma de Z [25], incorporando o ensino das ciências biomédicas com a aprendizagem clínica desde o início do curso. Atendendo aos resultados, esta integração ajudaria a atenuar o impacto do primeiro contacto dos estudantes com a realidade no hospital, e teria um papel fulcral enquanto orientadora do estudo e reorganizadora do processo de aprendizagem.
Do mesmo modo, a falta de tempo relatada, a grande quantidade de conhecimentos a adquirir, e as dificuldades que dela advém, poderão ter implicações na discussão sobre a duração dos cursos de medicina para estudantes licenciados. Apesar das competências de estudo relatadas por estes estudantes, as limitações e o processo de desenvolvimento apresentados pela teoria da carga cognitiva deverão ser tomadas em conta durante a estruturação destes cursos de duração reduzida.
Embora este estudo de caso apresente limitações relativas ao tamanho da amostra e ao seu foco de análise, acrescenta novos elementos sobre a experiência dos estudantes licenciados nos cursos de medicina, e poderá contribuir para a orientação de estudos futuros sobre este assunto.
Em conclusão, uma análise qualitativa sobre a experiência dos estudantes licenciados evidencia dificuldades características deste grupo de estudantes, mas também perceções de vantagens relativas aos seus colegas admitidos diretamente do ensino secundário.
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Correspondência:
Prof. Luís Henriques.
Escola de Ciências da Saúde.
Universidade do Minho. Campus de Gualtar.
4710-057 Braga, Portugal.
E-mail: luish88@hotmail.com
Conflicto de intereses: No declarado.